sábado, 24 de setembro de 2016

Estupro: o que a mídia esconde

Por Rachel Moreno, no site Outras Palavras:

Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública com o Instituto Datafolha, realizada em setembro e amplamente divulgada recentemente, reacendeu a polêmica que tomou conta do noticiário, algum tempo atrás, sobre o que se institucionalizou chamar de “cultura do estupro”.

Mais uma vez, a mídia que divulgou a pesquisa colocou, no centro da discussão, a responsabilidade das mulheres – na escolha do jeito de se vestir – a quem 30% da amostra atribuiria a culpa pelo estupro.

Feministas e jornalistas com sensibilidade sobre as questões de gênero imediatamente retomaram o assunto, contestando a conclusão inevitável a partir dos títulos e manchetes dos noticiários. O mecanismo, dizem elas, repassa para a vítima a culpa pela violência sofrida.

“O que esperar de uma cultura que não ensina seus homens a respeitar as mulheres?”, questionou a secretária Nacional da Mulher Trabalhadora na CUT, Junéia Martins.

Para Junéia, os números deixam claro a existência da cultura do estupro enraizada na sociedade brasileira. “É uma cultura que culpa a vítima e naturaliza o comportamento do agressor. Muitos não fazem idéia de que sexo sem consentimento ou forçado fazem parte da definição de violência sexual, segundo a Lei 12.015”, complementa.

Embora concorde com a contestação levantada, gostaria de abordar outros ângulos da questão, que me parecem tão ou mais relevantes do que este.

O primeiro diz respeito à seleção da informação que pareceu mais interessante aos jornalistas que a içaram ao título da matéria, e que simplesmente não corresponde às informações mais importantes da pesquisa.

Porque o dado mais impactante é o posicionamento de 91% dos entrevistados, que concordaram com a afirmação de que “Temos que ensinar meninos a não estuprar”.

O relatório produzido pelas entidades que encomendaram e/ou produziram a pesquisa conclui, acertadamente, que:

O machismo no Brasil se configura através do conjunto de condutas construídas e reforçadas culturalmente sobre masculinidade, que glorifica os atributos ligados ao universo masculino e perpetua a desigualdade entre homens e mulheres. Essa desigualdade se fundamenta em uma ideologia que propõe ser bom e até natural que os homens controlem o mercado, o governo, e a atividade pública, e que as mulheres sejam subordinadas a eles. O masculino é associado ao poder, à virilidade e à agressividade. Apesar do modelo hegemônico de masculinidade construído já ter sofrido muitas críticas, ainda prepondera a associação entre masculinidade viril, competição e violência. Em oposição, a mulher digna de admiração é aquela que se auto sacrifica, que é submissa aos homens e que é uma boa mãe e esposa. Percebe-se, assim, um “ideal passivo feminino” na cultura brasileira. Os resultados da pesquisa mostram que a partir do momento em que a mulher não adere aos valores determinados de acordo com um sistema cultural machista e patriarcal, a violência contra a mulher passaria a ser tolerada socialmente.

E, ao que revela o resultado obtido pela pesquisa, o que se deveria por em evidência é que estamos diante da necessidade amplamente reconhecida de mudar a cultura através de uma educação mais sensível e igualitária. E, neste sentido, o ambiente escolar e o ambiente familiar – espaços tradicionalmente associados à formação humana –, deveriam assumir e preencher melhor o seu papel como espaços em que se dá a disputa ideológica neste sistema machista e patriarcal. E, como concluem os próprios autores da pesquisa, a partir de seus dados mais consistentes, uma educação sobre igualdade (teria e) tem potencial para alterar a cultura machista que perpetua a violência contra a mulher.

Ocorre, porém, que em função da ação concertada da bancada evangélica e seus apoiadores, derrubou-se há pouco a inclusão da discussão das “questões de gênero” no Plano Nacional de Educação – assim como em seus correspondentes a nível Estadual e Municipal. Isto, para além de estimular o denuncismo aos professores e/ou escolas que ousarem transgredir o que eles decidiram rebatizar de “ideologia de gênero”, por acharem que essa discussão… estimularia a pedofilia!

