terça-feira, 10 de abril de 2012

Noriega e a saúde de Hugo Chávez

Do blog Viomundo:

O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, está em Havana para a terceira sessão de radioterapia, depois de ter feito duas cirurgias por causa de um câncer na pélvis. Os detalhes sobre o tumor original nunca foram informados. A falta de transparência deu margem a uma ampla gama de especulações. Na semana passada, Chávez, de 57 anos de idade, fez declarações dramáticas durante uma missa: “Dê-me vida, ainda que seja dolorosa, mas dê-me vida. Dê-me sua coroa, Cristo, que eu coloco. Dê-me sua cruz, cem cruzes, Cristo, que eu as levo, mas não me leve ainda, porque ainda tenho coisas para fazer por esse povo e por essa pátria”.
O tom do apelo jogou água no moinho dos que dizem que o estado de saúde de Chávez é gravíssimo, embora o governo negue que tenha havido metástase do tumor original. Deu origem também a outro tipo de especulação.

A oposição venezuelana, que inicialmente apostou que a dúvida sobre o futuro de Chávez tiraria votos do presidente, candidato à reeleição em outubro, agora teme que o drama pessoal se transforme em uma arma para convencer eleitores a dar a Chávez aquele que seria seu último mandato.

A “tese” sobre a morte iminente de Chávez, difundida em todo o mundo — inclusive no Brasil, pelo jornal O Globo — tem relação direta com um artigo escrito por Roger Noriega, um diplomata estadunidense. Roger foi citado na reportagem do jornal carioca que, aliás, descobriu, sem nomear fontes, o itinerário exato do câncer, que “já se alastra para o fígado”. “Recentemente, em artigo intitulado ‘A Grande Mentira de Hugo Chávez e a Grande Apatia de Washington’, Roger Noriega, subsecretário de Estado para Assuntos do Hemifério Ocidental no governo de George W. Bush e ex-embaixador dos EUA na OEA, afirmou que o câncer está se propagando mais rapidamente do que o esperado e poderia causar a sua morte antes mesmo das eleições presidenciais”, escreveu O Globo.

Diante da escassez de informações objetivas, é impossível desmentir o prognóstico. Porém, é importante registrar — o que O Globo não fez – que Noriega nem sempre é levado a sério em Washington, especialmente depois de ter sugerido em artigo que a Venezuela seria fornecedora de urânio enriquecido para o Irã, resultado de um “programa nuclear secreto”. Por isso, convocamos a repórter Heloisa Villela a explicar melhor quem é este personagem. Não fosse pela gravidade do tema, teríamos publicado na seção de Humor:

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O homem que enriqueceu urânio na Venezuela


Por Heloisa Villela


Ele é o rei dos alarmes… falsos. “Nem os direitistas da Venezuela levam o Noriega a sério”, me disse, ao telefone, um bem informado cientista político americano que conversa, regularmente, com parlamentares de todos os matizes na Venezuela. Os venezuelanos podem não dar bola, mas muita gente repercute os boatos que Noriega espalha. Por exemplo, a respeito da saúde do presidente Hugo Chávez. “Olha”, garantiu o mesmo analista, “o câncer do Chávez pode até estar avançando, mas o Noriega, com certeza, não tem informações privilegiadas sobre o assunto”.


O Noriega em questão não é o conhecido panamenho Manuel Noriega e sim o americano Roger, participante ativo do escândalo Irã-Contras, no governo Ronald Reagan, mais tarde promovido a influente articulador da política externa americana para toda a extensão territorial ao sul do Texas. Durante o governo Reagan, ele trabalhava na Agência de Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (USAID). Mesmo depois do fiasco da venda clandestina de armas ao Irã para financiar os contras da Nicarágua somada ao tráfico de drogas da América Central para a Califórnia, a mente criativa do ultraconservador tem, até hoje, o ouvido de parte da imprensa e dos políticos dos Estados Unidos.


Roger Noriega foi assessor de deputados e senadores, sempre os ligados às comissões de relações exteriores da Câmara e do Senado. Na assessoria do conhecido senador direitista Jesse Helms, Noriega foi coautor da lei Helms-Burton, que tornou ainda mais duros os termos do embargo a Cuba, depois de quarenta anos. Além do Congresso, ele trabalhou na missão americana junto à OEA e atingiu o ápice da carreira diplomático-política no governo George W. Bush, quando foi empossado como subsecretário de Estado para o Hemisfério Ocidental (ou seja, as Américas). Foram apenas dois anos. Quando a então secretária de Estado Condoleeza Rice transferiu todas as responsabilidades relativas a Cuba para outro grupo, ele deixou o governo.


