segunda-feira, 23 de junho de 2008

O agronegócio golpista da Argentina

Após 101 dias de locaute golpista, os barões do agronegócio da Argentina decidiram suspender, neste final de semana, o bloqueio às estradas e outras formas violentas de protesto que causaram grave desabastecimento no país e objetivaram desestabilizar o governo democraticamente eleito de Cristina Kirchner. Segundo Alfredo Angeli, o capo da Federação Agrária Argentina, as velhas oligarquias latifundiárias, hoje travestidas de agrobusiness, deverão agora concentrar as energias na pressão aos parlamentares, que iniciam nesta semana a votação do projeto de lei dos impostos sobre exportação de grãos – as chamadas retenções. “Vamos acampar no Congresso”, esbraveja.

O conflito agrário na nação vizinha, rico em lições para os brasileiros, reflete a radicalização da luta de classes na América Latina. De um lado, as quatro entidades ruralistas, com seus interesses distintos, que não aceitam pagar mais impostos, apesar da fortuna acumulada com a valorização do preço das commodities agrícolas e o acelerado crescimento da economia – média anual de 8% nos últimos anos. O agronegócio tem força numa economia assentada no campo. A Argentina é o terceiro maior produtor mundial de soja – quase toda transgênica –, o que rendeu no ano passado US$ 13 milhões no mercado externo. Também é grande exportador de trigo e carne.

Mídia, generais, bispos e classe mérdia

Os ruralistas contam com o apoio escancarado da mídia hegemônica, com destaque para o abjeto jornal Clarín; de velhos generais golpistas, que não escondem sua face horrenda nos protestos da oposição; da hierarquia carcomida da Igreja Católica, saudosa da tortura na ditadura militar, e da chamada classe mérdia, com seus panelaços em bairros ricos de Buenos Aires, como Recoleta e Belgrano. Desde a eclosão do conflito, em 11 de marco, estes setores golpistas não escondem seu desejo de derrubar a presidente Cristina Kirchner. Os mais excitados chegam a pregar a volta da sanguinária ditadura militar, que seqüestrou e matou mais de 30 mil argentinos entre 1976/83.

Para viabilizar este projeto, os barões do agronegócio apostaram suas fichas no caos econômico. O criminoso bloqueio das estradas resultou no desabastecimento de alimentos e combustíveis em várias cidades, inclusive na capital. Indústrias aventaram a demissão de 50 mil trabalhadores em decorrência da falta de matérias-primas e energia. A União Industrial Argentina, maior entidade empresarial do país, alegou que o movimento estaria “forçando” as dispensas. Já a Associação de Supermercados publicou nota afirmando que “os bloqueios de estradas afetaram o transporte de mercadorias em geral, não só de grãos para a exportação”. Com o cruel locaute, que praticamente interrompeu a venda de grãos ao exterior, o governo perdeu US$ 1 bilhão de impostos ao mês.

O locaute dos “generais da multimídia”

Do outro lado, encontra-se o governo de Cristina Kirchner, com todas as suas ambigüidades. Ela e seu marido, Néstor, foram eleitos com o apoio de setores ruralistas e aplicaram uma política de estímulo ao agronegócio – inclusive liberando totalmente os transgênicos. Como observa Miguel Croceri, professor da Universidade La Plata, os ruralistas sempre foram beneficiados pelo atual governo, “obtendo níveis recordes de lucro e rendas fabulosas com a exportação”. Com a volta da inflação dos alimentos, Cristina decidiu baixar decreto elevando o valor das retenções. Daí a dura reação do latifúndio. Até agora, apesar das vacilações, ela se mostra firme no seu propósito.

Num gesto corajoso, Cristina também procurou mobilizar e politizar a sociedade, participando de protestos públicos. Num deles, em abril último, ela advertiu para o risco de retrocesso político no país. Lembrou que o golpe militar de 24 de março de 1976 também foi precedido do locaute de latifundiários e nomeou lideranças golpistas daquele período que voltaram à ativa. “O passado quer voltar, mas não vai conseguir”, afirmou. Conforme ressaltou, o golpismo atual teria apenas uma marca distintiva. “Desta vez, eles não vieram com os tanques, mas sim acompanhados por generais da multimídia que fizeram o locaute à informação, torcendo e tergiversando”.

