terça-feira, 16 de junho de 2015

Espaço público vital para a democracia

Por Laurindo Lalo Leal Filho, na Revista do Brasil:

Há anos, no litoral paulista, havia me acostumado, quando estava por lá, a sintonizar a Rádio JB AM, do Rio. Noticiário sóbrio e equilibrado com música de qualidade marcavam a programação. Um belo dia, liguei o rádio e na mesma frequência da JB um pastor me ameaçava com o fogo do inferno. A rádio tinha novos “donos”. Mais de duas décadas depois, a história se repete. Quem um dia ouviu pela Rádio Eldorado de São Paulo o Concerto do Meio-Dia, tendo como prefixo a composição de Prokofiev,Pedro e o Lobo, seguida do também sóbrio Jornal de 30 minutos, hoje ao sintonizar os 700 KHz AM ouve vozes melífluas pedindo dinheiro em troca do reino dos céus.

Nos dois casos, e em tantos outros do mesmo tipo comuns no Brasil, trata-se da venda, por um grupo empresarial, de algo que não lhe pertence. O grupo S.A. O Estado de S. Paulo, controlador da Rádio Eldorado, vendeu para o empresário R.R. Soares, chefe da Igreja Internacional da Graça de Deus, um bem público, o espaço no espectro eletromagnético por onde circulam os sons da emissora. Esse espaço pertence a todos nós e é administrado pelo poder público, que pode conceder seu uso a particulares para que prestem um serviço público com finalidades “educativas, artísticas, culturais e informativas”, como diz o artigo 221 da nossa Constituição.

Se do lado do vendedor existem subterfúgios jurídicos para legalizar a transação, do lado do comprador a ilegalidade é gritante. Não consta que a nova programação da Eldorado AM, já no ar, atenda às finalidades previstas na Constituição. Além disso, o negócio fere outro dispositivo constitucional que impede o Estado brasileiro de subvencionar cultos religiosos ou igrejas “ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança” (Artigo 19 da Constituição Federal).

Concessão para rádio está limitada a dez anos, ao fim dos quais deveria passar por uma avaliação sobre a qualidade do serviço prestado. No Brasil, isso é ficção, e as concessões são renovadas automaticamente, com seus controladores perpetuando-se como “donos” de um valioso espaço público. Já os verdadeiros donos – todos nós – somos impedidos de saber como esse espaço é administrado pelo Estado. É comum ouvirmos queixas de pesquisadores acadêmicos e de representantes de movimentos sociais, interessados no tema, sobre as dificuldades de acesso aos contratos de concessões impostas pela burocracia governamental.

A transparência nesse setor é crucial para a vida democrática. Para isso, o processo de outorga de uma concessão e o acompanhamento da sua execução deveria ser amplamente publicado e debatido pela sociedade. Trata-se de um serviço público. E quem deve julgar sua qualidade é o público, por meio de órgãos que existiriam para isso.

Como ocorre em Portugal, por exemplo, com a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, que elabora um Caderno de Encargos estabelecendo os compromissos que devem ser assumidos por quem recebe uma concessão de rádio ou TV. Ali estão detalhadas exigências contratuais que incluem plano econômico-financeiro de sustentabilidade da emissora, questões técnicas e operacionais e número de profissionais necessários para colocar no ar determinada programação.

Ou no Reino Unido, onde o órgão regulador, Ofcom, exige também dos concorrentes projetos de grades de programação capazes de atender as necessidades de parcelas do público ainda não contempladas pelas demais emissoras. Tudo isso de forma transparente, em que não faltam debates com a participação de diferentes concorrentes à concessão do mesmo canal. Mais um detalhe: a não renovação de uma concessão nesses e em outros países, como os Estados Unidos, fazem parte da rotina.

Estamos longe disso. O espectro eletromagnético tornou-se propriedade privada, distante de qualquer ideia de prestação de serviço público, operado por organizações que defendem apenas a interesses políticos, comerciais e religiosos, os três articulados entre si.

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