terça-feira, 27 de janeiro de 2009

MST e a reforma agrária de Veríssimo

Na semana em que o MST comemora 25 anos de “teimosia” na luta pela reforma agrária, uma crônica do escritor Luis Fernando Veríssimo ajuda a entender o drama de milhões de expulsos da terra e a rechaçar o discurso preconceituoso de parte da sociedade, sempre ampliado pela mídia. O texto acaba de ressurgir no livro “Mais comédias para ler na escola”, recordista de vendas no final do ano. A obra irreverente e deliciosa de ler reúne assuntos sérios, mas sempre com humor inteligente, e outros nem tanto, mas risíveis. Reproduzo a crônica, intitulada “provocações”:


“A primeira provocação ele agüentou calado. Na verdade, gritou e esperneou. Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não como ele, numa toca, aparado só pelo chão. A segunda provocação foi a alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou porque não era disso. Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de medicamento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz. Foram provocando por toda a vida.

Não pôde ir à escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, ele gostava de roça. Mas aí lhe tiraram a roça. Na cidade, para onde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme, firme. Queria um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Os que morriam eram substituídos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava.

Estavam provocando. Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça. Ouvira falar de uma tal de reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa. Terra era o que não faltava. Passou anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma.

Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo. Pra valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação. Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano... Então protestou. Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu, espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele: Violência não!”.


“Sou um gigolô das palavras”

De forma leve e cativante, o novo livro de Veríssimo fala de algumas coisas sérias, incomodas, no meio de várias histórias amalucadas do cotidiano. Numa penada, já que não dá para parar de ler, o leitor é provocado na sua consciência. O livro faz rir e pensar. Como afirma a professora Marisa Lajolo, no prefácio, ele reúne crônicas que “falam tanto de filosofia quanto de galinhas, de romances e de lingüiças... Se livro fosse remédio – que tem bula e rótulo –, aqui se leria que estas Mais Comédias para Ler na Escola não têm contra-indicação... [É] garantia de boas risadas e de boa leitura. Que não fica menos divertida ao se acompanhar de alguma reflexão”.

Luis Fernando Veríssimo brinca com as palavras. Como ele mesmo confessa numa das crônicas, “sou um gigolô das palavras. Vivo as suas custas. E tenho com elas exemplar conduta de cáften profissional”. Para ele, “o importante é comunicar. E, quando possível, surpreender, iluminar, divertir, mover”. Sem dúvida, Veríssimo consegue. Mesmo quando se discorda de algumas das suas maluquices, não há dúvida sobre o talento deste que é um dos maiores escritores brasileiros.