Mas não largou a América Latina. Continuou, e continua trabalhando para isolar a Venezuela, foi contratado para fazer o lobby, no Congresso, em favor dos golpistas de Honduras e no passado também deixou as impressões digitais no golpe estadunidense que derrubou e sequestrou o presidente do Haiti, Jean Bertrand Aristide, em fevereiro de 2004. Com orgulho, Noriega chegou a se referir ao golpe em depoimento diante do Comitê de Relações Exteriores do Senado: “A renúncia de Aristide pode ter sido o meu maior momento”.


Provavelmente. Nos últimos anos, ele se dedicou a escrever artigos, dar entrevistas e disseminar conclusões duvidosas a respeito dos governos da América Latina que discordam das políticas de Washington. Artigos, em geral, desmentidos pela realidade. Ou por informações mais precisas que vêm à tona mais tarde. Roger Noriega é analista do American Enterprise Institute, uma organização de ideólogos direitistas de Washington.


Este artigo é um exemplo do que ele costuma fazer: “O Programa Nuclear Secreto de Chávez” (http://www.foreignpolicy.com/articles/2010/10/05/chavez_s_secret_nuclear_program). O título diz quase tudo. Sem dados objetivos e com muita especulação, ele sugere que o governo da Venezuela estaria fornecendo urânio enriquecido ao programa nuclear do Irã. “Mas a Venezuela nem produz urânio”, disse Mark Weisbrot, economista da Universidade de Michigan, especialista em América Latina e codiretor do Centro de Pesquisa Econômica e Política, em Washington. Que o economista mais afinado com as causas liberais critique o artigo de Noriega, já seria de se esperar. O que surpreende são as avaliações dos diplomatas do Departamento de Estado, reveladas em documentos que o site Wikileaks tornou públicos. Eles ridicularizam a ideia de que a Venezuela estaria contribuindo para o desenvolvimento de armas nucleares no Irã. Aparentemente, apenas Roger Noriega, e quem repete as declarações dele, estavam levando a possibilidade a sério.


No filme “South of the Border” (em português, poderia ser Ao Sul da Fronteira), do diretor Oliver Stone, até mesmo Hugo Chávez brincou com as declarações de Noriega. E mostrou ao cineasta a fábrica de processamento de milho que o megafone neoconservador apontou como fonte do urânio secreto, destinado ao Irã. No filme, Chávez aproveitou a oportunidade para tirar um sarro: “É aqui que fabricamos a bomba atômica iraniana”, disse a Oliver Stone.


Como bem observou o jornalista Charles Davis, no Right Web, em março do ano passado, o primeiro artigo de Noriega sobre o assunto fazia o alarme e promovia o terror, a tática mais comum. Porém, depois de ridicularizado, ele mudou o discurso. No documento sobre política externa, apresentado como um guia ao Congresso, ele eliminou todas as referências a possíveis contribuições da Venezuela ao programa nuclear do Irã.


Outro dos boatos famosos de Noriega foi sobre a embaixada do Irã em Manágua, na Nicarágua. Tudo parte da fabricação da tese de que o Irã está tentando dominar a América do Sul e a América Central. Este boato ganhou espaço na mídia conservadora e peso político quando, finalmente, foi encampado pela cabeça do Departamento de Estado. A secretária Hillary Clinton repetiu as suspeitas: “Os iranianos estão construindo uma embaixada enorme em Manágua. Nós podemos imaginar para que…”, disse ela, logo após tomar posse, em 2009.


O jornal The Washington Post tentou encontrar a tal embaixada e não conseguiu. Às gargalhadas, o presidente da Câmara de Comércio da Nicarágua, Ernest Porta, disse ao jornal norte-americano: “Essa embaixada não existe”. O economista Mark Weisbrot também riu quando comentou os boatos e rumores espalhados por Noriega. “Tenho certeza que se você analisar os textos dele, vai encontrar vários boatos que ele inventou ao longo dos anos e que são impossíveis de se comprovar. O que ficou claro é que não eram verdadeiros”, disse.


Depois das gargalhadas, ele tentou explicar como uma pessoa como Roger Noriega, que participou do escândalo Irã-Contras, promoveu golpes no Haiti, em Honduras e na Venezuela e foi desmentido, publicamente, mais de uma vez, não perde toda a credibilidade em Washington.


– Isso se explica somente pela maneira que Washington e que a imprensa de Washington funcionam. Se você olhar para a política externa, por exemplo, está mais do que estabelecido que a guerra do Iraque foi um desastre, não deveria ter acontecido, foi uma invasão feita com base em premissas falsas. Ainda assim, todo mundo que você vê sendo entrevistado na mídia americana deu apoio à guerra. Quem foi contra — e estava certo — foi eliminado, agora, de comentar sobre a proposta de uma guerra contra o Irã. É um critério muito estranho. Mas todo mundo que você vê comentando na televisão ou é do governo ou foi do governo ou é pago pelo governo. O Noriega representa a ultradireita e muitos jornalistas não o levam mais a sério. Mas ele ainda consegue, volta e meia, um espaço na mídia.

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