domingo, 6 de junho de 2010

Folha, drogas, mentiras & dossiês

Reproduzo esclarecedor artigo de Saul Leblon, publicado no sítio Carta Maior:

Numa versão dissimulada da manipulação que Veja e Globo fizeram de forma escancarada na última semana, a Folha de S.Paulo resolveu contar ao seu leitor na edição de sábado, dia 5 de junho, um pedaço - ínfimo - da verdadeira história por trás do suposto dossiê contra José Serra que abala a campanha demotucana e ressuscita velhas torpezas presentes nas disputas presidenciais desde o fim da ditadura.

O resumo-malabarista dos acontecimentos não é assinado, o que desde já sugere um produto distinto da reportagem e mais próximo de uma alta "costura" política destinada a salvar as aparências perante leitores e eleitores depois do fiasco da operação-dossiê, que consistia em desqualificar denúncias graves – alucinadamente sempre omitidas - com o carimbo antecipado de conspiração petista. O que parece ter dado errado nesse exercício tantas vezes bem sucedido é que, primeiro, as informações negadas pelos jornalões vazaram e circulam livremente na Internet ; segundo, e mais complicado, a origem guarda credibilidade distinta dos dossiês eleitorais na medida em que se apóia em investigação minuciosa, ancorada em documentações muitas vezes chanceladas pela Justiça.

Na corrida contra o prejuízo, o produto oferecido aos leitores da Folha mantém a marca registrada de um certo padrão de jornalismo dissimulador, feito para confundir quando a missão de informar se revela inconveniente. É isso que está em marcha nesse momento em relação ao episódio do suposto dossiê. De forma coordenada, veículos diferentes armam um vertiginoso quebra-cabeças feitos de peças conflitantes que não se completam nunca. Dilui-se assim o que é central numa conveniente trama de sub-enredos reais ou imaginários. Valores em dinheiro totalmente contraditórios são jogados sem explicação. Declarações desencontradas diluem o principal em uma miríade de especulações laterais. Um mesmo personagem faz declarações diametralmente opostas em veículos diferentes, às vezes no mesmo dia. Sobre essa calda pegajosa que aos poucos satura e repugna mantém-se o guarda-chuva que interessa fixar. O vírus permanente da suspeição em relação ao governo, seu partido, sua candidata, seus métodos, a origem dos seus recursos, as relações internas entre seus membros enfim, tudo e todos que gravitam ao seu redor.

A chamada da primeira página da Folha segue a regra - "Jornalista e delegado são pivôs do caso do dossiê". Não há, a rigor, qualquer respaldo para essa manchete nas informações contidas na matéria interna que na verdade a desmente, ao admitir:

a) ao contrário do que Serra afirma e a Folha endossou obsequiosamente no noticiário generosos dos dias anteriores, e continua a insinuar na manchete, o comando da campanha de Dilma em Brasília não contratou nem produziu dossiê algum contra o candidato do conservadorismo brasileiro;

b) os personagens que a manchete arrola como ‘pivôs’ do caso do dossiê teriam participado, diz a matéria, de uma conversa com um publicitário indiretamente ligado à campanha do PT;

c) sempre segundo o padrão Folha de jornalismo, em meados de abril, cogitou-se criar um sistema de inteligência no comitê de Dilma, em Brasília, para detectar a presença de eventuais espiões de Serra –suspeita ancorada em sucessivos vazamentos de informações confidenciais sobre custos e recursos envolvidos na campanha;

d) a criação do ‘serviço’ relatado pela Folha – com as ressalvas anteriores sobre a qualidade da informação prestada por esse jornalismo - teria sido abortada por uma divergência de preço. Ponto. Mas e o dossiê que a Veja denunciou, o Globo repercutiu e a Folha escorou dando destaque às declarações de Serra que afirma ser de responsabilidade “exclusive” de Dilma? Aspas para o texto da Folha, novamente: a) “em 2 de maio”, diz o relato apócrifo, integrantes do PSDB souberam que a campanha de Dilma estaria montando [a mencionada] equipe de "inteligência" com o objetivo, deduziram, de espionar Serra. Fecha aspas. Quem “deduziram”?

A matéria não esclarece, nem questiona. A Folha não revela sequer curiosidade em relação a esse núcleo central da trama que ao deduzir erroneamente – pelo que diz o próprio jornal - criou o factóide surrado do “dossiê petista”, no qual embarcaram todos os veículos, bem como o candidato demotucano, que o PT ameaça levar à justiça para provar a acusação criminosa contra Dilma Rousseff. Por fim, mas não por último, resta a embaraçosa omissão da matéria da Folha sobre o mais importante: o conteúdo efetivo dessas informações cuja divulgação – “circula na Internet”, diz o texto - estremeceria a campanha demotucana, a ponto de se montar um coro despistador na tentativa de desqualificá-las por antecipação.

