quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Onze teses sobre a Venezuela

Ilustração: Iván Lira
Por Juan Carlos Monedero

“E ele se empenhava em repetir a mesma coisa: ‘Isso não é como numa guerra... Em uma batalha você está com o inimigo na tua frente... Aqui, o perigo não tem rosto nem horário’. Ele se negava a tomar soníferos ou calmantes: ‘Não quero que me peguem dormindo ou sonolento. Se vierem, eu vou me defender, gritar, jogar os móveis pela janela... Farei um escândalo...”. (Alejo Carpentier, La consagración de la primavera)

1. Com toda a certeza, Nicolás Maduro não é Salvador Allende. E também não éHugo Chávez. Mas aqueles que deram o golpe contra Allende e contra Chávez são, e sobre isso também não há dúvida alguma, os mesmos que agora estão buscando um golpe na Venezuela.

2. Os inimigos dos seus inimigos não são seus amigos. Você pode não gostar de Maduro sem que isso implique esquecer que nenhum democrata pode colocar-se do lado dos golpistas que inventaram os esquadrões da morte, os voos da morte, o paramilitarismo, o assassinato da cultura, a Operação Condor, os massacres de camponeses e indígenas, o roubo dos recursos públicos. É compreensível que haja pessoas que não querem colocar-se do lado de Maduro, mas é conveniente pensar que, do lado que apoia os golpistas, estão, na Europa, os políticos corruptos, os jornalistas mercenários, os nostálgicos do franquismo, os empresários inescrupulosos, os comerciantes de armas, os defensores dos ajustes econômicos, aqueles que celebram o neoliberalismo.

Nem todos aqueles que criticam Maduro defendem essas posições políticas. Conheço pessoas honestas que não suportam o que está acontecendo neste momento na Venezuela. Mas é evidente que, do lado daqueles que estão buscando um golpe militar nesse país, estão aqueles que sempre apoiaram os golpes militares na América Latina ou aqueles que colocam seus negócios acima do respeito à democracia. Os meios de comunicação que estão preparando a guerra civil na Venezuela são os mesmos conglomerados midiáticos que venderam a informação de que no Iraque havia armas de destruição em massa, que nos vendem a ideia de que é preciso resgatar os bancos com dinheiro público ou que defendem que a orgia dos milionários e dos corruptos deve ser paga por todos com cortes e privatizações.

Saber que se compartilha trincheira com esse tipo de pessoas deveria chamar à reflexão. A violência sempre deve ser a linha vermelha que não deve ser ultrapassada. Não faz sentido que o ódio a Maduro coloque qualquer pessoa decente do lado dos inimigos dos povos.

3. Maduro herdou um papel muito difícil – administrar a Venezuela em um momento de queda dos preços do petróleo e do retorno dos Estados Unidos à América Latina depois da terrível aventura no Oriente Médio – e uma missão impossível – substituir Chávez. A morte de Chávez privou a Venezuela e a América Latina de um líder capaz de colocar em marcha políticas que tiraram 70 milhões de pessoas da pobreza no continente.

Chávez entendeu que a democracia em um só país era impossível e dispôs seus recursos, em um momento de bonança graças à recuperação da OPEP, para que se iniciasse a etapa mais brilhante das últimas décadas no continente: Lula no Brasil,Correa no Equador, Morales na Bolívia, Kirchner na Argentina, Lugo no Paraguai, Mujica no Uruguai, Funes em El Salvador, Petro em Bogotá e inclusive Bachelet no Chile referenciavam essa nova etapa.

A educação e a saúde chegaram aos setores populares, completou-se a alfabetização, foram construídas moradias públicas, novas infra-estruturas, transportes públicos (depois da privatização dos mesmos ou da venda e da desativação dos trens), freou-se a dependência do FMI, enfraqueceram-se os vínculos com os Estados Unidos com a criação da Unasul e da Celac. Também há sombras, principalmente vinculadas à fraqueza estatal e à corrupção. Mas seria necessário um século para que os casos de corrupção nos governos progressistas da América Latina sumissem, para mencionar apenas um assunto, o custo da corrupção significa o resgate bancário.

A propaganda dos donos da propaganda acabou conseguindo que o oprimido ame o opressor. Nunca, desde a demonização de Fidel Castro, um líder latino-americano foi tão vilipendiado como Chávez. Para repartir entre os pobres, foi preciso dizer aos ricos da América e também da Europa, que tinham que ganhar um pouco menos. Eles nunca toleraram isso, o que se pode entender, especialmente na Espanha, onde, no meio da crise, responsáveis econômicos e políticos do Partido Popular roubavam a mãos cheias enquanto diziam à população que tinha que apertar o cinto. Iria Chávez, esse “gorila”, frear seus negócios?