Não contentes com isso, complementaram o quadro com o projeto que intitularam de “Escola sem Partido”, proibindo a “discussão de política” na sala de aula – quer se trate de professor de História, de Filosofia ou de qualquer outra matéria, com os mesmos requintes de estímulo ao denuncismo, que já fizeram duas vítimas (professores de História denunciados e demitidos).

Mas, 91% dos entrevistados, representando a população numa amostra de 3.625 entrevistas em 217 municípios de todos os portes, entrevistados em pontos de fluxo, com 2% de margem de erro, concordam hoje com a afirmação segundo a qual “Temos que ensinar meninos a não estuprar”.

Este dado – o mais eloquente e consistente enquanto resultado da pesquisa, simplesmente passou batido, ou sequer foi referido nas reportagens feitas a respeito da mesma. Cedo demais para a contestação das afirmações do mais profundo retrocesso e conservadorismo que se aprovou – entre tantas outras – a respeito da Educação em nosso país?

Mas, além deste, outro dado também me parece bem relevante, e tampouco mereceu o destaque adequado na divulgação.

A culpabilização pela violência sofrida é uma reação frequente relatada pelas mulheres, até mesmo quando recebem atendimento nos serviços de justiça, segurança e saúde.

A dificuldade de reunir evidências materiais do não consentimento, bem como o risco de revitimização durante os procedimentos legais – humilhação, julgamento moral, procedimentos de coleta de provas que expõem o corpo violado da vítima a novas intervenções – são desafios específicos relacionados à violência sexual que precisam ser considerados com urgência e seriedade pelas instituições policiais e pelo sistema de justiça e que influenciam na baixa taxa de notificação deste crime à polícia, afirma o relatório.


Confirmando isso, vemos que a competência dos policiais para tratarem com essas questões é reconhecido por apenas 37% dos homens e 35% das mulheres da amostra.

Esse resultado indica uma insatisfação e descrença entre a população em relação ao preparo de policiais militares em oferecer apoio no caso de violência sexual contra a mulher. E essa descrença é mais acentuada entre aqueles que têm ensino superior (69%) e que residem nas cidades com mais de 500 mil habitantes.

Segundo a ouvidora Ana Paula Gonçalves, nove em cada dez reclamações feitas à Ouvidoria da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM/PR) foram queixas contra o serviço de atendimento da Polícia Militar (190), a assistência prestada em delegacias de polícia tradicionais e em delegacias especializadas no combate à violência contra a mulher.

Diz ainda o relatório que “demandas pelo agravamento de penas quando um crime em particular comove a opinião pública, em geral traduzem “a reprovabilidade da conduta, a valorização do direito ou a importância da causa” 22. Mas o direito penal, ao enxergar o ato violento apenas como um episódio isolado na trajetória dos indivíduos envolvidos23 é incapaz de dar conta das condicionantes estruturais de um fenômeno complexo como a violência sexual, que necessitam de abordagens mais amplas envolvendo políticas públicas de saúde, educação e prevenção”.


O resultado da pesquisa indica que mais da metade da população (53%) acredita que as leis brasileiras protegem os estupradores. Em um país em que persistem altos índices de desigualdade social e que ainda enfrenta o desafio do acesso ao ensino formal, pode-se estimar que o conhecimento sobre a legislação brasileira e sobre as penalidades atualmente previstas para os casos de estupro não seja amplamente difundido entre a população.

Certamente também esta percepção, somando-se à violência reiterada (de outra forma) no inquérito policial, sejam os responsáveis de peso pela subnotificação dos casos de estupro por parte de suas vítimas.

Mas as mulheres querem, e precisam, contar efetivamente com a polícia. Mas, para isso, melhoras têm que ser introduzidas no currículo policial, incluindo a formação sobre questões de gênero.

