segunda-feira, 6 de junho de 2016

Ativismo digital contra a cultura do estupro

Por Camila Nobrega e Cinthya Paiva, na revista CartaCapital:

A notícia do estupro coletivo sofrido por uma adolescente de 16 anos, no fim de maio, em uma favela da Zona Oeste do Rio de Janeiro, com envolvimento de mais de 30 homens, será impossível de ser esquecida. O caso ficará eternizado por ter sido publicizado pelas redes sociais, com a divulgação do vídeo por parte dos autores do crime, e também pelas respostas que recebeu dentro das próprias redes, principalmente aquelas protagonizadas por mulheres, que ao denunciarem o caso e pedirem punição aos envolvidos, criaram eco e provocaram amplo debate público sobre a cultura do estupro no país.

Ao mesmo tempo em que foi o meio virtual que empoderou a jovem e a sensibilizou para que ela denunciasse oficialmente o crime ocorrido, foi nele também onde a imagem dela foi exaustivamente exposta, sendo sua vida virtual e física ameaçada diretamente por um forte discurso de responsabilidade, legitimado pela cultura patriarcal e oligárquica do estupro. Ou seja, a situação nas redes foi marcada por esta dualidade, o que nos leva a refletir sobre os usos que atualmente são feitos da internet.

Por outro lado, em um país com grande penetração dos meios de comunicação tradicionais (principalmente a televisão e o rádio), é improdutivo realizar qualquer análise sobre a batalha dos discursos travada nas redes sociais, sem que seja feito um paralelo sobre os discursos produzidos nestes meios tradicionais. Em outros termos, analisar como a mídia tradicional se posiciona ou como reporta os fatos torna-se essencial para compreender a formação da opinião pública exposta nas redes e os diversos pesos dados às diferentes narrativas que tomam a internet.

No fato em debate, vale recordar que antes das manifestações de milhares de mulheres em torno do tema, o jornal Folha de S. Paulo, no dia 26 de maio, noticiava a seguinte manchete, em seu caderno Cotidiano: “‘Chorei quando vi o vídeo’, diz avó de garota que diz ter sido estuprada”. Ao colocar que a vítima “diz ter sido estuprada”, o jornal assume um posicionamento de pôr em dúvida a afirmação da vítima, apesar das evidências de que houve o crime por ela relatado.

Em reportagem da Globonews no mesmo dia, o advogado de Raí de Souza confirmou que o cliente dele foi o responsável por filmar a jovem nua (desacordada, como mostravam os videos, impossibilitada de qualquer reação) e sangrando e compartilhar com outras pessoas por celular, que em seguida teriam disponibilizado na internet. Se os jovens admitiram responsabilidade na gravação e divulgação das imagens isso por si só já é crime. Caberia, portanto, à reportagem questionar “por que os mandados de prisão demoraram tanto para serem expedidos?” ou “por que o caso continuava sendo tratado como suspeita a ser investigada?”. Nada disso foi feito, o que mostra certa negligência da mídia quanto à apuração do que realmente importava ao fato e demonstra a dificuldade de se reconhecer como vítima a mulher que sofreu estupro.

Em outros veículos, a jovem foi, a todo tempo, levada a provar sua condição de vítima, cabendo exclusivamente às pessoas da família, advogados de defesa e pessoas diretamente envolvidas com a jovem o papel de defendê-la de acusações sobre seu comportamento, como se isto fosse o que estivesse em jogo. O mesmo peso acusatório não recaiu sobre os jovens acusados do crime – que apareceram rindo na televisão – o que permite relacionar a responsabilização da vítima à cultura de violência e estupro contra as mulheres que segue incrustada em nosso país. Por isso, vale sempre lembrar que estupro é crime previsto no Código Penal Brasileiro (Lei 2848/1940), sendo classificado como ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (art.213).

Gerar dúvidas em relatos de vítima de estupro é o padrão no sistema de Justiça brasileiro, principalmente quando os receptores da denúncia são homens. Não por acaso, as delegacias especiais de proteção às mulheres foram criadas para minimizar o constrangimento da vítima, exposta primeiramente ao crime e, depois, aos que tentam imputá-la alguma responsabilidade. As notícias nos grandes jornais seguiram, portanto, com este mesmo tom, reproduzindo a violência simbólica operada nas salas de delegacias e hospitais brasileiros.

Não por acaso, o mesmo tom de dúvida exposto nos grandes jornais e TVs foram amplamente reproduzidos nas redes sociais, ou seja, a partir do discurso de responsabilização da vítima ou mesmo de divulgação de informações sobre sua vida – irrelevantes ao caso – feitos nos veículos tradicionais, emergem e crescem na internet posts e comentários de relativização do estupro, que reforçam a narrativa da culpa da vítima. Questões como “mas por onde ela andava e com quem?” e “que tipo de roupas ela usava” foram comuns, além dos memes que expunham a vítima.

