segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Uma farsa que repete o Riocentro

Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:

Neste período no qual a História brasileira anda para trás, na próxima sexta-feira, 22 de setembro, o país será colocado diante de uma farsa policial-militar cujo paralelo mais próximo se encontra no tenebroso inquérito sobre o atentado do Rio Centro, ocorrido em 1981, na agonia da ditadura militar.

No Fórum da Barra Funda, em São Paulo, começam as audiências onde serão ouvidos 18 estudantes de São Paulo que, em setembro de 2016, 72 horas depois da queda de Dilma Rousseff, foram detidos pela Polícia Militar quando pretendiam participar de um protesto que gritava "Fora Temer, Diretas Já!" na avenida Paulista.

Sem nenhum indício real, sequer um testemunho crível, jovens engajados na luta democrática que faz a honra de tantas gerações enfrentam a acusação de "associação criminosa". Também são acusados de “ corrupção de menores” porque três dos envolvidos no encontro, puramente político e pacífico, até prova em contrário, tinham menos de 18 anos na época.

Caso sejam considerados culpados, correm o risco de uma condenação de 9 anos de prisão, tornando-se um símbolo execrável do momento histórico em que vivemos.

Entre os acusados, encontra-se Sofia Beçak Martins, 20 anos, de uma das famílias herdeiras do Itaú, o maior banco do país. Liderança reconhecida no movimento, Sofia foi escolhida para fazer um pequeno pronunciamento como porta-voz dos estudantes depois que eles foram liberados por decisão judicial, após passar um dia na cadeia, um ano atrás.

Como os mais velhos se recordam, em 1981 a explosão de uma bomba num show de 1 de Maio, no Rio de Janeiro, inspirou uma investigação fraudada que produziu a desmoralização final da ditadura de 1964. Urdido no porão do aparelho de informação do regime, como um ataque canalha a uma manifestação legítima da resistência democrática, um IPM fabricado sustentou, negando todas as evidencias disponíveis, que o atentado fora produzido por uma organização terrorista de esquerda, a velha VPR do capitão Carlos Lamarca, fora de combate há anos.

Graças a essa visão conveniente, jamais se ouviu oficialmente o principal suspeito capaz de esclarecer o caso: o capitão Wilson Machado, chefe de seção do DOI no Rio de Janeiro, único sobrevivente de uma operação que, conforme seria amplamente demonstrado nos anos seguintes, nasceu num setor radicalizado do Centro de Informações do Exército, CIE, espinha nervosa da repressão do regime. Wilson jamais foi levado a dar explicações sobre o que fez, por que, por ordem de quem. Nunca precisou dizer por que dirigia um Puma, ao lado de um sargento da mesma repartição, que morreu em função da explosão da bomba que levava no colo.

Símbolo da impunidade de um sistema que perseguia, torturava e executava brasileiros e brasileiras, o capitão passou nos anos seguintes sem ser importunado e até foi promovido. Chegou a coronel.

A farsa dos primeiros dias após a posse definitiva do governo Michel Temer também tem um capitão no papel de protagonista. Identificado numa reportagem premiada da jornalista Marina Rossi, do El País, o envolvimento no caso do capitão do Exército Willian Pina Botelho, também ligado a área de informações, é um fato estabelecido. Já foi assumida pelo Comando do Exército, ainda que por vias tortas – alegou-se que fazia um trabalho encoberto para apurar a ação de possíveis grupos terroristas que poderiam atuar durante os Jogos Olímpicos.

Como a tocha olímpica havia sido apagada, no Rio de Janeiro, em 21 de agosto, ou duas semanas antes, pode-se concluir que no início de setembro o capitão prestasse serviços a uma investigação preventiva para os Jogos de Tóquio, marcados para 2020.

“É obvio que nunca acreditei nisso” disse, em entrevista ao 247, o engenheiro Miguel Perrella, pai de um dos estudantes será levado a julgamento. “Basta abrir os olhos. A gente sabe o que está acontecendo no país. Depois de ler os depoimentos dos jovens é possível concluir que se fez uma armação para condenar os jovens à prisão".