E assim, se há forte aderência à ideia de que precisamos ensinar meninos a não estuprar, a percepção sobre a capacidade de atendimento das forças policiais revela que é preciso também motivar policiais a acolher mulheres vítimas de violência sexual, reconhecer a validade dos relatos de vítimas de estupro e valorizar a autonomia da mulher e o direito ao seu corpo. Os operadores da segurança pública e do sistema de justiça criminal devem ser protagonistas na garantia e na promoção da igualdade entre homens e mulheres – inclusive dentro das corporações – diz o relatório oficial.

Finalmente, gostaria de acrescentar a minha opinião sobre o enfoque que tem mobilizado os editores e a discussão subsequente a suas manchetes e à eventual espetacularização da violência – a provocação da violência a partir da roupa vestida pelas vítimas.

Primeiramente, gostaria de lembrar uma pesquisa que fotografou a roupa que usavam as vítimas, quando do estupro. E que constatou que, de “provocadora”, a roupa não tinha nada – na maior parte das vezes, camiseta, calça de moleton, com ou sem agasalho, e tênis.

Depois, queria que desmontássemos o que significa este pretenso impacto da “roupa provocadora”. O que seria uma roupa provocadora? Numa época de prèt-à-porter, certamente não será feita por alguma costureira habilidosa e cheia de lubricidade. Trata-se então da roupa comprada na R. José Paulino, na 25 de Março, na Teodoro Sampaio, ou mesmo em Miami? Trata-se da roupa que a indústria decidiu criar e comercializar? E se essa roupa, fartamente propagandeada na mídia, provoca este efeito, de quem será a culpa? De quem se veste segundo a moda? Ou de quem dita a moda e fabrica a roupa?

Finalmente, mesmo que queiramos não identificar a rede possível de responsabilidades, parte-se do raciocínio segundo o qual, uma vez tendo o olhar capturado por uma mulher assim vestida, seria provocada uma reação masculina impossível de interromper, que só cessaria com o coito, mesmo sem o desejo compartilhado. Será isso verdade?

Ora, no reino animal, a única espécie em que se registra o estupro é a humana. Em todas as demais, a fêmea precisa estar no cio e, portanto, ser receptiva, para que o macho se aproxime o bastante e que o coito se realize.

Mas… seremos nós mais … primitivos?!.. do que os demais componentes do reino animal, não sendo capazes de controlar o nosso apetite sexual e o exercício da sexualidade, através da percepção de indícios de não-receptividade por parte da fêmea? Não será claro o bastante de que “não” é “não”? Não será o homem capaz de interromper a sua eventual excitação – para não impô-la à força?

Em meu estudo e pesquisas em psicologia e na minha especialização em Sexualidade Humana, nunca vi nenhum autor fazer tal afirmação.

Então, antes de culpabilizar a vítima pela violência sofrida, e nos obrigar a ficar na discussão da intitulada “cultura do estupro”, vamos aproveitar os resultados de pesquisa e de séculos de teoria e prática, e ousemos propor … a mudança da cultura, de modo a que ela seja mais humana e igualitária? Certamente, teremos todos a ganhar com isso.

Nota

* O universo considerado pela pesquisa é a população brasileira com 16 anos ou mais, sendo a amostra total de 3.625 entrevistas em 217 municípios de todos os portes. A coleta de dados foi realizada entre os dias 01 e 05 de agosto de 2016. A margem de erro máxima para o total da amostra é 2,0 pontos percentuais para mais ou para menos.

Referências

- A culpa do estupro NÃO é da mulher! http://cut.org.br/noticias/a-culpa-do-estupro-nao-e-da-mulher-7c3c/
- Um terço da população acha que a culpa é da vítima nos casos de estupro – Jornal CGN – http://jornalggn.com.br/noticia/um-terco-da-populacao-acha-que-a-culpa-e-da-vitima-nos-casos-de-estupro#.V-L8–SJUQ0.facebook
- Percepção sobre violência sexual e atendimento às mulheres vítimas nas instituições policiais – Forum Brasileiro de Segurança Pública e Datafolha

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