A dificuldade em tratar o principal é um sintoma da gravidade do que se tenta esconder. Um primeiro ponto remete ao autor das informações em litígio. Sobre esse personagem que a Folha conhece porque admite que já trabalhou na sua redação, bem como na de outros veículos de igual calibre, o texto faz menção curta sem abrir aspas para a entrevista óbvia que o assunto merece. Diz o jornal: “Amaury Ribeiro Júnior ... investigou por anos o processo de privatização brasileiro iniciado nos anos do governo FHC (1995-2002)”.

Omitiu a Folha aquilo que ela e todo o meio jornalístico sabem: o jornalista Amaury Ribeiro Júnior é dono de três prêmios Esso; venceu quatro prêmios Vladimir Herzog, é membro do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, apenas para citar alguns dados sobre a credibilidade do profissional que investigou e reuniu as informações escondidas pelo sistema midiático ao qual ele pertencia até recentemente. Não estamos falando portanto de uma Eliane Cantanhede. Em frente.

Segundo a Folha: a) “os dados começaram a ser coletados [por Ribeiro Jr] em sua passagem pelo ‘Estado de Minas’, principal diário mineiro, próximo politicamente do ex-governador Aécio Neves (PSDB-MG)”; b) “a apuração começou em 2009, depois que Aécio, então ainda um potencial presidenciável, foi alvo de reportagens críticas...” Alvo de quem? Curioso, no parágrafo anterior, a Folha desqualifica o trabalho investigativo do jornalista ao espetar no "Estado de Minas" o epíteto: “próximo politicamente do ex-governador Aécio Neves (PSDB-MG)”, mas nada relaciona sobre a “proximidade política” dos veículos responsáveis pelas “reportagens críticas” citadas em seguida apenas de raspão. A reportagem-malabarista não assinada da Folha passa olimpicamente por indagações obrigatórias de qualquer pauta cuidadosa. Que tipo de “reportagens críticas”; em benefício de quem foram feitas; um trecho, um exemplo?

Nada. Na verdade, a abordagem isenta exigiria quase que uma auto-imolação do diário da família Frias, uma auto-investigação das perdas e danos causados à informação por seu esférico engajamento na candidatura José Serra, indissociável do anti-lulismo praticado disciplinadamente por quase toda a sua redação.

É inescapável recordar uma passagem que condensa a radicalização inscrita em todo esse episódio, traduzido por um jornalismo de campanha – nunca assumido abertamente - praticado pelo conjunto da mídia conservadora, sobretudo a de São Paulo. Em 4 de março de 2009, o jornal "O Estado de São Paulo", por exemplo publicou – numa seqüência de disparos da mesma cepa deflagrados pela Folha, Globo etc - um artigo criticando de forma agressiva a pressão do governador mineiro Aécio Neves pela realização de prévias democráticas no PSDB para a escolha do postulante à Presidência da República. Àquela altura, a sempre oportuna prontidão do Datafolha dava a Serra 45% das intenções de voto, contra apenas 17% de Aécio Neves, que mal disfarçava o propósito de implodir a blindagem erguida em torno do rival paulista levando a disputa para fora do jogo de cartas marcadas arbitrado pela endogamia entre a cúpula do seu partido e a mídia do eixo São Paulo-Rio.

Os xiliques de Serra e a agressividade dos recados emitidos pelos jornais serristas demonstravam que nem um, nem outro, confiavam de fato nos confortáveis índices oferecidos à opinião pública interna e externa pelo instituto de pesquisas da família Frias. É nessa linha de tensão que surge o artigo “Pó pará, governador?” cujo título trazia uma insinuação de represálias sem limite, caso Aécio Neves insistisse em se colocar na disputa contra o tucano paulista.

A sombra da represália, por certo em munição letal, tanto que Aécio desistiu da candidatura - ficava explícita no parágrafo final do recado assinado pelo versátil porta-voz de interesses inconfundíveis, o jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas, pintor e etc, Mauro Chaves. Depois de denunciar o controle do mineiro sobre a imprensa do Estado ["em Minas, imprensa e governo são irmãos xifópagos"], o texto concluía: "Aécio devia refletir sobre o que disse seu grande conterrâneo João Guimarães Rosa: "Deus é paciência. O diabo é o contrário. E hoje talvez ele advertisse: Pó pará, governador?".

Era uma chamada enigmática para alguns, mas inteligível para os círculos que já ouviram insinuações recorrentes sobre hábitos pessoais do governador.

É sobre esse campo minado por uma luta que dificilmente fará de Aécio um cabo eleitoral mais que formal de José Serra, que explodiu o resultado de anos de trabalho de um premiado jornalistas investigativo do país. A coleção de dados e cifras envolvendo a família, os amigos, assessores de confiança de José Serra, seus laços societários e eleitorais com a família de Daniel Dantas e as ligações do conjunto com privatizações e movimentos milionários de dólares, dentro e fora do país, formam um latejante paiol em forma livro prestes a explodir no colo da coalizão demotucana. Desdobrado em 14 capítulos, com lançamento previsto para depois da Copa do Mundo, o artefato deixa o insone assumido, José Serra, cada vez mais distante de uma noite de sono dos justos. Pior que isso: torna mais improvável ainda que ela ocorra um dia na cama do Palácio do Planalto.

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