Estupro e recorrência na mídia

No Brasil, uma mulher é estuprada a cada três horas, e isto está diretamente ligado à cultura machista e patriarcal que coloca as mulheres como objeto sexual do homem. O corpo feminino, ao invés de ser de pertencimento das mulheres, é tido como propriedade do masculino, podendo este fazer uso quando bem entender. Infelizmente, a mídia brasileira não tem atuado na desconstrução desta cultura. Ao contrário, são inúmeros os casos em que há a naturalização da violência sexual contra as mulheres em programas de rádio e TV.

No Programa Agora é Tarde, da Band, apresentado por Rafinha Bastos, que foi ao ar no dia 25 de fevereiro de 2015, o ator Alexandre Frota revelou – em tom de gozação e deboche – que teria praticado sexo com uma mãe de santo contra vontade dela enquanto ela estaria desmaiada, ou seja, que a teria estuprado. À época, o Intervozes acionou o Departamento de Acompanhamento e Avaliação do Ministério das Comunicações e o Ministério Público Federal (MPF). Em uma materialização da negligência sobre a violência, nunca houve punição para o caso. Ao contrário, o ator transformou-se em figura pública digna de ser recebida para apresentar propostas ao Ministério de Educação, em Brasília, no atual governo interino de Michel Temer.

Há ainda o estupro ocorrido no programa Big Brother Brasil, na edição de 2012, na TV Globo, em que Daniel, um dos participantes da casa, foi expulso após a participante Monique ter dito que: “Só se ele foi muito mau caráter de ter feito sexo comigo dormindo”, caso que contou, inclusive, com investigação criminal. E, no início deste ano, muitas foram as denúncias após a exibição de uma cena de estupro em uma minissérie da TV Globo, Ligações Perigosas.

Na internet, o debate sobre a cultura do estupro tinha sido levantado no final de 2015, em função da multiplicação de comentários absolutamente lascivos e agressivos em relação a uma menina de apenas 12 anos, participante do reality show Masterchef.

O poder mobilizador da internet, porém, por vezes acaba por expor vítimas de violência sexual. Por falta de informações sobre o funcionamento das redes sociais, muitas pessoas ajudaram a perpetuar o crime cometido no fim de maio ao enviar mensagens, mesmo que em tom de repúdio. Assim, embora as redes sociais possam cumprir um papel de produção da diversidade de discursos – para além do produzido na mídia convencional – neste caso, cumpriu também um papel de violador de direitos humanos, ao expor, pela segunda vez, a vítima à violência.

O que se deve fazer, nesses casos, não é denunciar o perfil do divulgador do material pela timeline ou reproduzir o seu conteúdo. As denúncias devem ser feitas de forma privada, copiando o endereço das postagens nos locais específicos para isso dos sites das redes onde foram feitas as publicações. Deve-se lembrar que também é crime a publicação de fotos com cenas pornográficas de sexo envolvendo crianças ou adolescentes, de acordo com o artigo 240 do Estatuto da Criança e Adolescente (Lei 8060/1990).

As formas de violência simbólica impostas às mulheres são muitas. E a tentativa de entendê-las é essencial para enxergar as relações de dominação, que são relações históricas, culturais e linguisticamente construídas. A narrativa que expõe essa violência e se contrapõe a ela precisa de uma força ainda maior para romper o discurso que figura na ordem do que é natural, radical, irredutível e universal dentro de um conjunto de valores e apontar diferentes poderes que mantêm essa dinâmica funcionando.

É muito mais fácil manter-se no diálogo com a ordem do dia, reafirmando preconceitos e assimetrias de discursos do que jogar luz nas entrelinhas. E, nas redes sociais, vale lembrar, isto ocorre porque elas não são espaços neutros – como muitos acreditam ser. Ao contrário, elas também estão imersas em relações de poder e podem (re)produzir narrativas já estruturadas que operam na disputa destes poderes. A boa notícia, no entanto, é que, se por um lado o discurso conservador parece avassalador nas mídias tradicionais e nas redes, olhando por outro ponto de vista, é essencial apontar a força de um contradiscurso protagonizado por mulheres que cresceu por conta própria e se impôs, influenciando até mesmo a grande mídia.

Após as manifestações públicas na internet de milhares de mulheres e a organização de atos como a Marcha das Flores, o tom da imprensa se modificou. A própria Folha de S. Paulo e a TV Globo mudaram a forma de noticiar o fato, tratando-o como crime. E, mesmo com bastante atraso, os movimentos sociais de mulheres ganharam voz dentro das reportagens, uma vez que o fato não poderia mais se manter invisibilizado. Em outros termos, o cenário mostra que os ataques às mulheres – somos constantemente submetidas ao julgamento do patriarcado – não serão superados sem que haja forte mobilização nas redes e também nas ruas. Os crimes não serão esquecidos, nem silenciados.

* Camila Nobrega é jornalista e pesquisadora visitante do departamento de Ciência Política da Freie Universität Berlin e Cinthya Paiva é advogada; ambas integram o Coletivo Intervozes.

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