domingo, 29 de julho de 2012

O autoritarismo antigreve de Dilma

Por Maurício Caleiro, no blog Cinema & Outras Artes:

O modo como o governo Dilma Rousseff vem lidando com as greves do funcionalismo público deveria suscitar preocupação não apenas entre os diretamente envolvidos na questão, mas em todos que prezam pelo avanço democrático e pelo respeito aos direitos trabalhistas.


Como veremos no decorrer deste texto, o Decreto 7.777, publicado no último dia 25 e que prevê a substituição dos grevistas de órgãos federais por servidores estaduais e municipais, é o ponto mais baixo de um processo em que a conduta do governo tem se caracterizado pela falta de diálogo, pelo recurso ao ilusionismo financeiro, pela tentativa de jogar a opinião pública contra os grevistas - e, agora, com essa medida draconiana, por um autoritarismo incompatível, na forma e no conteúdo, com o país democrático, lar de políticas sociais avançadas e player internacional que o próprio governo constantemente alardeia sermos.

Já no início, uma guinada conservadora
Eleito como um governo de centro-esquerda que prometia aprofundar as conquistas da Era Lula, a administração comandada por Dilma, não obstante seus méritos pontuais, tem se caracterizado, desde o primeiro momento, pela primazia irrestrita que concede ao campo econômico em relação às demais áreas – inclusive Educação e Saúde – e pela falta de diálogo com a sociedade.

A prioridade irrestrita ao econômico que caracteriza a administração de Dilma se traduziu, em um primeiro momento (fevereiro de 2010), na readoção de um receituário à moda neoliberal, com um duríssimo choque anticíclico que teve como meta não apenas aumentar o então já alto superávit primário, mas zerar o déficit nominal [gastos menos despesas, incluindo pagamento de juros]. Em nome desse agrado aos bancos e ao mercado financeiro foi então anunciado um corte de R$50 bilhões nos gastos públicos, que afetou diretamente Saúde, Educação e demais áreas sociais (com exceção dos programas de renda mínima), estabeleceu um salário mínimo sem aumento real, fixado em mais que módicos R$545,00, e determinou a suspensão de novos concursos e de contratação de aprovados em concursos anteriores.

Kill the messenger
No mesmo mês de fevereiro este blog denunciou o caráter recessivo das medidas, sua incoerência com o que fora defendido durante a campanha eleitoral e, sobretudo, o retrocesso que, abrindo flancos político-ideológicos potencialmente danosos à centro-esquerda, significava em relação aos avanços do governo Lula. Só faltou sermos apedrejados por blogueiros e comentaristas ainda entusiasmados pela vitoria eleitoral e inconformados com o desplante de se criticar um governo que mal entrava em seu segundo mês, num cenário de crise, pelo que viam como meros ajustes na economia.

O jornalista e blogueiro Luis Nassif foi uma das raríssimas vozes da blogosfera a, no calor da hora, apontar a inadequação e a prognosticar danos futuros à economia brasileira por conta de tal “pacote econômico” - sem o qual, como ele demonstra em coluna da semana passada, o momento econômico atual tenderia a ser outro, bem melhor. Mas a equipe econômica chefiada por Mantega levaria meses para se dar conta do desacerto e voltar a apostar na expansão do crédito e do consumo e numa ralentada retomada de investimentos estatais como forma de melhorar o desempenho da economia – sempre sem exorcizar a obsessão com os altos superávits, o que acaba por levar, inexoravelmente, a resultados contraditórios, dos quais a atual situação do servidor público é, como veremos, exemplo cabal.

Perfis públicos
Antes, porém, examinemos a questão da falta de diálogo do governo com a sociedade, que é hoje traço distintivo do poder federal. Ela foi inicialmente interpretada como uma impressão advinda da mudança de estilo trazida pela sucessão presidencial, do expansivo e brincalhão Lula para a mais reservada e austera Dilma. Criou-se inclusive um anedotário a respeito, o qual, por sua vez, não esteve livre dos preconceitos que de ordinário imbuem as questões de gênero em um país profundamente machista.

