quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Cancellier foi vítima do Estado policial

Por René Ruschel, na revista CartaCapital:

"Quem matou o reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier?” A incisiva pergunta é o título de um artigo publicado pelo jornalista Carlos Damião, velho conhecido das histórias políticas em uma Florianópolis ainda estupefata pela morte do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina na segunda-feira 2. Cancellier pulou no vão livre de um shopping, indicam os laudos preliminares da Polícia Civil. A dúvida levantada por Damião refere-se às razões que o levaram ao desesperado ato.

Definido por amigos e adversários como um homem inteligente, afável e conciliador, Cancellier estava à frente da UFSC desde maio de 2016. Advogado, 59 anos, mestre e doutor em Direito, vinha sendo acusado pela Polícia Federal de tentar obstruir as investigações da Operação Ouvidos Moucos, deflagrada em 2014 para apurar supostos desvios em um programa de ensino a distância, oriundos de gestões anteriores, no valor de 80 milhões de reais. Aqui a primeira inverdade: esse é o valor do projeto total, não do valor supostamente desviado.

A denúncia partiu do corregedor da UFSC, quando Cancellier avocou a auditoria interna da universidade para seu gabinete, afirmou o reitor, em entrevista concedida ao Diário Catarinense há menos de 15 dias. De acordo com ele, tudo foi feito às claras e de forma consensual, com base em recomendações da Advocacia-Geral da União. “Isto está dentro de uma discussão jurídica e técnica”, enfatizou. “Não poderia haver prisões.”

Não foi assim que entendeu a juíza Janaina Cassol Machado, da 1ª Vara Criminal da Justiça Federal de Santa Catarina. Em despacho de 28 de agosto, ela autorizou a prisão de sete acusados, entre eles Cancellier, cinco conduções coercitivas e diversas buscas e apreensões.

A ação, comandada pela delegada Erika Marena em 14 de setembro, mobilizou mais de cem policiais de diversas regiões do País. Ao selar o destino do reitor, a magistrada foi taxativa: “Se há risco de interferência na investigação, é uma conclusão a mim lógica. Existe. Tanto que esse foi um dos fundamentos para a minha decisão”.

Surpreende a agilidade na tramitação do processo pelos corredores dos tribunais. Foram 55 dias desde a entrada do pedido da Polícia Federal até o despacho da juíza, em um inquérito com mais de mil páginas, dezenas de vídeos e outros dados.

Questionada, a juíza avaliou tratar-se de um tempo razoável. “Foi o mínimo necessário daquilo que vejo como um período de maturação da decisão, que não pode ser feita de um dia para o outro.” Dois dias antes das prisões, a juíza titular pediu licença por motivos de saúde e foi substituída pela colega Marjôrie Freiberger. Na sexta-feira, dia seguinte ao cumprimento dos mandados, a substituta determinou a soltura dos presos.

Para Cancellier, era tarde demais. Ao jornalista Damião desabafou: “Foi uma coisa da qual nunca vou me recuperar”. Não se referia apenas às suspeitas levantadas pela Ouvidos Moucos, mas “à forma degradante como foi tratado ao ser transferido da sede da PF para o Presídio da Agronômica”.

Sentiu-se constrangido ao ser despido diante dos policiais. “Estava desolado. Com endereço conhecido, disse que sempre esteve à disposição da Justiça e da PF. Lembrou que nenhuma acusação de desvio de recursos pesava sobre ele, mas de gestões anteriores, desde 2006”, afirma Damião. O estado emocional do reitor era de absoluta perplexidade.

A prisão foi decretada antes de nem ter sido convocado a prestar qualquer tipo de esclarecimento. A humilhação a que foi submetido era adotada para todos os presos, embora ele, com curso superior, tivesse direito a uma cela especial.

A exemplo do que acontece com a Lava Jato, a prisão de Cancellier foi uma verdadeira “operação midiática”, emenda Damião. Após a divulgação pela PF, a imprensa local o classificava como “ladrão, corrupto”.

Embora a comunidade acadêmica tenha reagido de imediato em sua defesa, exigindo as provas contra o reitor, o estrago em sua vida já estava feito. O jornalista lembra ainda que a delegada que comandou a prisão de Cancellier, Érika Marena, integrou a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba. “Ao ser transferida para Florianópolis, a delegada trouxe os mesmos métodos da Lava Jato”, emenda Damião.

Na cerimônia fúnebre, o advogado e ex-senador Nelson Wedekin fez um emocionado e duro discurso: “Que autoridades são essas que, ao invés de nos proteger, causam medo e terror? Quem são eles, assim destituídos de humanidade e razão? É preciso agir com a mão assim pesada, com tal crueldade, com tal virulência e desumanidade? Não se passa o País a limpo assim”.

Para o amigo do reitor, “muitas mãos invisíveis” o empurraram das alturas. “Mãos de quem, tendo o poder de prender sem flagrante, e de começar uma investigação pela coerção, constrangimento e prisão dos suspeitos. Não chegam a perceber que o método rústico revela a incapacidade de cumprir seus deveres e obrigações com inteligência, método e moderação.”

Em nota de pesar, o procurador-geral do Estado, João dos Passos Martins Neto, avalia que Cancellier padeceu sob abuso de autoridade. “Por isso, respeitado o devido processo legal, é indispensável a apuração das responsabilidades civis, criminais e administrativas das autoridades policiais e judiciárias envolvidas.”


Nascido no município catarinense de Tubarão, filho de um operário e de uma costureira, apaixonado por futebol e torcedor do Hercílio Luz, Cancellier começou sua vida profissional como jornalista, mas foi abduzido pelo Direito.

Em antiga entrevista, justificou a mudança de rumo pelo encanto com as possibilidades que a ciência jurídica oferece à defesa e ao exercício da Justiça. “Sem o Direito, prevalece a força, a barbárie”, disse à época. Neste caso, a barbárie dos insensatos resultou na tragédia vista no vão do shopping à beira-mar.

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