terça-feira, 5 de outubro de 2010

O vermelho e o verde

Reproduzo artigo de Antonio Martins, publicado no sítio Outras Palavras:

Agora, quando o resultado das eleições de 3 de outubro está emergindo em seu conjunto, já é possível fazer balanços mais abrangentes, menos enevoados por manipulações da mídia ou expectativas frustradas. Distinguem-se, no panorama que se abre, duas tendências consolidadas: as “ondas” vermelha e verde. Enxerga-se, além delas, uma oportunidade histórica: a possibilidade de articulá-las – não num acordo eleitoral fugaz, mas num diálogo e possível construção de longo prazo.

A “onda vermelha” veio antes, cronologicamente. Atingiu seu ápice em meados de setembro, recuando em parte nas três semanas anteriores às urnas. Significou um vasto desafio a alguns dos fatores que marcam a submissão social no Brasil, no passado e no presente. Entusiasmadas pelo tímido – porém inédito – movimento de redistribuição de riqueza ensaiado no governo Lula, as maiorias questionaram o poder dos coronéis (locais e regionais); a ditadura da mídia piramidal (inclusive a TV Globo); a influência dos “formadores de opinião” da classe média conservadora; a força dos velhos preconceitos econômicos, segundo os quais investimento público é sinônimo de “gastança”.

Os efeitos deste grande movimento são generalizados. Na disputa presidencial, a diferença entre PT e PSDB – os partidos que expressam, no imaginário popular, democratização e elitismo – alargou-se de 7 pontos percentuais, no primeiro turno de 2006, para 14,3 agora [1]. No plano estadual, o PT obteve vitórias emblemáticas no Rio Grande do Sul e, quase certamente, Distrito Federal. Tanto no Senado quanto na Câmara os partidos que compõem a base de Dilma ultrapassaram os 60% necessários para mudanças constitucionais.

No Senado, aliás, o DEM, melhor expressão da velha direita, viu sua bancada eleita em 2002 reduzir-se de 14 integrantes para apenas dois, agora; enquanto a do PSDB encolheu de 8 para 5. PSOL e PCdoB, que não haviam elegido senadores [2] em 2002, têm agora, respectivamente, dois e um representantes. A casa ficou livre, além disso, de alguns ícones sagrados do conservadorismo, como Tasso Jereissati (PSDB-CE), Arthur Virgílio (PSDB-AM), Marco Maciel (DEM-PE) e Heráclito Fortes (DEM-PI). Na Câmara de Deputados também houve guinada à esquerda, embora menos pronunciada [3].

Já a “onda verde” formou-se na reta final da campanha. Em menos de vinte dias, Marina Silva (PT) passou de cerca de 12% das intenções de voto para 19,3%, no cômputo final. É o triplo do percentual (6,85%) alcançado por Heloísa Helena no primeiro turno de 2006, quando a então candidata do PSOL também representou uma espécie de terceira força. Mas a evolução qualitativa é ainda mais importante que a numérica. Heloísa expressava essencialmente uma frustração e um protesto – contra Lula e o PT. Setores da esquerda e (principalmente) da classe média, que idealizavam um governo mais radical (ou mais puro) que o real, descarregaram sua decepção na figura da senadora, amarga e embrabecida.

Marina é o passo adiante. Ela emociona-se ao descrever a angústia que sentiu, ao separar-se do PT. Reconhece os grandes avanços sociais dos últimos oito anos e o papel democratizador desempenhado pela esquerda histórica. Mas pensa isso não basta. Embora a enxurrada de votos que recebeu nos últimos dias tenha origens diversas e até contraditórias (como se verá adiante), o sentido político e simbólico que deu a sua candidatura é inconteste. Ela sugere que não basta integrar as maiorias nos padrões de produção e consumo do capitalismo, livrando-as da “exclusão”. É possível discutir os sentidos do desenvolvimento.

Afinal, que projetamos como futuro coletivo? O “direito” dos pobres a seguir a classe média e mofar horas enjaulados em seus automóveis, todos os dias? O aumento indefinido da produção de energia, para que o consumo de latinhas de alumínio continue se expandindo? Casas para todos, mesmo que em regiões remotas das metrópoles, onde a natureza foi agredida e a mobilidade é quase nula? O título de maiores exportadores mundiais de alimentos, às custas de nossas florestas e preservando os latifúndios?

Marina não recebeu, é claro, apenas os votos de quem faz estes questionamentos. Ela foi beneficiada pelos eleitores que a mídia, após uma campanha abjeta e prolongada de calúnias, conseguiu tirar de Dilma – mas não foi capaz de transferir a Serra. Em seu colo caíram, também, as adesões por preconceito: gente amedrontada, nos grotões, por ouvir dizer que a candidata de Lula promove o aborto, é ateia, flerta com seitas satânicas.

