segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Contra a lógica da ditadura

Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:

Muito além dos prejuízos materiais, que explicam a depressão que o país enfrenta, e das tragédias políticas, que ajudam a entender o surgimento de João Berlusconi Dória Junior, a Operação Lava Jato produziu um retrocesso mental típico de épocas regressivas. Estou falando da lógica de ditadura que se tornou o traço dominante do atual debate político.

Só este comportamento explica a dificuldade de se travar uma discussão indispensável sobre abusos de autoridade e a necessidade do país adotar uma legislação a respeito. É um debate inadiável, ainda mais atual depois que seis ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram atropelar o trânsito em julgado previsto na Constituição, permitindo que um réu passe a cumprir pena de prisão desde que seja condenado em segunda instância.

Estou convencido de que não há argumentos inocentes nem posições ingênuas nessa matéria.

Quem batalha por uma legislação flexível diante de abusos de autoridade apenas trai a vontade de cometê-los - e isso é ruim para a o país, prejudicial a maioria dos brasileiros e inaceitável do ponto de vista do Estado Democrático de Direito.

É bom entender um ponto elementar. Ainda que o ministro do STF Teori Zavaski tenha reconhecido a “espetacularização” da Lava Jato, conceito que implica em admitir que a presença de elementos espúrios no funcionamento da Justiça, o debate vai muito além de toda crítica que se possa fazer a abusos – reais – apontados na Lava Jato por um número respeitável de juristas.

Interessa tanto ao cidadão comum, aquele que sequer tem dinheiro para pagar advogado, como aquele que, mesmo de posse de recursos para bater às portas de uma banca endinheirada, nem assim consegue ser respeitado em seus direitos e garantias quando enfrenta uma denúncia com óbvia conotação política, como acontece na Lava Jato e já ocorreu na AP 470, para ficar em dois exemplos recentes.

Residência da quinta maior população do planeta, o Brasil possui a quarta maior população carcerária do mundo, com uma estatística especialmente vergonhosa a respeito de acusações e condenações. Estima-se que 37% dessas pessoas tenha sido colocada atrás das grades pelo regime de prisão provisória.

Como o próprio nome indica, este sistema foi criado para ser um regime de curta duração, a ser empregado em situações especiais, mas que se prolonga por anos a fio no Brasil, sem que os prisioneiros tenham direito a um julgamento e a uma sentença.

Num levantamento com base em dados oficiais, o professor Anderson Lobo da Fonseca mostra que, mesmo no caso de cidadãos que conseguiram receber uma pena, a decisão está longe de ser um exemplo de isenção. Muitas vezes, revela, só aparecem testemunhas de acusação – em geral, policiais que prenderam os réus.

Longe de produzir qualquer benefício para a segurança e a tranquilidade dos brasileiros, este comportamento convive com índices crescentes de violência e criminalidade, como mostram todos levantamentos confiáveis.

O Brasil possui uma legislação contra abusos de autoridade assinada em 1965, pelo general-presidente Castello Branco. Ao longo da história, contudo, ela não serviu para muita coisa. Sempre assegurou impunidade a quem ignorava os progressos obtidos pela raça humana depois do século XVIII, período marcado pelo reconhecimento de que homens e mulheres nascem com direitos iguais a toda espécie humana e assim devem ser reconhecidos pelo Estado Democrático de Direito. Aprovada um ano depois do golpe que derrubou João Goulart, a lei de 1965 não pretendia investigar e punir abusos contra cidadãos – mas dar cobertura a autoridades que, com muita dificuldade por parte de suas vítimas, poderiam ser acusadas nos tribunais.

Ajudou a criar uma jurisprudência pela qual os agentes do Estado podem até cometer abusos e estes podem ser reconhecidos pela Justiça – mas a responsabilidade fica por conta da União, numa porta garantida para a impunidade. Mesmo nos crimes de tortura, que exigem a tomada de um conjunto de decisões para que possa ser cometido, numa cadeia de comando formada por indivíduos que tem nome e rosto, o máximo que se fez foi condenar a “União”.

Numa evolução dentro de um esquema perverso, após a derrota a ditadura o Estado abriu as portas para pagar reparações em dinheiro mas não foi capaz de cobrar responsabilidades de quem havia cometido crimes em seu nome. E é bobagem imaginar que essa postura se limitava a presos políticos, evidentemente. Chegava a outras vítimas de agentes do Estado. Massacrados com base numa denúncia falsa e errada, os dirigentes da Escola Base, em São Paulo, receberam uma indenização miserável por parte da União. O delegado que veiculou informação falsa a respeito dos donos da Escola foi considerado co-réu. E só.

No Brasil de 2016, quando o Ministério Público trabalha para convencer o Congresso a aprovar uma plataforma de dez medidas contra a corrupção, o debate sobre legislação contra abusos é uma resposta democrática a essa situação. Em seu conjunto, o projeto do MP contém medidas que podem ser úteis mas também apresenta ideias extravagantes.

Chega a propor um “teste de integridade” para ingresso no serviço público, proposta que não consegue responder à pergunta básica: quem testa os valores dos autores de um teste moral? Também admite o uso de provas obtidas de modo ilícito, proibidas pela Constituição de 1988 pois podem abrir uma janeira para grampos ilegais, prisões sem justificativa e mesmo tortura.

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