quinta-feira, 2 de junho de 2016

Dilma passa de impopular à líder de massas

Por Najla Passos, no site Carta Maior:

Nos dez últimos dias, tive duas oportunidades de estar frente a frente com a presidenta afastada, Dilma Rousseff. Duas oportunidades históricas de ver como ela é recebida nas ruas, de saber o que tem a dizer após o afastamento forçado e, em um dos casos, até de lhe fazer uma pergunta meio ácida, olhos nos olhos. A primeira foi no último dia 20, em Belo Horizonte (MG), durante o V Encontro Nacional de Blogueiros e Ativistas Digitais, quando ela fez sua primeira aparição pública após o afastamento da presidência. A última ocorreu nesta segunda (30), na Universidade de Brasília (UnB), onde ela participou do lançamento do livro “A resistência ao golpe de 2016”.

Em ambos os casos, me surpreendi com o que vi, ouvi e senti. Tanto nas ruas da capital mineira quanto na academia da capital do país, a presidenta afastada foi aclamada como heroína por milhares de pessoas que se acotovelavam para dar a ela uma palavra de apoio, um abraço de incentivo, um grito de solidariedade. Por vários milhares. Como já começam a demonstrar as pesquisas, o golpe transformou Dilma de uma presidenta impopular que até mesmo seus partidários tinham reservas de defender em uma líder de massas que desconhecidos se orgulham de dizer que irão apoiar até seu retorno à presidência.

Não é por acaso. Sem as amarras do Palácio do Planalto, sem ter que medir as palavras para agradar a dita base aliada que tramava nas sombras, Dilma estava mais a vontade do que nunca para se expressar em seus próprios termos, tecer seu próprio discurso, avalizar sua própria análise do retrocesso que corrói o país. A Dilma que ressurgiu das cinzas pós-golpe não precisa mais se preocupar em não desagradar o PMDB para manter o despolitizante “pacto pela governabilidade”. Ela pode dizer coisas como “o golpe tem nome, sobrenome e CPF”. E o que é melhor: citá-los textualmente.

“Volta, querida!”

A lua cheia despontava atrás do Parque Municipal quando, de dentro do hotel Othon Palace, comecei a ouvir a multidão que fechara a Avenida Afonso Pena, no centro de Belo Horizonte, gritando “Volta, querida!”. Quando a presidenta chegou ao hotel, saiu para cumprimentar as mais de dez mil pessoas que, espontaneamente, foram esperá-la no local com rosas e balões vermelhos. Dilma abraçou o povo, tomou o microfone, falou de improviso. Emocionou e ficou emocionada. Chorou duas vezes. As pessoas que, como eu, estão acostumadas à Dilma dura e seca das coletivas no Palácio do Planalto, custavam a acreditar no que viam.


Dentro do Othon, ela falou por cerca de uma hora para o seleto público de blogueiros e jornalistas progressistas que a aplaudiam e gritavam palavras de ordem contra os golpistas e fascistas que tomaram o governo dela de assalto. A presidenta falou do golpe, da luta que se fazia necessária, mas também falou de carinho, de emoção, de solidariedade. Lembrou àquela Dilma pré-ajuste fiscal que arrebatou corações e mentes nas duas últimas campanhas presidenciais. Mas foi ainda melhor.

Depois da jornada dupla, ainda se dispôs a receber alguns jornalistas para uma rodada de bate-papo. Ainda refém da decepção que seu segundo governo me causou, no bojo do ajuste fiscal, da Lei Anti-terrorismo, da paralisação da reforma agrária e da falta de atitude para avançar com a regulação da mídia, lancei a pergunta que julguei mais adequada à temática do evento:

- A luz dos últimos acontecimentos, considerando o papel central desempenhado pela mídia no golpe que lhe tirou da presidência, a senhora não acha que seu governo poderia ter feito mais pela democratização da comunicação?

Por um minuto, me veio à mente a Dilma dura do Planalto. Imaginei que a resposta viria perfurante. Mas a presidenta respirou fundo, me olhou nos olhos e, pela primeira vez na minha vida, me fez enxergar que a tal governabilidade não é apenas um conto da carochinha para acalmar a militância.