Desde que ganhou as primeiras eleições em 1998, Chávez teve que enfrentar numerosas tentativas de derrubá-lo. Evidentemente, com a inestimável ajuda da direita espanhola, primeiro com Aznar, depois com Rajoy, e a já conhecida participação de Felipe González como lobista de grandes capitais. (É curioso que o próprio Aznar, que fez negócios com a Venezuela e com a Líbia, depois se tenha convertido em executor quando foi ordenado. Kadafi chegou a dar inclusive a Aznar um cavalo. Pablo Casado foi o assistente de Aznar nessa operação. Depois, coisas da direita, celebraram seu assassinato.)

4. Chávez não legou a Maduro os equilíbrios nacionais e regionais que construiu, que eram políticos, econômicos e territoriais. Eram uma construção pessoal em um país que saía de taxas de pobreza de 60% da população quando Chávez chegou ao governo. Há mudanças que precisam de uma geração. É aí que a oposição quer estrangular Maduro, com problemas mal resolvidos como as importações, os dólares preferenciais ou as dificuldades para frear a corrupção, que desembocam em desabastecimento. No entanto, Maduro soube reeditar o acordo “cívico-militar” que tanto incomoda os amigos do golpismo. Algo evidente, pois os Estados Unidos sempre deram os golpes buscando apoios em militares autóctones mercenários ou desertores.

O Exército na América Latina só é compreendido em relação com os Estados Unidos. Os exércitos da América Latina foram treinados nos Estados Unidos, seja em táticas de tortura ou na “luta contra-insurgente”, seja no uso de armas que lhes vendem ou no respeito devido aos interesses norte-americanos. Na Venezuela, aqueles que formaram os assassinos da Escola Mecânica da Armada (ESMA) argentina ou que apoiaram o assassino Pinochet encontram-se em dificuldades (o assalto de mercenários vestidos de militares a um quartel de Carabobo visava passar a sensação de divisão no Exército, algo que atualmente não parece existir).

Do mesmo modo como compraram militares, os Estados Unidos sempre compraram juízes, jornalistas, professores, deputados, senadores, presidentes, assassinos e qualquer um que fosse necessário para manter a América como seu “quintal”. O cartel midiático internacional sempre lhes deu cobertura. É a existência dos Estados Unidos como império que construiu o exército venezuelano. Os novos oficiais se formaram no discurso democrático soberano e anti-imperialista. Eles são maioria. Há também uma oficialidade – a maioria já aposentada – que se formou na velha escola, e suas razões para defender a Constituição venezuelana serão mais particulares.

As deficiências do Estado venezuelano afetam também o exército, especialmente em áreas problemáticas como as fronteiras. Mas os quartéis na Venezuela estão com o presidente constitucional. Por isso, é ainda mais patético ouvir o democrata Felipe González pedir aos militares venezuelanos que deem um golpe contra o governo de Nicolás Maduro.

5. Às dificuldades de herdar os equilíbrios estatais e dos acordos na região (a amizade de Chávez com os Kirchner, Lula, Evo, Correa e Lugo), é preciso acrescentar que a contenda da Arábia Saudita com o fracking e com a Rússia baixou drasticamente os preços do petróleo, principal riqueza da Venezuela. Essa queda inesperada do preço do petróleo colocou o governo de Maduro em uma situação complicada (este é o problema da “monocultura”. Basta, para entender isso, pensar o que aconteceria na Espanha se o turismo tivesse uma queda de 80% por causas alheias ao governo. Em semelhante situação, teria Rajoy sete ou oito milhões de votos?). Maduro teve que reconstruir os equilíbrios de poder em um momento de crise econômica brutal.

6. A oposição na Venezuela está tentando dar um golpe de Estado desde o dia em que Chávez ganhou. A Venezuela foi a carranca de proa da mudança continental. Acabar com a Venezuela é abrir a válvula para que aconteça o mesmo que aconteceu nos países em que o neoliberalismo ainda não voltou. As oligarquias estão incomodadas com os símbolos que enfraquecem seus pontos de vista. Isso aconteceu com a II República em 1936 e aconteceu também no Chile com Allende em 1973. Acabar com a Venezuela chavista é voltar à hegemonia neoliberal e, inclusive, às tentações ditatoriais dos anos 1970.

7. A Venezuela tem, além disso, as maiores reservas de petróleo do mundo, água, biodiversidade, Amazônia, ouro, coltan – talvez a maior reserva de coltan do mundo. Os mesmos que levaram a destruição à Síria, ao Iraque ou à Líbia para roubar o petróleo querem fazer o mesmo na Venezuela. Eles precisam ganhar primeiro a opinião pública para que o roubo não seja tão óbvio. Eles precisam reproduzir na Venezuela a mesma estratégia que construíram quando falavam de armas de destruição em massa no Iraque. Ou será que muita gente honesta não acreditou que havia armas de destruição em massa no Iraque? Hoje, aquele país anteriormente próspero é uma ruína.

