terça-feira, 4 de outubro de 2011

Privatizar é o “preço justo”?

Por Eduardo Sales de Lima, no jornal Brasil de Fato:

São 112 concessões de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. Até o fim deste ano o governo federal terá de optar: prorrogação ou leilão. A Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) pressiona pelas licitações e lança a campanha “Energia a preço justo”. Especialistas consideram o movimento da indústria um “golpe” que tem o objetivo de privatizar o setor energético brasileiro por completo.


O conjunto de concessões envolve 28% da capacidade de geração, 82% da malha atual de transmissão e 40% da distribuição de energia do país. Os contratos que findaram em meados dos anos 1990 foram prorrogados por mais 20 anos. Portanto, a partir de 2015 começam a vencer, mas é neste ano que a decisão sobre as concessões será tomada. Dentro do governo federal, o consenso é renová-las.

Mas a campanha “Energia a preço justo”, lançada pela Fiesp, pressiona pela realização de leilões públicos de todos os ativos. A entidade argumenta que o leilão público é a melhor maneira para o país encontrar o real valor dos serviços públicos de energia (geração, transmissão e distribuição).

Para alguns analistas e movimentos sociais, contudo, falta contar a outra parte da história. “O que está em disputa são, sobretudo, as hidrelétricas antigas, a geração. A forma de defender que é preciso privatizar é dizer que deve haver novos leilões que beneficiariam a sociedade”, aponta Gilberto Cervinski, coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

Dados do MAB revelam que o que está em disputa é algo que envolve um negócio de R$ 30,6 bi por ano, sendo R$ 9 bi referentes a apropriação pelas geradoras; R$ 8 bi pelas transmissoras e R$ 13,6 bi pelas distribuidoras. As companhias de geração em final de concessão estão localizadas nas regiões Sul e Sudeste, e nos Estados da Bahia e Sergipe. As principais empresas são Chesf, Furnas, Cesp, Cemig, CEEE e Copel. Quanto à transmissão, a maior parcela também pertence a empresas estatais federais (Furnas, Chesf, Eletronorte e Eletrosul) e estaduais Cemig, Copel, CEEE, Celg).

As empresas de distribuição em que as concessões estão vencendo são formadas por oito estatais estaduais, entre elas Copel, Cemig, Celesc, além de seis ex-concessionárias estaduais das Regiões

Norte e Nordeste que foram federalizadas, passando ao controle do Grupo Eletrobrás. Existem ainda duas pequenas estatais municipais e 22 pequenas concessionárias privadas espalhadas pelos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Goiás, Maranhão e Espírito Santo.

A Fiesp sustenta que a abertura de novas licitações e a realização de leilõespara o setor elétrico deverão derrubar o valor médio da energia de R$ 90 para cerca de R$ 20 o MWh (megawatthora) e isso se refletirá diretamente na tarifa aos consumidores. “O Brasil tem um dos menores custos de geração de energia elétrica e paga uma das tarifas mais caras do mundo. Com o vencimento das concessões a partir de 2015, temos uma excelente oportunidade de reduzir o custo desse insumo para toda a sociedade”, defendeu o presidente Paulo Skaf ao Brasil de Fato.

Skaf, que foi candidato ao governo de São Paulo e almeja disputar a prefeitura pelo PMDB, acredita que a mobilização pública pode demonstrar ao governo federal o desejo da população de ver respeitadas a legislação e a Constituição Federal, [tendo em vista que a legislação atual prevê que se realize licitação]. “Além disso, a campanha quer mostrar que há tempo suficiente para a realização de novas licitações para essas concessões. Portanto, a hora é agora”, destaca.

O presidente da Fiesp pondera ainda que o estudo realizado pela entidade demonstra que com a realização de novos leilões, a economia para os consumidores poderá chegar a R$ 918 bilhões em 30 anos, ou R$ 30 bilhões por ano. “Com esse dinheiro, seria possível a manutenção de mais dois programas sociais do tamanho do Bolsa Família, por exemplo”, salienta.

Privatizar

Gilberto Cervinski, do MAB, considera “demagógica” tal defesa. Ele não tem dúvidas de que se o preço da tarifa de energia fosse reduzida de R$ 90,00 para os R$ 20,00, algo em torno de R$ 7,5 bilhões, seriam transferidos à iniciativa privada, através da apropriação das distribuidoras, “porque a Fiesp não propõe a alteração do sistema tarifário por incentivo”, pondera.