- “Poderia, mas não levaria”, respondeu ela, com convicção.

A presidenta afastada me lembrou da batalha travada por seu governo para aprovar o Marco Civil da Internet construído em parceria com a sociedade civil, que nos garantiu a neutralidade da rede. Ela recordou que foi ali, naquele empate, que o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), se consolidou como o arqui-inimigo número 1 do seu governo dentro do partido que até então era o maior aliado do PT.

Dilma criticou com propriedade o processo de “direitização” do PMDB, aprofundado a partir daí e levado ao extremo no seu segundo mandato, com a eleição do parlamento mais conservador da história recente do país. E deixou claro que a disposição da velha direita brasileira em deixar o PT governar tinha limites muito claros: qualquer mudança na concepção monopolizada de um dos sistemas de comunicação mais concentrados do mundo não seria tolerada.

Ela também afirmou ali, em Belo Horizonte, que sua disposição para a luta não era retórica. Mesmo cansada, abatida, Dilma tinha o brilho nos olhos de quem tem convicção do papel histórico que tem a desempenhar. E deixou claro que a recepção calorosa que tivera na sua terra natal a motivou ainda mais para sair dos limites da Alvorada e correr o país para denunciar o golpe que inviabilizara não apenas seu governo e as conquistas sociais da última década, mas a própria democracia brasileira.

"Boa noite, queridos!”

Na UnB, a presidenta afastada esbanjou simpatia. “Vou cumprimentá-los da mesma forma que vocês me receberam. Boa noite, queridos! Boa noite, queridas!”, disse, sob os aplausos da plateia que lotou o Centro Darcy Ribeiro, popularmente conhecido como “Beijódromo”.

Ela atacou sem reservas “o governo neoliberal dos homens brancos, velhos e ricos”. E afirmou que o golpe em curso tem dois motivos. O primeiro deles explicitado pelo conteúdo das gravações agora tornadas públicas: parar a Operação Lava Jato e impedir que as investigações contra a corrupção avancem para além dos círculos petistas. O segundo, de acordo com ela, implícito nas declarações e entrevistas dos golpistas: impedir a continuação das políticas de distribuição de renda iniciadas pelo PT.

Ela rechaçou as posições expressas do novo governo que apontam para a redução da abrangência do SUS, o fim da contratação dos médicos cubanos, a suspensão do programa Minha Casa, Minha Vida para a parcela mais pobre e o corte de 30 milhões de beneficiários do Bolsa Família. “Na época de expansão da riqueza, o conflito não é tão visível. Mas na crise ele é. E já está claro quem vai pagar o pato mais uma vez: o povo deste país”, denunciou.

A Dilma simpática e segura de si que emergiu do golpe foi recebida com reverência e carinho pela comunidade acadêmica da UnB, além de intelectuais e artistas da capital federal. Entre eles, a atriz Camila Márdila, que cativou o Brasil e o mundo no papel da Jéssica, do filme “Que horas ela volta?”. Em referência às várias Jéssicas que surgiram no Brasil dos governos populares, Dilma abraçou o tema da educação. “Eu tenho consciência do grande passo que foi dado na educação. Eu tenho consciência do que significaram o Prouni, o Fiés, mas, sobretudo, a Lei de Cotas”, afirmou.

A presidenta afastada homenageou também os autores do livro “A resistência ao golpe de 2016”. Segundo ela, a obra é de extrema importância para a luta em curso. “Enquanto fazemos história, nós também refletimos sobre ela”, observou. Para a presidenta, o golpe de 2016 apresenta trajes diferentes, mas é fruto da mesma oligarquia que sempre derruba os governos populares do país. Segundo ela, se a imagem do golpe de 1964 é a árvore democrática sendo cortada por um machado, a imagem do golpe de 2016 é a da mesma árvore democrática sendo corroída por um parasita. “Só é diferente agora porque o golpe não interrompe o processo democrático, mas sim o corrói”, comparou.

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