Quem acreditou nas mentiras do PP, que veja como está hoje Mosul. Parabéns aos ingênuos. As mentiras acontecem todos os dias. A oposição colocou uma bomba na passagem de policiais em Caracas e todos os meios impressos publicaram a foto como se a responsabilidade fosse de Maduro. Um helicóptero roubado lançou granadas sobre o Supremo Tribunal e a mídia silenciou. São atos terroristas. Desses que ilustram as capas de jornais e abrem os telejornais. Exceto quando acontecem na Venezuela. Um referendo ilegal na Venezuela “pressiona o regime até o limite”. Um referendo ilegal na Catalunha é um ato próximo ao crime de sedição.

8. O cartel midiático internacional encontrou um filão. Trata-se de uma reedição do medo diante da Rússia comunista, da Cuba ditatorial ou do terrorismo internacional (nunca diriam que o Estado Islâmico é uma construção ocidental financiada principalmente com capital norte-americano). A Venezuela transformou-se no novo demônio. Isso permite que eles acusem os adversários de “chavistas” e evitem falar da corrupção, do esvaziamento das pensões, da privatização dos hospitais, das escolas e das universidades ou dos resgates bancários. Mélenchon, Corbyn, Sanders, o Podemos ou qualquer força de mudança na América Latina são desqualificados com a acusação de serem chavistas, agora que acusar de comunistas ou de etarras (ETA) está fora de moda. O jornalismo mercenário está há anos com esta estratégia. Ninguém nunca explicou quais políticas genuinamente bolivarianas os programas dos partidos de mudança devem conter. Mas dá no mesmo.

O importante é difamar. E pessoas de boa vontade acabam acreditando que há armas de destruição em massa ou que a Venezuela é uma ditadura onde, curiosamente, todos os dias a oposição se manifesta (inclusive atacando instalações militares), onde os meios de comunicação criticam livremente Maduro (não como na Arábia Saudita, no Marrocos ou nos Estados Unidos) ou onde a oposição governa em prefeituras ou regiões. É a mesma tática que, durante a guerra fria, construiu o “perigo comunista”. É por isso que na Espanha, com a Venezuela, temos uma nova Comunidade Autônoma, sobre a qual só falta anunciar, no final dos telejornais, a previsão do tempo para Caracas nesse dia. De cada 100 vezes que se diz “Venezuela”, 95 vezes buscam distrair, ocultar ou mentir.

9. A Venezuela tem um problema histórico que não foi resolvido. Durante a colônia, pelo fato de não ter minas, não foi elevada ao status de vice-reinado, mas permaneceu uma simples capitania geral. O século XIX foi uma guerra civil permanente, e no século XX, quando se começou a construir o Estado, o país já tinha petróleo. O Estado venezuelano sempre foi rentista, ineficiente, vazado pela corrupção e refém das necessidades econômicas dos Estados Unidos acordadas com as oligarquias locais. O choque entre a Assembleia e a presidência do atual Estado deveria ter sido resolvido juridicamente. Sinais da ineficiência são visíveis há tempos. O rentismo venezuelano não foi superado. A Venezuela redistribuiu a renda do petróleo entre os mais humildes, mas não superou essa cultura política rentista nem melhorou o funcionamento de seu Estado.

Mas não nos enganemos. O Brasil tem uma estrutura jurídica mais consolidada e o Parlamento e alguns juízes deram um golpe de Estado contra Dilma Rousseff. Donald Trump pode mudar a procuradora-geral e nada acontece, mas se Maduro fizer isso, o chefe de Estado também eleito em eleições, será acusado de ditador. Uma parte das críticas a Maduro é enganosa porque esquece que a Venezuela é um sistema presidencialista. É por isso que a Constituição permite ao presidente convocar uma Assembleia Constituinte. Quer gostemos ou não, mas o artigo 348 da Constituição vigente na Venezuela habilita o presidente para essa tarefa, assim como na Espanha o presidente do Governo pode dissolver o Parlamento.

10. Zapatero e outros ex-presidentes, o Papa, as Nações Unidas vêm pedindo a ambas as partes na Venezuela para que dialoguem. A oposição conseguiu em torno de sete milhões de votos (embora seja mais complicado que cheguem a esse acordo em torno de um candidato ou candidata à presidência do país). Maduro, em um contexto regional muito complicado, com fortes restrições econômicas que afetam a compra de insumos básicos, incluindo medicamentos, conseguiu granjear oito milhões de votos (mesmo que sejam sete milhões, segundo as declarações tão suspeitas do presidente da Smarmatic, que acaba de assinar um contrato milionário na Colômbia).