Em dezembro de 2016, apenas três meses depois da prisão dos estudantes, o capitão Willian foi promovido a major. O oficial, que escondia a identidade sob o pseudônimo Balta Nunes, é apontado pelos estudantes como o cidadão que, infiltrado em reuniões preparatórias e debates em redes sociais, ajudou a construir uma narrativa de suspeitas e eventos de fantasia usados para comprometer os estudantes numa acusação que seria apresentada a Justiça.

Como aconteceu com o capitão Wilson, o capitão Willian jamais foi levado a prestar esclarecimentos a sociedade brasileira sobre suas atividades naqueles dias – o que seria uma obrigação natural num país onde a Constituição de 1988 define a subordinação das Forças Armadas aos poderes civis,o que não acontecia na época do Riocentro.

Espera-se que seja ouvido no julgamento, sem que seus superiores se utilizem de surrados argumentos sobre a “segurança nacional” para camuflar atividades que só criam insegurança junto aos cidadãos.

Até agora o capitão sequer foi interrogado pelos advogados dos réus, o que seria de utilidade indispensável para explicar seu papel num episódio importante na dramática virada de situação representada pelo impeachment de uma presidente afastada sem crime de responsabilidade configurado.

Horas antes daquele que seria primeiro grande protesto contra o golpe em São Paulo, dissolvido com violência pela PM, Willian/Balta que articulou um encontro fora de hora dos jovens, que, como se veria mais tarde, não passava de uma armadilha para atrair os estudantes.

Com a autoridade típica que pessoas mais velhas e treinadas costumam adquirir em rodas formadas por garotos e meninas pós-adolescentes - fazendo ainda o personagem de galã engajado e atormentado, o capitão também assediava inúmeras jovens ativistas - conseguiu marcar um encontro no Centro Cultural Vergueiro, no bairro da Liberdade. O argumento era que, após tantos contatos virtuais, havia chegado a hora do grupo reforçar laços e conhecerem pessoalmente. Mesmo ativistas que já se encontravam na avenida Paulista, nas proximidades do Masp, ponto de concentração do protesto, foram convencidos a se deslocar para o Centro Cultural. Constataram, sem entender a razão, que seu trajeto foi acompanhado por um helicóptero que sobrevoava aquela região da cidade.

Quando o grupo havia formado uma roda para dar início a conversa, apareceram soldados da PM que, conforme depoimentos ouvidos pelo 247, estavam prontos para entrar em ação – alguns, escondidos atrás de arbustos.

"Quando a gente viu, tinha polícia saindo dos arbustos atrás da gente, na frente da gente, de todos os lados e apontando a arma, gritando bastante", relata Sofia Beçak, em entrevista reproduzida em sua página no Facebook. Momentos antes da entrada em cena dos policiais, Balta/Willian tentou se afastar. Chamou uma menina para ir até o bar comprar cerveja. O pedido causou estranheza entre os outros e, a contragosto, ele teve de ficar junto com o grupo. Essa reação dos meninos e meninas produziu seus frutos. Permitiu que se fizesse uma foto dele na hora da prisão, junto com os outros detidos. Graças a esse retrato ele pode ser identificado.

Conforme os estudantes, quando se encontravam no Centro Cultural eles foram apresentados a uma barra de ferro, até hoje a única “arma” que serve para ilustrar uma denúncia risível, que inclui instrumentos suspeitíssimos - como chaveiros do velho personagem Pateta, da Disney - e uma garrafa de vinagre, equipamento obrigatório para quem não desistiu de protestar na rua por aquilo que acha correto, ainda que tenha de enfrentar bombas de gás da PM.

Numa versão corrente entre familiares dos estudantes, a barra de ferro não passava da perna de uma banqueta metálica do próprio Centro Cultural, que a polícia localizou ao entrar no Centro Cultural e a partir de então tenta apresentar como arma de ataque.

Entre os 21 detidos, a PM incluiu até um estudante que, inteiramente alheio aos protestos (“era até um pouco coxinha,” segundo uma testemunha) fora ao Centro Cultural para fazer pesquisas para um trabalho de escola, o célebre TCC. Como acontece nos filmes de Hollywood, só um dos envolvidos escapou sem que ninguém se desse conta na hora: o infiltrado.