Por outro lado, a própria mídia, interessada em criar uma falso antagonismo entre a atual mandatária e o seu antecessor - em detrimento deste -, acabou por ressaltar, em inúmeras matérias, a “seriedade”, “determinação” e “objetividade” da presidenta como características positivas, em oposição ao que sempre viu como excessos, mau gosto e populismo inculto de Lula, a quem nunca engoliu. Ao final, como parece indicar o grau de aprovação pessoal de Dilma, o país não só se acostumou, mas acabou por afeiçoar-se ao seu estilo.

Silêncios do palácio
Ocorre, porém, como agora fica dolorosamente claro, que a questão nunca se restringiu a uma mera mudança de estilos pessoais na Presidência. É provável, na verdade, que as discussões sobre o tema tenham colaborado para desviar o foco do problema real: o fato de que foi a administração Dilma como um todo que abandonou a saudável prática de dialogar constantemente com a sociedade, vigente nos oito anos anteriores, e, sob uma liderança por demais concentradora e a primazia de uma área econômica que se crê onipotente e tem sempre a última palavra, isolou-se em tecnicismos e certezas palacianas.

No governo Lula, o diálogo constante com a sociedade – através de lideranças, sindicatos, grupos de trabalho, ONGs -, além de distender as tensões e, em algum grau, facilitar a empatia entre um lado e outro, dava a ambos, em curtos intervalos de tempo, uma noção dos termos pretendidos pelos requerentes e pelos donos das canetas. Sem isso, a atual administração dá frequentemente mostras de estar sendo surpreendida pelas demandas trabalhistas (o que é evidentemente falso, já que ela acompanha os sindicatos por outros canais, unilaterais), reage mal, demora uma enormidade para agendar uma mera reunião conciliatória (mais de um mês, no caso dos professores federais) e as raras contrapropostas que faz trazem a evidência do mais primário improviso.

Quem não se comunica...
No primeiro dos textos deste blog dedicados à greve dos professores federais, afirmei que a paralisação teria sido facilmente evitada se o governo tivesse simplesmente mantido o diálogo aberto. Tal premissa tem sido corroborada também pela greve dos funcionários públicos federais como um todo, que envolve 25 categorias profissionais, e que só foi deflagrada quando ficou claro que não havia possibilidade de diálogo. A nota oficial difundida pela CUT em relação ao decreto 7.777 confirma os aspectos deletérios do isolamento governamental: “Para resolver conflitos, o caminho é o diálogo, a negociação e o acordo. Sem isso, a greve é a única saída”.

Na ausência de tais canais de comunicação, o confronto entre grevistas e patrões, natural numa democracia, é deslocado do espaço público presencial de debate e negociação - que num governo democrático, trabalhista e alegadamente de centro-esquerda deveria ser a mesa de negociações - e virtualmente restrito, nas condições e frequência que o governo determinar, à arena pública – a qual, nas sociedades contemporâneas, é dominada pela mídia.

Mídia e mercado
E a mídia corporativa, como está sobejamente demonstrado na literatura a respeito, tem hoje seus interesses de tal forma consonantes aos do mercado que se tornou não apenas seu porta-voz, mas uma sua parte constituinte. Com ele divide, naturalmente, a adoção do receituário neoliberal como panaceia de todas as horas, evidência que o atual rumo dos países europeus em crise não apenas corrobora mas cujos efeitos, através do esgarçamento de seu tecido social, denuncia.

Para compreender como o governo Dilma tem conseguido, em larga medida, instrumentalizar a mídia – de ordinário, refratária ao governo petista - a seu favor durante as greves deste ano é preciso ter claro a afinidade entre a orientação neoliberal das corporações midiáticas - aí incluída sua repulsa pelo funcionalismo público e por tudo que seja estatal, com exceção das verbas publicitárias – e a hesitação de um governo em profundo conflito entre, de um lado, o “modelo” de retomada do papel do Estado tal como inicialmente a aliança federal petista propusera e, de outro, as restrições impostas pelo economicismo hegemônico no interior da administração, o qual tende a açular ainda mais, no interior da administração, os temores relativos à crise econômica mundial. (A respeito da aliança mídia-governo em relação à greve dos professores, vale muito a pena ler este post de Weden.)