A Venezuela está claramente dividida. A oposição, como outras vezes, optou pela violência e depois não entende que Maduro some tantos milhões de apoios. Se na Espanha um grupo queimasse postos de saúde, escolas, atirasse contra o Supremo Tribunal, assaltasse quartéis, contratasse marginais para semear o terror, bloqueasse o trânsito com manifestações e, inclusive, queimasse pessoas vivas pelo simples fato de pensarem diferente, alguém ficaria surpreso se os cidadãos votassem contra esses loucos?

11. Fracassada a via violenta, restam à oposição venezuelana apenas duas possibilidades: prosseguir pela via insurrecional, encorajada pelo Partido Popular, Donald Trump e a extrema direita internacional, ou tentar vencer nas urnas. Os Estados Unidos seguem pressionando (em declarações a um semanário uruguaio, o presidente Tabaré Vázquez disse que votou pela expulsão ilegal da Venezuela do Mercosul por medo de represálias dos grandes países). 57 países das Nações Unidas exigiram que a soberania da Venezuela seja respeitada.

Como os Estados Unidos não conseguem maioria para forçar a Venezuela, insistem em inventar espaços (como a Declaração de Lima, sem qualquer força jurídica porque não conseguiram maioria na OEA). A direita mundial quer acabar com a Venezuela, embora isso custe sangue e fogo à população venezuelana. Por isso, alguns opositores, como Henry Ramos-Allup, pediram o fim da violência. A Venezuela tem eleições municipais e regionais no horizonte. É o cenário onde a oposição deve demonstrar essa maioria que reivindica. A Venezuela precisa convocar essas eleições e é uma excelente oportunidade para medir eleitoralmente as forças. Porque, do contrário, o choque que estamos vendo poderá se tornar um cisto e transformar-se em uma terrível gangrena. Quem tem interesse em uma guerra civil na Venezuela?

Não nos enganemos. Nem o PP nem Trump estão interessados nos direitos humanos. Se fosse assim, romperiam com a Arábia Saudita, que vai decapitar 15 jovens por se manifestarem durante a Primavera Árabe, ou vão dar chicotadas nas mulheres que dirigem; ou com a Colômbia, onde ocorreram 150 assassinatos pelos paramilitares nos últimos meses; ou com o México, onde se assassina cada mês um jornalista e aparecem valas comuns com dezenas de cadáveres. Nos Estados Unidos estão pedindo penas de 75 anos para manifestantes contra as políticas de Trump.

A Venezuela tornou-se, na Espanha, a 18ª Comunidade Autônoma só porque o presidente Rajoy foi convocado para depor como testemunha de corrupção que envolve o seu partido. É mais eficiente falar da Venezuela do que da corrupção dos 800 membros do PP imputados. Há pessoas ingênuas que acreditam neles. O que dirão agora que a grande maioria da oposição aceitou participar das eleições regionais? O pacto entre o PSOE e o Podemos em Castilla-La Mancha foi apresentado pela direita de La Mancha como o começo da venezuelanização da Espanha. Quanta cara-de-pau e quanta estupidez. E há pessoas que acreditam neles.

Enquanto isso, o PP silencia, por exemplo, em relação às perseguições que a ditadura monárquica marroquina faz na Espanha aos dissidentes políticos, ou prende, por ordem do ditador Erdogan, um jornalista crítico com a ditadura turca. Alguém vai nos dizer que estes governos estão interessados nos direitos humanos?

Conclusão: não há necessidade comungar com Maduro, menos ainda com sua maneira de fazer as coisas, para não aceitar o golpe de Estado que se quer construir na Venezuela. Estamos falando sobre como não voltar a cometer os mesmos erros acreditando nas mentiras que a mídia divulga. A Venezuela tem que resolver os seus problemas dialogando. E é evidente que tem problemas. Mas duas metades enfrentadas não vão a lugar nenhum monologando. Embora um lado seja apoiado pelos países mais poderosos do espectro neoliberal. Nem o PP nem a direita querem diálogo. Querem que Maduro se entregue. E você acha que os oito milhões de eleitores da Assembleia Constituinte ficariam de braços cruzados? O novo governo os reprimiria e até os mataria. A mídia diria que a democracia venezuelana estaria se defendendo dos inimigos da democracia. E voltaria a haver gente ingênua que acreditaria neles. Do resto do mundo, em nome da democracia, bastam duas coisas: exigir e apoiar o diálogo na Venezuela, e entender que seria bom não permitir nem ao PP nem à direita internacional, começando por Donald Trump, a reedição uma de suas misérias mais horríveis que consiste em semear dor em outros lugares para ocultar a dor que provocam em nossos próprios países.

* Juan Carlos Monedero é cientista político, professor universitário e dirigente do Podemos da Espanha. Artigo publicado originalmente no jornal argentino Pagina/12. Tradução é de André Langer.

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