segunda-feira, 4 de julho de 2016

Atentado à democracia na Folha

Por Jorge Luiz Souto Maior, no site Carta Maior:

O jornal Folha de S. Paulo dedicou dois de seus editoriais, publicados em menos de um mês [1], para criticar a greve na USP. A insistência no tema é, no entanto, reveladora do quanto a ausência de conhecimento faz mal, principalmente para quem se arvora na tarefa de informar e de formar opinião. Com seus editorais a Folha apenas provou que o desprezo pela educação de qualidade gera grave dano às pessoas, às instituições e à sociedade.

No último editorial [2], o jornal parte do pressuposto de que os professores, alunos e servidores que não compareceram às respectivas assembleias para deliberar sobre a greve e que querem continuar suas atividades normais estão agindo dentro dos padrões democráticos, enquanto que aqueles que comparecem às assembleias, votaram ou simplesmente acataram a deliberação coletiva estão na ilegalidade e ferem a democracia.

Na concepção invertida da Folha, as formas institucionalizadas do exercício democrático não valem nada. Ah, mas “as assembleias não são representativas” e “alguns grupos dominam as assembleias”, dirão a Folha e seus correligionários silenciosos. Então, como sugere o editorial, desprezem-se as assembleias e faça-se a vontade da Folha e dos grupos a ela aliados, uma vontade que, assim, não precisa passar por nenhum debate ou crivo de votação. Qualquer semelhança com o que se passa na política nacional seria mera coincidência?

O que a Folha faz, mais uma vez em sua trajetória, é inverter o sentido da democracia, contribuindo para a difusão de práticas autoritárias. Ora, quando professores, mesmo diante de uma greve, querem continuar dando aulas, ainda mais por meios não autorizados no projeto pedagógico, reproduzem, mesmo sem intenção de fazê-lo, uma lógica autoritária, traduzida na prevalência das próprias razões. Ao considerarem que sua vontade individual vale mais que a vontade coletiva aniquilam a experiência democrática.

Mas, segundo a Folha, os “fura-greves” são democráticos e os grevistas não são. Aliás, conforme sugere o editorial, os professores que estão dando aulas por internet só o fazem porque foram impedidos, por coerção antidemocrática, de dar as aulas nas Faculdades.

Entretanto, se o coletivo deliberou pela greve, o ato de querer continuar dando aula é ilegal e antidemocrático. Assim, aqueles que tentam impedir essa atitude ilegal exercem o legítimo direito de resistência, defendendo a ordem jurídica e os princípios democráticos.

A Folha e seus aliados, de fato, desconsideram que a democracia é um preceito que requer participação pelas vias institucionalizadas, de onde se extrai, inclusive, a vontade coletivamente construída.

Dentro desse contexto, aliás, nada menos democrático do que um jornal, que não tem qualquer legitimidade para representar nenhum coletivo de quaisquer segmentos da USP, se colocar no debate dos problemas que ensejaram a greve com uma autoridade decisória, condenando e absolvendo. Dirá, talvez, que representa a sociedade, mas ao que se sabe, institucionalmente, a Folha não representa nenhum segmento organizado da sociedade. Representa apenas a si mesma e nesta condição possui, claro, todo o direito de se manifestar. O problema é que o faz com o recurso retórico de falar em nome de outras pessoas, não reveladas.

Surge, então, a grande questão a ser analisada: quais interesses impulsionam a Folha de S. Paulo nesta questão? Pode ser mera ojeriza ao instituto da greve ou aversão à classe trabalhadora, porque, afinal, sempre se manifesta dessa forma em toda greve de qualquer categoria. Mas essa hipótese por si não explica a dedicação específica, mais intensa, que a Folha tem com a USP.

Estaria defendendo a USP e a qualidade de ensino? Pode-se aventar. No entanto, posicionar-se contra quem quer receber salário digno pelo trabalho exercido vai em direção contrária à lógica da excelência, pois sem salários dignos não se pode manter profissionais competentes, fomentando a atitude de ir buscar fontes de sustento, de forma paralela e às vezes promíscua, no setor privado, deixando em segundo (ou último) plano as atividades na universidade.

O que surge, pois, como hipótese mais provável é que a Folha fala, de fato, na qualidade e com o espírito de um ente privado, repercutindo os interesses que giram em torno da privatização da USP, que se faria também para favorecer a difusão da racionalidade ideológica de cunho liberal, que parte da necessidade dogmática de expressar a superioridade da iniciativa privada sobre a atuação dos entes públicos.

A greve, então, aparece como uma grande oportunidade para atacar professores, estudantes e servidores da USP que se dedicam a defender a universidade pública, afinal de contas esse “povo”, mesmo com toda precariedade que lhe tem sido direcionada, tem mantido a USP como a melhor universidade da América Latina.

Tentar desmoralizar a greve também é importante porque esses movimentos paredistas acabam difundindo na USP lógicas de organização coletiva, espírito de solidariedade e respeito à coisa pública. Neste aspecto, cabe lembrar que foram as reiteradas greves ocorridas na USP, sobretudo a partir de 2002, greves que estão sendo atacadas pela Folha, acusadas de serem “greves programadas”, que impediram o pleno sucateamento da instituição, preservando o padrão de eficiência da USP [3].

É oportuno registrar, portanto, que os grevistas (professores, estudantes e servidores) são, em geral, profundamente engajados com a busca de soluções para os problemas da USP e extremamente competentes em suas atividades, além de exemplarmente responsáveis, isto porque, para se envolverem em uma luta coletiva, enormemente desgastante, até por conta dos recorrentes ataques midiáticos, precisam ser necessariamente guiados pela ética democrática.

Aliás, um dos principais pontos que sempre impulsiona as greves é o da democratização da USP, vez que a universidade ainda conta com vários entulhos autoritários da época de ditadura e cultua fórmulas de relacionamento humano de cunho medieval, disfarçadas em mérito acadêmico. São inúmeros os processos administrativos, impulsionados por questões pessoais, contra estudantes, servidores e professores, sem falar na violência mais recente, tornada praxe com Rodas e copiada por Zago, do corte de ponto na ocorrência de greve, mesmo sem qualquer declaração de ilegalidade.

E mesmo com toda a repressão, as greves e as lutas não só impediram retrocessos como também proporcionaram avanços (ainda que tímidos) como o da maior abertura da Universidade para as cotas sociais e a adoção do Enem em algumas unidades, sendo que a pauta agora, uma das mais importantes da história da USP, que motiva, inclusive, a greve dos estudantes, é a inserção de cotas raciais. Vale lembrar, também, que na Faculdade de Direito uma nova grade curricular bem mais aberta e ligada às atividades de pesquisa e extensão foi fruto da mobilização estudantil.

Decorre desse extremamente resumido balanço é que a Folha de S. Paulo, com ou sem intenção de fazê-lo, está contribuindo para as ações que tentam destruir o que há de melhor na USP, no sentido da defesa da universidade pública, auxiliando, também, de forma reflexa, na ânsia de alguns segmentos em acabar com o pouco que se conseguiu avançar nas experiências democráticas no país nas últimas três décadas.

Em igual sentido, editorial do Estadão, do mesmo dia:

Notas:

[3]. Vide, a propósito: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-cronologia-da-crise, acesso em 28/06/16.

1 comentários:

Silvio Nobre disse...

Para um grupo que cedia suas caminhonetes para que brasileiros fossem massacrados pela ditadura que eles apoiavam e defendem ate hoje, nao se pode esperar outra postura.