Já aprisionados, os meninos e meninas se encontravam no ônibus o grupo recebeu uma mensagem pelo zap. O autor era o Balta, cuja ausência já começava a ser notada pelos mais atentos. Conforme advogados e familiares, ele contou típica história sem pé nem cabeça. Disse que, no momento em que foram feitas as prisões, havia se retirado do local para tomar uma cerveja num bar das proximidades. Também disse que, em seguida, fora preso pela polícia e levado para uma delegacia no bairro da Liberdade, mas conseguira ser liberado. Numa informação que para rastros e conexões do capitão William com toda operação, ele disse aos estudantes uma coisa eles não sabiam: estavam sendo conduzidos ao DEIC, (Departamento Estadual de Investigações Criminais), onde ficariam prisioneiros até a tarde do dia seguinte.

Entre a prisão e a liberação dos estudantes, naquele pequeno universo do governo paulista ocorreram sinais que antecipavam mudanças gerais em curso no país a partir da queda da Dilma. Os estudantes estavam aprisionados mas foram mantidos incomunicáveis por cinco horas, sem direito a serem ouvidos por advogados  mesmo menores de idade - o que é ilegal. Informada sobre das prisões, uma equipe da TV Globo aproximou-se do local para ouvir pais, parentes, militantes e amigos. Foi enxotada com os gritos de “ fora golpistas!” As portas do DEIC ficaram protegidas por correntes que impediam maiores aproximações, mesmo de advogados e defensores públicos que foram ao local e têm livre acesso assegurado. “Assistimos a uma volta do decreto 477, versão 2016,” disse ao 247 o defensor público Marcelo Novaes, presente ao DEIC naquela noite. ”Em vez da expulsar os estudantes das escolas por razões políticas, em processos sumários, agora estão usando a justiça criminal para que sejam punidos”.

Rosana Cunha, mãe de um estudante acusado, contou ao 247: “Um dos jovens me disse que foram recebidos por um delegado que olhava nos olhos e dizia: vocês vão ficar presos. Ou seja: estava tudo arrumado com antecedência”.

Por motivos mais do que compreensíveis, a memória da ditadura reapareceu na segunda feira a tarde, quando o juiz Rodrigo Tellini Aguirre de Camargo assinou a sentença mandando liberar os estudantes e definindo as prisões como ilegais. O juiz escreveu:

- O Brasil como Estado Democrático de Direito não pode legitimar a atuação policial de praticar verdadeira ‘prisão para averiguação’ sob o pretexto de que estudantes reunidos poderiam, eventualmente, praticar atos de violência e vandalismo em manifestação ideológica.”

Ele ainda acrescentou:

- Esse tempo, felizmente, já passou.”

O magistrado também disse: "Vivemos dias tristes para nossa democracia. Triste do país que seus cidadãos precisam aguentar tudo de boca fechada". Referindo-se ao trabalho de investigação, o juiz foi claro:

--A prova do auto de prisão em flagrante é de que todos os detidos estavam pacificamente reunidos para participar de uma manifestação pública, nenhum objeto de porte proibido foi apreendido.”

Por uma questão de prazos, por pouco o país não teve direito a festejar a sentença do juiz que registrou a passagem da ditadura. É que os frágeis indícios contra os estudantes, necessárias para justificar as prisões, levaram tempo para serem apresentados ao Fórum. Sem eles, não haveria audiência de custódia e os estudantes poderiam ser mantidos mais tempo atrás das grades. As condições de detenção também seriam agravadas. Deixariam as celas do DEIC para serem conduzidos a um Centro de Detenção Provisória, onde permaneceriam por um tempo indefinido. “Pelo menos uma semana,” calcula um advogado envolvido no caso. “Ou quem sabe ainda mais.”

Na prática, o julgamento funcionará como uma espécie de teste. Irá mostrar se, como disse o juiz Aguirre de Camargo, as medidas judiciais que não respeitam o Estado Democrático de Direito representam um tempo que já passou. Ou se o estado de exceção inaugurado por um impeachment sem provas está se consolidando.

Este é o ponto.

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