terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Desnacionalização da mídia no Brasil (8)

Na fase mais recente, sob a égide do neoliberalismo, outro perigo passou a rondar os meios de comunicação – o da sua total desnacionalização. Desde a aprovação da Emenda Constitucional 36/2002 e de sua regulamentação pela Lei 10.610, de dezembro de 2002, o capital estrangeiro foi autorizado a adquirir até 30% das ações das empresas do ramo. Já a Lei da TV a Cabo permite o ingresso do capital externo em até 49% e as normas que regem a telefonia fixa e celular e a TV paga em MMDS (via microondas) e em DTH (satélite) não fixam qualquer proteção ao mercado interno. Esta invasão ameaça a produção cultural brasileira, torna a mídia mais vulnerável às manipulações das corporações mundiais e tende a agravar ainda mais a concentração no setor.

Na prática, a desnacionalização já está em curso e relativiza o discurso nacionalista das empresas de radiodifusão, que afirmam temer as operadoras de telefonia no processo da digitalização. “A Globo negociou a venda da Net Serviços (a operadora do grupo) à Telmex, de propriedade do homem mais rico da América, o mexicano Carlos Slim Helu. Helu é dono, no Brasil, da empresa de telefonia celular Claro, da Embratel e da antiga AT&T Latin... A Telmex passa a controlar diretamente 37,5% das ações da Net Serviços e, indiretamente, através da GB, mais 24,99%. Ou seja, ainda que não tenha formalmente o controle da Net Serviços, a Telmex fica com 62,49% das ações ordinárias (com direito a voto) da Net Serviços. E a Globo apenas com 24,99%” [10].

O mesmo já ocorre em outras empresas do setor. Em julho de 2004, a Abril anunciou a venda de 13,8% de suas ações para a Capital International, gestora de fundos de investimentos dos EUA. Já em maio de 2006, ela comunicou “a sociedade com o grupo de mídia sul-africano Naspers, que passa a ter 30% do capital do grupo, adquirido por US$ 422 milhões... É o maior investimento no exterior feito pela Naspers. O negócio tem o respaldo na emenda constitucional de 2002... O acordo envolve a holding Abril S/A, integrada pela Editora Abril, as editoras Ática e Scipione e a TVA”. Vale registrar que a Naspers foi erguida durante o regime de apartheid na África do Sul; três dos seus executivos governaram o país nos períodos mais sangrentos do racismo.

A desnacionalização também atinge a publicidade. Em 1989, entre as dez maiores agências do país, somente quatro eram multinacionais. Em 2004, apenas duas delas continuavam nas mãos de empresas nacionais. Já no setor de TVs por assinatura, a invasão já está quase completa. Em maio de 2006, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) aprovou a compra da operadora de televisão por satélite (DTH) DirecTV, da Hughes Eletronics Corporation, por outra operadora de DTH, a Sky, uma associação entre a News Corporation e a Rede Globo. Com essa fusão, o novo grupo passou a controlar 77% do mercado brasileiro de TVs pagas.

Ausência de legislação reguladora

O processo de concentração da mídia no Brasil, um dos mais vertiginosos do planeta, só vingou devido à total fragilidade da legislação sobre o setor. Desde as normas que iniciaram a regulação da radiodifusão na década de 1930 (decretos 20.047/1931 e 21.111/1932), passando pelo Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962 (Lei nº. 4.137), até a Lei da TV a Cabo de 1995 (Lei nº 8.977), nunca houve barreiras à monopolização. Os “barões da mídia”, cada vez mais poderosos economicamente e influentes politicamente, sabotaram todas as medidas reguladoras. Sob o falso pretexto da “liberdade de imprensa”, eles praticaram a “liberdade dos monopólios”.

Resultado do avanço das lutas democráticas, a Constituição de 1988 até fixou normas para evitar tais distorções. O parágrafo quinto do artigo 220 fixou que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. O parágrafo segundo do artigo 221 definiu como princípio das emissoras de rádio e TV “a promoção da cultura nacional e regional e o estímulo à produção independente”. O artigo 222 determinou que “a propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão é privativa de brasileiros natos ou naturalizados”. O artigo 223 fixou “o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal” e o artigo 224 instituiu o Conselho de Comunicação Social para fiscalizar a aplicação destes preceitos.

A Constituinte foi palco de encarniçadas disputas. A “bancada da comunicação”, composta por concessionários de radiodifusão e formada por 146 parlamentares (26,1% dos 559 constituintes), fez de tudo para evitar mudanças no setor. No outro extremo, os movimentos sociais e partidos progressistas fincaram a bandeira da democratização da mídia. A Frente Nacional de Luta por Políticas Democráticas de Comunicação apresentou emenda popular, em 1987, com uma proposta avançada de redação para o capítulo da Comunicação Social. Prova do caráter estratégico desta batalha, os cinco capítulos sobre o tema foram os últimos a serem acordados, mas ficaram com redações genéricas, dependentes de futura regulamentação.

“A Constituição de 1988 estabeleceu uma situação singular em relação à institucionalidade dos sistemas de comunicação: consolidou os privilégios dos grandes grupos instalados no país, mas também deixou lacunas que dependem da legislação ordinária, abrindo a possibilidade de profundas transformações na organização do sistema de comunicação. No entanto, a correlação de forças que assegurou esses privilégios e travou os avanços da Constituição não se alterou e permanece desfavorável. Em alguns aspectos, a situação atual é ainda mais desfavorável em decorrência da conjuntura aberta pela eleição de Collor de Mello para a Presidência”, registrou, na época, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) [11].

Se fossem aplicados, os preceitos constitucionais poderiam até coibir a concentração e evitar a desnacionalização. Mas nenhum deles foi regulamentado e, portanto, nunca foram aplicados. No reinado entreguista de FHC, uma emenda ainda adulterou a Constituição, permitindo o ingresso de multinacionais. Além disso, a Lei Geral de Telecomunicações e a criação da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) consolidaram a separação entre os serviços de radiodifusão e de telecomunicações, garantindo a privatização do setor e inviabilizando qualquer regulação. Já o Conselho de Comunicação Social só foi instalado em 2002, mas seu funcionamento é precário.


NOTAS

10- Gustavo Gindre. “Globo: discurso nacionalista, negócios nem tanto”. Observatório da Imprensa, 21/01/06.

11- “Proposta dos jornalistas à sociedade civil”. Federação Nacional dos Jornalistas, 1991.

- Extraído do terceiro capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para adquirir seu exemplar, entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico – livro@vermelho.org.br