O PT deveria compreender que são circunstâncias da política institucional. Também ele foi beneficiado, mais de uma vez, por balas perdidas, nas disputas entre seus adversários. Para ficar num único exemplo, basta citar Maria Luíza Fontenelle, primeira prefeita eleita pelo partido numa capital (Fortaleza, 1985). Ela consagrou-se nas urnas também porque o PDS, partido da ditadura que recém-terminara, viu-se incapaz de derrotar Paes de Andrade (do PMDB, inimigo histórico) e preferiu descarregar seus votos na petista.

II

Seria fácil para Dilma, Lula ou os partidos de esquerda que os apoiam, apontar em Marina o bode expiatório a necessidade do segundo turno – mas seria vão. Em contrapartida, um exame mais atento do resultado eleitoral serviria – em especial ao presidente, cuja argúcia política é reconhecida até pelos maiores adversários – para aprofundar e atualizar sua visão sobre a sociedade brasileira.

A emergência tão abrupta da figura política de Marina é mais um sinal de que o Brasil está mudando. Mas ao mesmo tempo em que confirma a potência das políticas de Lula, este fenômeno convida a atualizá-las, para que não se tornem repetitivas e obsoletas. A inclusão social, a criação da “nova classe média”, a “emergência das classes C e D” são reais e benvindas. Mas tende a repetir-se rapidamente, no Brasil, o choque que se deu entre o “welfare state” europeu e seus filhos rebelados de 1968.

Superada a “exclusão”, conquistado um lugar ao sol no pátio do capitalismo, uma nova questão se apresenta. Como continuar reinventando a vida? Certas análises muito recentes, sobre o primeiro turno brasileiro de 2010, tendem a diagnosticar a tendência de parte dos “incluídos” ao conservadorismo. Vencida a condição de miserável, uma parcela se tornaria refratária às propostas que sugerem novas mudanças: ou por temer regressar à condição anterior ou por querer diferenciar-se da massa dos pobres, que votam à esquerda. Esta seria a razão para Dilma ter obtido, no Nordeste e Norte – as regiões mais beneficiadas pelos programas sociais – dianteira inferior à que se previa.

Para testar esta hipótese, será preciso examinar os resultados das eleições em regiões sociais homogêneas, comparando-os com os de pleitos anteriores. Um exame mais profundo do fenômeno talvez revele um bifurcação em Y. Ultrapassadas as condições de desigualdade mais dramáticas, parte da sociedade pode tender, de fato, ao conservadorismo. Mas um outro setor – especialmente entre a juventude, de todos os extratos sociais – passa a reivindicar mudanças ainda mais profundas.

Ele alegra-se com a superação da miséria, mas isso apenas aguça seu desejo de uma vida nova. A simples exaltação das conquistas alcançadas não o anima. E repele (talvez sem realismo, mas certamente com razão…) os “efeitos colaterais” do que foi obtido. Neste grupo, estão os eleitores que se chocam, por exemplo, com a ausência de uma política ambiental avançada; com a devastação contínua (ainda que decrescente) da Amazônia; com a lentidão da reforma agrária e a conivência com o agronegócio predatório; com a construção de grandes obras sem esclarecimento suficiente de seus impactos ambientais; com o envenenamento e congestão das metrópoles; com as alianças com certos coronéis da política.

Marina seduziu, provavelmente, uma parte importante (talvez majoritária…) deste eleitorado. Ele não se confunde com a ultra-esquerda clássica. Por isso, não optou pelo PSOL (embora tenha, certamente, admirado sua participação irreverente e pedagógica de Plínio Sampaio nos debates). Nem presta atenção ao fato de a candidata do PV ter como vice um empresário cotado na lista Forbes dos bilionários globais; de voar a bordo do jatinho mais luxuoso da campanha; de ter, como assessor econômico, alguém mais neoliberal que o próprio Serra; de ter se filiado a um partido cujo passado é marcado pelo fisiologismo. Muito além da causa ambientalista, este eleitorado vê, no Verde de Marina, o símbolo de uma ideia-base: não basta matar a fome, nem incluir a todos na ordem atual; temos um mundo e um país a inventar.

III.

A existência de uma vasta parcela da sociedade que pensa assim é “algo nunca antes visto na história do Brasil”. Não vem ao caso, neste instante, debater os qualidades e limites da candidata, ou as inconsistências e contradições das forças em que seus planos se apoiaram. O importante, no momento, é perceber que Marina ajudou a expressar um fenômeno que Lula, Dilma e a esquerda que os apoia deveriam festejar, em vez de lamentar. Este setor, que se ampliará cada vez mais à medida em que ficar para trás a fase da mera “inclusão”, será contraponto aos “novos conservadores” e a seu peso imobilizante.

Promover o encontro entre o Vermelho e o Verde – ou seja, entre a esquerda histórica e os desejos de pós-capitalismo que emergem – é algo cuja importância vai muito além das eleições. Desta sintonia, difícil e delicada, porém necessária, dependerá a possibilidade de o Brasil continuar a ser, nas próximas décadas, um símbolo de criação política – muito mais que de “inclusão”.