A entidade patronal aponta que os 23.000 MW em jogo e durante 35 anos, resultariam em R$ 641 bilhões, ao preço de R$ 90,98/MWh. Enquanto que se for licitado a R$ 20,00, como a Fiesp propõe, a soma seria de “apenas” R$ 145,9 bi na conta do consumidor.

Porém, Gilberto Cervinski discorda desses números. O especialista ainda aponta erro grave nos cálculos. “Fizeram um cálculo vergonhoso, ou foram ignorantes ou fi zeram por má fé. Eles fizeram pelo cálculo da energia potencial, e é errado. O cálculo é feito pela energia firme (geralmente em torno de 55% da potência instalada)”, critica.

“A Fiesp assumiu o protagonismo das empresas privadas. Você acha que ela quer diminuir a taxa de lucro das distribuidoras [e diminuir o preço da tarifa final]? Quem são os donos das distribuidoras? Camargo Correa, Votorantim, empresas integrantes da entidade. E agora eles dizem que têm que cumprir a lei?”, critica Cervinski.

Ele explica ainda que, ao defender uma tarifa a R$ 20,00/MWh, a Fiesp baseia-se num “sistema tarifário estatal”, que leva em conta o custo de produção real, porém mesclado no “sistema por incentivo”, organizado sob os preceitos da livre concorrência, da competição e na “modicidade tarifária”, que é internacionalizada, estabelecidos a partir de 1995.

De qualquer forma, o atual modelo tarifário energético não permite que a conta de luz reflita os baixos custos da geração. Luiz Pereira, presidente do Instituto Ilumina, aponta que, ao diminuir somente o custo da geração [um dos principais argumentos da Fiesp], atua-se somente numa das parcelas da “conta de luz”. “Não é isso que vai fazer mudar. O que pesa na conta final da energia é o modelo e os tributos”, destaca Pereira.

Parcelas

O preço final de uma tarifa de energia elétrica é a soma de várias parcelas. Uma das parcelas é chamada valor da energia, ou seja, da geração. Soma-se ao valor da transmissão, da distribuição e, depois, aos encargos e aos tributos.

“Na minha conta da Light (residente no Rio de Janeiro), por exemplo, observo que o preço mais elevado é o valor da energia da geração. Em seguida, estão o valor da distribuição e depois os tributos e os encargos, que oneram muito hoje. O que a gente paga hoje de energia elétrica não está ligado diretamente só ao custo da energia elétrica (geração)”, explica Luiz Pereira.

Apropriação

Paulo Skaf vê de outra forma. O presidente da Fiesp defende que a partir de 1995, com a mudança no regime de tarifa pelo custo, foi estabelecido um “ambiente competitivo que tem favorecido a modicidade tarifária”, o que pôde, segundo ele, ser demonstrado nos últimos leilões em que foi adotado o critério da menor tarifa. “Os resultados desses leilões apresentaram significativos deságios, favorecendo o consumidor”, pontua.

O fato é que se as indústrias não conseguirem privatizar as estatais, tentarão fazer com que elas forneçam energia ao preço mais barato possível para as distribuidoras de energia. É o que pensa o coordenador do MAB. “Essa campanha serve para, no mínimo, fazer com que as empresas públicas repassem a energia ao preço mais barato possível para que haja transferência de valor”, explica Cervinski.

“Você acha que vão diminuir o preço da tarifa final [caso se barateie o preço da geração]? E se diminuir nos primeiros meses, você acha que no ano que vem eles não vão burlar os dados? Sim, porque os dados que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) analisa para conceder aumento para as distribuidoras são fornecidos pelas próprias empresas. Como é que ela tem condições de dizer não? Ou seja, elas vão se apropriar no final das contas”, prevê Cervinski.

Não bastassem os entraves citados que impedem o barateamento do preço da tarifa fi nal, ele acaba sendo refém de uma “estrutura onerosa” do modelo energético. Ou seja, mesmo que uma indústria vença um suposto leilão, o consumidor residencial ainda será obrigado a arcar com a manutenção de uma termelétrica e iluminação pública, por exemplo; são gastos embutidos na conta de luz. “Não há nada que garanta que quem ganhe o leilão contribuirá com um bom serviço público final e sem onerar o consumidor cativo”, afirma Carlos Kirchner, diretor da Seesp.

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