quinta-feira, 8 de março de 2012

Em defesa do papel regulador da Ancine

Do Observatório do Direito à Comunicação:

Entidades da sociedade civil com atuação geral e no campo da comunicação apresentaram propostas comuns nas consultas públicas da Ancine (Agência Nacional do Cinema) que regulamentam a Lei nº 12.485/11. A CUT (Central Única dos Trabalhadores), o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), o Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e o Coletivo Intervozes registraram contribuições que enfatizam a importância do papel regulador do audiovisual da Agência.

Ao apresentar as propostas, também apoiadas pela Fitert (Federação Interestadual de Trabalhadores em Rádio e Televisão) e pela Arpub (Associação das Rádios Públicas do Brasil), as organizações mostraram-se ainda preocupadas com a 'Declaração dos direitos dos cineastas', publicada por um pequeno grupo de produtores, que busca explicitamente capturar a Ancine para seus interesses particulares. A declaração foi publicada às vésperas do fechamento do processo de consulta pública.

A Lei nº 12.485 e o papel regulador da Ancine têm sido alvo de ataques, também, por parte do setor privado. A ABTA (Associação Brasileira de TV por Assinatura) e a operadora SKY são os principais porta-vozes desse segmento. Esta última, inclusive, veiculou recentemente campanha enganosa entre seus assinantes para se contrapor à lei. Para Renata Mielli, diretora do Barão de Itararé, o que há de comum entre as manifestações de empresários e cineastas é uma visão ultraliberal de defesa de um mercado que atua sem regras e sem regulação. “Para ambos o ‘negócio do audiovisual’ lhes pertence e não está vinculado a qualquer interesse público”, afirma Renata.

Contribuições

Os dois pontos principais das contribuições apresentadas pelas organizações da sociedade civil tratam dos temas de coligação e controle e da possibilidade de dispensa do cumprimento de cotas, que afeta diretamente os produtores e programadores independentes.

A importância do tema de coligação e controle se dá porque ele incide na classificação das programadoras brasileiras independentes, para quem estão reservados 1/3 das cotas de canais. Nos textos em consulta, a Agência atenua a definição de controle e retira do texto original as possibilidades de sanções sobre as empresas. João Brant, membro da Coordenação Executiva do Intervozes, ressalta que no texto em revisão, o poder estatutário ou contratual de veto em qualquer matéria ou deliberação era um elemento que fazia parte da própria definição de controle. “Com a versão nova proposta pela Ancine, o poder de veto deixa de ser inclusive um indício de preponderância nas deliberações sociais, o que pode gerar situações em que uma programadora exerce um controle ‘de fato’ sobre uma empacotadora, com poder de veto nas matérias sobre empacotamento (como entrada de novos competidores ou formação do lineup), e ainda assim ser considerada programadora brasileira independente”, alerta Brant.

A proposta apresentada pelas entidades modifica esses textos, tomando como referência a definição da resolução 247 da Comissão de Valores Mobiliários, que é mais forte que a definição básica da Lei das Sociedades Anônimas, usada como referência pela Ancine. Elas propõem ainda que 'poder de veto em qualquer questão relacionada à programação ou ao empacotamento' seja incluído entre os indícios de preponderância nas deliberações sociais. A contribuição apresentada recoloca no texto da Instrução Normativa 91 os mecanismos que dão à Ancine as condições de exercer plenamente seu poder regulatório e fiscalizatório. Segundo Guilherme Varella, advogado do Idec, “a regulação do audiovisual é fundamental para equilibrar os interesses dos atores envolvidos, evitar assimetrias e reconhecer a importância estratégica do segmento”.

Dispensa das cotas

O outro tema central das contribuições é a possibilidade da dispensa de cotas, prevista pela Lei nº 12.485 “em caso de comprovada impossibilidade de cumprimento integral”. Para Renata Mielli, o texto posto em consulta tinha problemas por não detalhar bem esses critérios - deixando a cargo de regulamentação posterior - e abrir a possibilidade de essa dispensa se dar não apenas em casos de impossibilidade técnica ou econômica, mas também de inadequação do perfil da programação. “Ao sugerir que um canal possa ser dispensado das cotas por motivos como esses, a agência desestimula a criatividade dos programadores na busca de programação brasileira e independente que combine com seu perfil de canal, e abre um enorme flanco para que o previsto na lei como exceção seja considerado possibilidade corrente”, aponta a diretora do Barão de Itararé.

A Secretária Nacional de Comunicação da CUT, Rosane Bertotti, ressalta que “mesmo que não conflitantes com a lei, essas possibilidades enfraquecem seu espírito original de garantia de conteúdo nacional e independente no horário nobre em todos os canais de espaço qualificado”. Na consulta, as organizações propuseram a retirada do critério “perfil de programação” como um dos que permite a dispensa de cotas, e incluem outros critérios que buscam restringir as possibilidades de dispensa. Além dessas duas grandes questões, as organizações contribuíram em relação às regras sobre reprise e ao tempo de publicidade.

Representante dos cineastas?

A afirmação do poder regulador da Ancine feita pelas organizações na consulta pública deixa evidente o conflito com o manifesto apresentado pelos cineastas Luiz Carlos Barreto, Cacá Diegues e Renata de Almeida Magalhães. O manifesto, que parafraseia a Declaração de Direitos de Virgínia, escrita no ano de independência dos Estados Unidos, afirma que “todo o poder da Ancine emana dos cineastas, aqui englobando todos os que representam e exercem os diversos segmentos da produção audiovisual, e, em seu nome, deve ser exercido”.

Para Renata Mielli, essa afirmação é completamente absurda e desconsidera todo o caráter público das agências, que devem responder ao interesse público, e não a interesses particulares de qualquer segmento. Renata lembra que a lei que cria a agência a define como um órgão de “fomento, regulação e fiscalização da indústria cinematográfica e videofonográfica”, e a define como “dotada de autonomia administrativa e financeira”.

Esses poderes são questionados pelo manifesto, que afirma que a agência não deveria misturar as atribuições de normatização, fomento e fiscalização. Guilherme Varella, do Idec, lembra que entre as atribuições das agências estão justamente as de “construir normas e critérios para qualidade dos serviços e fiscalizar infrações, falhas e abusos, contribuindo de forma essencial para a proteção dos produtores, mas também dos telespectadores, que consomem esses serviços culturais e devem ter seus direitos garantidos”.

O manifesto também é criticado pelo representante do Intervozes. “É surreal que em pleno século XXI surjam peças como essas, que reforçam assumidamente uma visão clientelista de Estado e propõem de forma aberta a captura de uma agência reguladora por um setor”. O manifesto afirma textualmente que a Ancine é “representante dos cineastas” e propõe que os debates sobre as decisões sejam realizados antes de as propostas serem colocadas em consulta pública. Para Brant, contudo, os cineastas que têm essa visão são minoria. “A maioria dos produtores tem trabalhado de maneira séria, contribuído com as consultas e dialogado com a Ancine sem buscar qualquer tipo de privilégio”.

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