Será excelente se surgirem, já na caminhada para o segundo turno, sinais de que tal confluência é possível. Eles terão de vir na forma de acenos de Lula, Dilma e partidos aliados a Marina e seu eleitorado. Cabe a quem exerce o governo sinalizar que pretende fazê-lo incorporando novas agendas, projetos e métodos – ou seja, revendo parte de sua prática. Não se deve esperar, em contrapartida, o apoio formal de Marina a Dilma.

Se forem fortes e transmitirem sinceridade, estes gestos dialogarão diretamente com a sensibilidade do eleitorado Verde. Também servirão de contraponto a Serra; sua lógica puramente mercantil; seu governo enodoado pelo declínio da educação paulista, repressão permanente aos sem-teto, sequência de incêndios suspeitos em favelas, maltrato aos moradores de rua, atos extremos como inundar a várzea pobre do rio Tietê, para preservar o trânsito de automóveis nas vias marginais.

Lula conhece como poucos a importância e força dos atos simbólicos. Terá diversas oportunidades para promovê-los. Narrada recentemente pelas novas mídias [4], talvez a luta da Costa do Cacau baiana por um novo projeto de desenvolvimento é um dos terrenos em que a nova aliança poderia ser possível. Lá, a sociedade civil já está gestando, num esforço inédito, a sintonia entre o social, o ambiental e o pós-capitalista.

Situada no Sul da Bahia, estendendo-se das margens do oceano ao coração da Serra do Mar, a Costa do Cacau abriga um dos maiores remanescentes da Floresta Atlântica no Brasil. Empobrecida pelo declínio da lavoura cacaueira, parcialmente socorrida pelo Bolsa-Família (em Ilheus, um de seus polos, 47% dos moradores vivem graças a este direito), a região é agora ameaçada por um projeto extrativista-exportador – que tem, até o momento, o apoio dos governos nacional e baiano.

Uma transnacional indiano-casaquistanesa pretende construir, em área de proteção ambiental, um porto para escoar grandes jazidas de ferro descobertas a cerca de 500 quilômetros, no interior. Fala-se ainda no chamado Complexo Porto Sul, que incluiria uma siderúrgica (a ser implantada em parceria entre a Vale sócios chineses), um aeroporto internacional e um segundo terminal portuário, para exportação de grãos.

Dezenas de organizações sociais mobilizam-se para evitar a concretização do projeto. Mas, à diferença do que ocorreu com outras ambientais recentes, elas têm uma alternativa concreta, formulada em detalhes. Não são anti-desenvolvimentistas: querem outro desenvolvimento. Seu projeto prevê transformar a região num polo de produção agrícola agro-industrial (cacau e chocolates) fortemente cooperativada – incentivando-se, em especial, os assentamentos de sem-terra; de difusão de conhecimento e novas tecnologias; de turismo ambiental e histórico.

Inspirada pelo conceito de eco-sócio-desenvolvimento, de Ignacy Sachs, a proposta preserva a natureza – mas gera, na ponta do lápis, ocupações muito mais numerosas e qualificadas que as oferecidas pelas mega-obras. As organizações que assumem a alternativa frisam que o Brasil é rico demais, cultural e ambientalmente, para reduzir-se à condição de exportador primário.

O licenciamento ambiental, ainda não concluído, sairá em breve, se prevalecerem os trâmites atuais. Para quebrar a rotina e sugerir uma mudança de rumos que enriqueceria seu legado, o Presidente poderia, por meio do ministério do Meio Ambiente, determinar a abertura de audiências públicas sobre o caso. Como novidade, bastaria determinar que, ao invés de ter como pauta a mera aprovação ou rejeição do projeto minero-exportador, elas se dedicassem ao exame comparativo das duas propostas.

É um exemplo, entre tantos outros possíveis. Em gestos singelos como este pode estar a chave para que o Vermelho e o Verde estabeleçam, no Brasil, uma sintonia estratégica que, além de mudar a face do país, teria imensa repercussão mundial

Notas

1. Em 2006, Lula teve 48,6%, contra 41,6% de Geraldo Alckmin. Em 2010, Dilma teve 46,9% contra 32,6% de José Serra. Note-se que a ampliação da diferença ocorreu apesar de Lula, com seu enorme carisma e poder de comunicação ter passado de candidato a apoiador.

2. José Nery (PA), atual senador pelo PSOL, foi eleito em 2002 pelo PT, na condição de suplente de Ana Júlia, que assumiu em 2006 o governo do Estado. Heloísa Helena (AL), agora derrotada, também foi eleita (no mesmo ano) pelo PT.

3. PT, PCdoB e PSB, somados, passaram de 113 para 137 deputados; enquanto a bancada do DEM mingou de 84 para 43 e a do PSDB, de 70 para 53.

4. Além de Outras Palavras, dedicaram-se ao tema a revista Fórum e a agência Envolverde

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