Intelectuais, artistas e movimentos sociais

Em apoio à decisão de elevar as retenções, mesmo que com críticas às ambigüidades do governo, estão várias centrais sindicais, a heróica Associação das Madres da Praça de Maio, a maior parte do movimento dos piqueteiros (desempregados) e alguns partidos de esquerda. Na manifestação de quarta-feira passada, que tomou a Praça de Maio com mais de 100 mil pessoas, os bancários paralisaram as agências de Buenos Aires e vários vôos foram atrasados ou cancelados. Conforme descreve a reportagem do jornal Brasil de Fato, “a manifestação foi marcada pela pluralidade; artistas e intelectuais estiveram presentes ao lado de integrantes dos movimentos sociais”.

Noutra edição, o jornal entrevista o dirigente da Federação de Terras e Vivendas, o ex-deputado Luis D’Elia, que acusa a mídia de “querer desestabilizar a democracia e gerar condições para a destituição de Cristina”. Hebe Bonafini, líder das Madres da Praça de Maio, conclama o povo a reforçar a luta “em defesa da democracia e da liberdade. Nenhum passo atrás”. Um manifesto assinado por quase 900 intelectuais também critica o golpismo ruralista. E o filósofo Rubén Dri alerta que “o golpe já está em curso. Frases de que ‘estamos em guerra’ e ‘isto é uma revolução’ alimentam a direita que sabe o que quer e a esquerda estúpida”. A seção na Liga Internacional de Trabalhadores (LIT), matriz do PSTU brasileiro, deu apoio aberto ao bloqueio das estradas.

A verdadeira “praga da agricultura”

A suspensão temporária dos bloqueios não encerra os violentos conflitos de classes na Argentina. As retenções, que foram criadas em 1967, suspensas nos anos 90 pelo neoliberal Carlos Menem e retomadas em 2002, têm três objetivos básicos: redistribuir a “renda extraordinária” do setor gerada pelo boom das commodities rurais; garantir subsídios a insumos e combustíveis, que têm seus preços controlados pelo governo; e manter os preços dos grãos e seus derivados no mercado interno. Na violenta recessão do início deste século, este imposto foi um dos principais pilares da recuperação econômica do país, fazendo o caixa necessário para a moratória da dívida externa e para o fim da paridade dólar-peso. Atualmente, representa 13% da arrecadação fiscal da União.

Até economistas cúmplices do neoliberalismo reconhecem que esse imposto é indispensável ao país. Para Luiz Carlos Bresser Pereira, ex-ministro de FHC, as retenções estão “absolutamente corretas” e são responsáveis pelo “notável crescimento recente da Argentina”. Evitam que o país vire uma grande fazenda, permitindo a sua industrialização e uma melhor distribuição de renda. O economista brasileiro lembra que o Brasil também teve suas retenções, chamadas de “confisco cambial”, entre 1930/80, o que garantiu a industrialização nacional. “O Brasil poderia crescer o dobro se aplicasse essa política, mas aqui ninguém tem coragem de mexer com o setor agrícola”.

Com o seu locaute prolongado e radicalizado, os barões do agronegócio revelam que não têm qualquer compromisso com a nação ou com o seu povo. A exemplo dos ruralistas brasileiros, os argentinos visam apenas seus altos lucros. O discurso nacionalista, carregado de slogans sobre o progresso econômico, serve apenas de fachada para sua ambição capitalista. A postura golpista e preconceituosa também é a mesma. Nas eleições presidenciais brasileiras de 2006, muitos barões do agronegócio colaram em seus carrões adesivos com os dizeres: “Lula, a praga da agricultura”. Não dá para ter ilusões com a nata deste setor, que nunca abandonou o seu passado escravista.