Questões fundamentais
Como dito parágrafos acima, a situação dos servidores públicos ora em greve é didaticamente exemplar do efeito de tais contradições: ao mesmo tempo que eles assistiram, nos anos Lula, à notável expansão percentual de sua presença no mercado de trabalho nacional, veem-se sujeitos a longos períodos sem aumentos salariais e, no mais das vezes, a trabalhar em situações que variam do precário ao intolerável; enquanto boa parte do país se refestela – ainda que a custa de endividamento - numa festa de consumismo, desenvolvimentismo, otimismo e outros ismos, eles viram sua aposentadoria futura ser substancialmente reduzida, numa medida que combinou agressão à expectativa de direito de alguns e regressão dos direitos trabalhistas potenciais de toda a sociedade; enquanto uma maioria de brasileiros afirma, nas pesquisas, a prioridade que deve ser dada a educação, saúde e segurança pública, professores, médicos do SUS e policiais continuam não apenas sub-remunerados mas subvalorizados socialmente.

Queremos ou não ser uma nação com nível educacional aprimorado? Vamos realmente investir num modelo de saúde pública inclusivo e de qualidade, que preserve o cidadão tanto das filas insuportáveis do atual sistema público quanto da farra dos planos de saúde? Está no horizonte do país realmente enfrentar a questão da segurança pública de modo a erradicar nossos pornográficos índices de violência, de abuso policial e de corrupção? A resposta a essas perguntas passa, necessariamente, pela valorização não apenas do professor, do médico e do policial, mas de todo o aparato de recursos humanos que possibilita a ação do Estado.

E é nesse contexto, como um primeiro e necessário choque de realidade, que se insere a greve dos servidores. O movimento não é, de forma nenhuma, um episódio de mesquinhas disputas partidárias, como alguns aspones mal intencionados querem caracterizar, mas parte de um embate decisivo sobre que modelo de desenvolvimento vamos priorizar como país, qual lugar os recursos humanos e o próprio Estado enquanto agente social e ente econômico vão nele ocupar.

Autoritarismo e regressão
Porém ao recusar o diálogo e manter-se inflexível, ao apelar a artifícios enganadores e, sobretudo, ao radicalizar e lançar mão do instrumento por si autoritário do decreto para, na prática, violar o instituto do direito de greve, o governo Dilma transpassa a barreira do aceitável em uma sociedade democrática e suscita sérias dúvidas quanto às suas intenções e horizontes. Para a CUT, “Esta inflexão do decreto governamental nos deixa extremamente preocupados. Reprimir manifestações legítimas é aplicar o projeto que nós derrotamos nas urnas.”

Pois graças à inflexibilidade, à atitude de confronto e, agora, à tentativa de esvaziar uma forma de protesto prevista na lei incitando fura-greves e procurando inseminar cizânia entre os próprios trabalhadores, assiste-se à irrupção de uma forma de autoritarismo inédita no passado recente do país, patrocinada por um governo que se publiciza como progressista e de centro-esquerda.

8 comentários:

Audo disse...

To be or not to be. It is a questhion!... Dilma com a sua atitude, só mostra a que não veio na prática. Lula deve estar rolando sem sono na rede!...Dilma é como aquele cientista que tem a fórmula básica e por não ter aprendido a falar a lingua do povo não sabe como trasnferir o conhecimento e, por isso, vai levar pro túmulo tudo o que aprendeu. Mas ainda é tempo de aprender. Basta ter apenas um pouquinho de humildade!...

Ana Cruzzeli disse...

