quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

PIB zero e capitalismo sem risco

Por Gilberto Maringoni, no sítio Carta Maior:

O crescimento zero do PIB no terceiro trimestre é notícia que chega em má hora. O resultado não pode ser apenas debitado nas costas da crise internacional. É conta também de responsabilidade do Banco Central brasileiro.



Remando contra várias previsões de deterioração do quadro externo, o BC subestimou o perigo e decidiu acatar demandas do setor financeiro: realizou cinco temerárias elevações de 0,25% nas taxas de juros, entre janeiro e julho de 2011. A Selic iniciou o ano em 10,75% e bateu 12,5% em agosto. A partir daí, ao longo de três reuniões do Copom, iniciou uma trajetória de leve queda, alcançando os atuais 11%. Em termos nominais, a taxa é mais alta que há um ano. Em parâmetros reais (descontada a inflação), ela caiu de 5,23% para 4,22% entre dezembro e dezembro. Internamente é a mais baixa em 18 anos, mas segue como a mais alta do mundo.

A tais iniciativas, soma-se uma série de restrições ao crédito, abrigadas no neologismo “medidas macroprudenciais”, que tiveram o condão de encarecer o dinheiro e frear o consumo. A justificativa foi a necessidade de se esfriar a economia para conter uma onda inflacionária altista. O BC fez isso em meio ao maior solavanco do capitalismo em oitenta anos.

Frustração de expectativas

Aliadas aos efeitos da crise mundial – com destaque para a retração da demanda chinesa -, as decisões do BC no primeiro semestre estão exibindo suas consequências agora. O PIB zero não é apenas o retrato de um quadro de estancamento, cuja reversão ainda é uma incógnita. Ele também derruba as expectativas de investimento produtivo privado. Sem esperança de crescimento, o empresário pensa várias vezes antes de jogar seu dinheiro na expansão da capacidade produtiva em época de retração de demanda. O consumo das famílias caiu 0,1% em relação ao trimestre abril-junho. A perspectiva para os últimos três meses do ano é também da queda da geração de empregos.

O crescimento do PIB foi de 0,5% nos Estados Unidos e de 0,2% na Europa neste mesmo período, um quadro ligeiramente melhor que o nosso. Detalhe: aquelas são economias virtualmente estagnadas. O diferencial interno é a ausência de uma crise bancária de proporções devastadoras, como as ocorridas de 2008 para cá ao norte do equador.

Riscos bancários

A diferença tem explicação. Bancos estadunidenses e europeus se expõem a riscos. Aqui não.

O sistema bancário dos EUA arriscou-se ao buscar expandir lucros – e reproduzir um volume da capital que não encontrava rentabilidade rápida no setor produtivo – através da venda de hipotecas a setores da população de baixa renda ou de ganhos irregulares (o chamado subprime). Independentemente das tramóias e crimes financeiros cometidos, o certo é que o sistema bancário do país se expôs a incertezas, perdeu e ficou descoberto. Parte quebrou e parte sugou vultosas somas de socorro estatal.

Na Europa, instituições de países maiores – Alemanha e França, em especial – enfrentam ameaças de default da Grécia, da Itália, da Espanha e Portugal. Se o calote se concretizar, haverá uma quebradeira bancária e a zona do euro entrará numa depressão prolongada, com decorrências imprevisíveis para o resto do mundo.

Os perigos motivaram duas operações políticas: A) Trocas de governo, com requintes de golpe de estado, na Grécia e na Itália, e a eleição da extrema-direita na Espanha e B) Aberturas de linhas de crédito de €130 bilhões à Grécia e € 300 bilhões à Itália (apenas para 2012).

Títulos seguros

O sistema bancário brasileiro (estatal e privado), embora tenha ampliado a oferta de crédito nos últimos anos – de 26% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2000 para 47,8% em agosto último – não tem ali sua fonte principal de ganhos. Elas estão na compra de títulos da dívida mobiliária e na segurança desse tipo de investimentos. O governo Dilma, como seus antecessores, já deu mostras de que não poupará esforços para honrar somas que alcançam R$ 235 bilhões ao ano para remunerar os detentores dos títulos públicos.

Para reunir essa bagatela, o governo não titubeou em realizar um corte orçamentário de R$ 50 bilhões no primeiro semestre, em renovar a Desvinculação de Receitas Orçamentárias (DRU), que permite cortes orçamentários por decreto, além de manter funcionando o mecanismo do superávit primário. As três iniciativas visam manter a rentabilidade dos títulos em mãos do chamado mercado e turbinar um capitalismo sem riscos para poucos e grandes.

