quarta-feira, 11 de junho de 2014

A matriz do pensamento conservador

Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa:

Qual seria a proporção de similaridades entre o Brasil real e o Brasil que a imprensa apresenta aos brasileiros e ao mundo diariamente? Uma equação que contivesse todas as variáveis que formam o retrato da nacionalidade seria possível somente como exercício intelectual, porque, conforme demonstrou Platão, apenas uma fração daquilo que é comunicado pode ser mensurada. O resto, ou seja, toda a grandeza da existência, pode ser objeto apenas da observação e do espanto.

No entanto, toda a mística que fundamenta o valor simbólico da imprensa reside na suposição de que ela é capaz de captar e interpretar a verdadeira identidade nacional, seus anseios e necessidades. Portanto, a imprensa vive da fama de que suas escolhas são sempre em favor dos interesses da sociedade à qual está vinculada; como se houvesse uma conexão entre a pauta jornalística e os caminhos que uma coletividade deveria escolher para alcançar seu potencial de desenvolvimento.

É possível que em determinados momentos históricos, quando uma grande conjunção de fatores se concentra num curto período, certas escolhas se tornem tão elementares que acabem se impondo como consenso. O processo de redemocratização, que se iniciou lentamente com as crises internas no sistema do poder militar, cresceu sob pressões internacionais e se consolidou quando as lideranças nacionais encontraram um caminho lento, seguro e gradual para a volta do regime republicano, foi um desses eventos. Mas também se pode afirmar que o sistema representativo criado durante a Constituinte promulgada em 1988 trazia em seu ventre o germe das mazelas que hoje ameaçam a própria democracia.

Foram muitas as variáveis que definiram o sistema partidário, a legislação que privilegia certas castas sociais até mesmo diante da Justiça, a inépcia do poder público em enfrentar carências e desigualdades, e seria tarefa quase impossível identificar onde se rompeu o tecido das alianças que iniciaram o resgate da civilidade.

A farsa da verdade mística
Pode-se afirmar, porque há estudos suficientes para isso, que a imprensa jogou um papel decisivo na quebra do ímpeto reformador da Constituinte, ao isolar os principais líderes do processo de modernização do arcabouço institucional do país, ao mesmo tempo em que ampliava o poder e a visibilidade dos representantes do chamado “centrão”, onde a corrupção vicejou sob o manto do fisiologismo. O sistema de trocas que brotou na arraia miúda do Congresso, batizada de “baixo clero”, acabou por contaminar todo o sistema e quase todos os partidos.

A imprensa, como instituição, tem grande responsabilidade no fortalecimento dos grupos que sobrevivem da política do “toma lá, dá cá”, porque atuou na origem como força agregadora dos interesses específicos que sempre se valeram de siglas sem expressão ideológica para formar os lobbies no Congresso Nacional.

O imobilismo do Parlamento e sua incapacidade de enfrentar os grandes desafios nacionais nasce dessa composição e só um Executivo com muito poder de barganha – ou a mobilização da sociedade – consegue romper a barreira dos mandatos de aluguel.

A imprensa se apropria dos valores e símbolos que fazem do jornalismo uma atividade central nas sociedades democráticas, mas não os aplica de acordo com os princípios do próprio jornalismo. Meias-verdades e desinformação não produzem conhecimento, como já se afirmou neste Observatório (ver “Imprensa e jornalismo, nada a ver”).

Quase tudo que se publica na imprensa hegemônica, seja no campo da economia, seja nos eventos corriqueiros das grandes cidades, passa por esse crivo ideológico, que funciona como matriz do pensamento conservador, uma espécie de freio de mão da modernidade.

Essa é uma das raízes do radicalismo que domina o cenário político: para que o jogo continue sob as regras do fisiologismo, é fundamental o papel assumido pela imprensa, que se apresenta como avalista dos interesses mais legítimos da nacionalidade, ainda aceita por certa classe social como intérprete da mística verdade.

Então, voltamos à origem: como não existe essa verdade, ou, pelo menos, não é possível identificar as variáveis com as quais essa verdade pudesse ser definida, somos obrigados a concluir que o discurso da imprensa se fundamente numa farsa.

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