Há problemas sérios nos vários movimentos sindicais nos ultimos tempos. Eu particularmente observo isso desde 2003.
Muitas lideranças não dão voz ao contraditorio. Aí qualquer movimento perde a credibilidade.
Aqui em Brasilia nas minhas pesquisas descobri que poucos sindicatos colocam dois microfones. Um pro a pauta outro contra, um em favor de continuar a greve outro de continuar.
Estou falando porque tenho provas disso, documento assinado por diretor sindical que antes dizia que todos teriam voz e na hora cortaram os microfones.

ISSO ACONTECEU COMIGO e o sindicato na gestão atual do SINPRO está ficando MALUCA.
Não sei se esse é o caso desses dois sindicatos que estão levando essa greve, mas procure saber se eles estão dando vez as vozes contrárias a continuidade da greve.

Minha intuição e minha experiencia de 9 anos diz que não.
Aí não, aí não pode cobrar do governo, do patrão coerencia se o principio básico da democracia não é respeitada.
Volto a dizer aqui em Brasilia a atual gestão do SINPRO não quer democracia na hora de subir ao carro de som não, essa questão ficou tão série que desde 2009 estamos documentando para fazer valer essa premissa e vamos cobrar das autoridade fiscalização.

Os dois lados tem o direito de se posicionar e o lider sindical faça seu discurso de convencimento agora ter medo do discurso contrário? Por quê?
Estão destruindo o legado dos movimentos sindicais aguerridos e lutadores de causas coletivas. Hoje estão usando os sindicatos para a privatização.
http://anacruzzeli.com/sinpro/meusarquivos/CONTRAOSUS-SINPRO1.jpg

POSSO TESTEMUNHAR Miro, a coisa estava engatinhando em 2003, a coisa ficou horroroza em 2009, perderam a vergonha em 2012.

Quem é da luta sindical, daquela contra os entreguistas da pátria, em favor do trabalho e do trabalhador não se deixem enganar, há infiltrações de gente do mal.

Blog do Sinted de Três Lagoas disse...

Texto nota dez! Como já comentei. infelizmente o PT desviou sua rota e mais uma vez o povo fica "a Deus dará"! Parece-nos que há uma mistura de deslumbramento pelo poder com o medo de contrariar os poderosos e perder as eleições.
É preciso dialogar com no povo para que o governo tenha força para implementar os ideais do partido.

Regina disse...

Brilhante esse texto. Seu autor expressa tudo o que está ocorrendo de forma sóbria e sem arrouboMostrou com clareza o que realmente está se passando.
Gostei quando se referiu aos aspones. Numa midia social tive oportunidade de ver uma pessoa que normalmente é tida como bem informada, entrando na conversa de uma outra que afirmava que o orçamento só vai em agosto, então porquê da greve. E ele, sempre bem informado, caiu compatinho imputando o movimento a partidos políticos oposicionistas.
Um verdadeiro desserviço.
Marcou-me profundamente esse tal decreto. Isso para mim é coisa de ditador.Não esperava jamis algo semelhante de um governo como esse.
As urnas estão aí...e estarão aí em 2014.

Luis disse...

Dilma, só tem um jeito, uma maneira. De baixo pra cima, de dentro pra fora. Como está no texto. Vê se a senhora entende, se não perde em 2014.

Anônimo disse...

Avisa a Dilma que o Haddad já era em sao Paulo e o Patrus já perdeu aqui em BH, 2014 ta perto e a fascinação petista acabou, o Serra tem razão ele testa fazendo o que ele certamente faria. Parabéns Altamiro vc talvez seja o único blogueiro "sujo" que nao se transformou em diário oficial.

Unknown disse...

Faço minhas as palavras do Anônimo aí acima. Em especial, também dou os parabéns ao Miro por dar visibilidade a este brilhante texto do Maurício Caleiro, e por destoar de 99% da blogosfera dita "suja" - que acaba merecendo uma retirada das aspas pelo silêncio que mantve, e ainda mantém, a respeito das greves e deste decreto e intransigência insanos da Dilma.

Regina disse...

Mais uma categoria:
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e o governo continua como se nada tivesse acontecido. Em algumas categorias já estão entregando as chefias.