Dez vezes o Proer

Assim, não surpreende que os bancos apresentem aqui lucros recordes, mesmo durante a crise externa. O montante drenado anualmente pelo governo ao sistema financeiro equivale a quase dozes vezes o que o governo FHC destinou a esses mesmos setores sob a rubrica do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), entre 1995 e 1999. Combatido pelo Partido dos Trabalhadores (PT), então na oposição, o programa injetou cerca de R$ 20 bilhões, a preços da época, em bancos em dificuldades.

O socorro permanente aos bancos está a pleno vapor. Sua conseqüência secundária, além dos lucros privados, é evitar uma crise no setor, o que levaria o país ao precipício. Assim, não há aqui uma blindagem original ou uma política econômica alternativa ao que vem sendo aplicado no resto do mundo.

É irônico que uma medida destinada a favorecer o setor financeiro – juros elevados – e que resulta em câmbio apreciado, que por sua vez penaliza a indústria – acabe por se constituir em uma muralha de proteção à economia nacional, juntamente com reservas cambiais elevadas, a expansão do mercado interno e a demanda chinesa por commodities.

Superação da crise de 1929

Uma analogia pode ser feita com a situação enfrentada pelo Brasil após a crise de 1929. Na época, o país tinha 37,6 milhões de habitantes e o café respondia por 70% da receita de exportações. Sem indústrias de monta e com uma economia baseada em produtos agrícolas, o país vivia ao sabor da economia mundial. A prioridade máxima dos sucessivos governos até então era o favorecimento do setor cafeeiro. Isso se dava principalmente através da política de valorização do café, estabelecida em 1906.

Ela viabilizou intervenções do Estado no mercado cafeeiro, comprando e estocando o produto, com o objetivo de regular a oferta, fazendo frente às seguidas oscilações da taxa de câmbio e da demanda externa. Os financiamentos dessas compras eram feitos com empréstimos externos. A prática ficou conhecida como socialização de prejuízos.

Com o controle do excesso de produção, o preço do café tendia a valorizar-se, aumentando a rentabilidade do setor. Em tempos normais, a melhor aplicação possível para este excedente seria reinvesti-lo na própria produção cafeeira, que voltaria a se expandir. No entanto, sem demanda que escoasse o volume produzido, a medida logo encontraria seu limite.

Marcas anticíclicas

Os rendimentos obtidos pelos cafeicultores deixaram de ser reinvestidos no setor, pois a demanda externa se contraíra. A saída foi drenar tais recursos para a indústria, que tinha possibilidades de expansão. Como o câmbio estava depreciado – isto é, o mil réis se encontrava defasado em relação à libra esterlina, a moeda dominante no comércio internacional – não havia estímulos às importações. Os produtos de fora eram caros para os brasileiros. Assim a indústria voltou-se para atender ao mercado interno em expansão.

Ao mesmo tempo, a política de valorização do café, por seu efeito multiplicador na economia, teve características anticíclicas que impediram o aprofundamento da crise. Os fortes subsídios estatais na compra da produção foram decisivos para que, em 1933, a economia começasse a se recuperar.

Quem primeiro notou o fenômeno foi Celso Furtado, em Formação econômica do Brasil. Segundo ele, o mercado interno foi o motor da recuperação econômica, num processo inédito até então. A produção industrial e mesmo a agrícola voltaram-se, em sua maior parte, para o consumo local. O pólo dinâmico da economia deslocou-se do setor exportador para a demanda doméstica, que gerava maiores lucros e atraía mais investimentos. A produção industrial cresceu cerca de 50% entre 1929 e 1937.

Mercado interno

Em 2008, a rápida recuperação da economia brasileira também se deu pela via do mercado interno, através de aumentos dos financiamentos do BNDES, de investimentos estatais em infraestrutura, em aumentos reais do salário mínimo e em políticas sociais focadas, entre outras medidas. Mesmo assim, o repique da crise bate às portas.

Nas últimas semanas, o governo tenta reverter os estragos feitos pela exacerbação de barbeiragens em favor da alta finança no primeiro semestre e fazer frente às dificuldades globais. Uma série de medidas de estímulo à atividade industrial foi anunciada, para tentar aquecer o setor. Ainda são iniciativas tópicas. Se quiser enfrentar de verdade os gargalos da indústria e impedir um maior contágio da crise, o governo deverá intervir com ousadia no dueto juros-câmbio. Isso implica baixar os primeiros e centralizar o segundo.

É incerta a reversão rápida das expectativas negativas e da tradicional aversão ao risco do setor privado. Mas talvez com mais ousadia seja possível evitar que o tsunami internacional chegue aqui como tsunami mesmo.

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