quinta-feira, 23 de novembro de 2017

A Previdência Social para além do déficit

Por Gustavo Noronha, no site Brasil Debate:

Desde a Constituição de 1988 foram aprovadas cinco emendas à Constituição alterando diversos aspectos da Previdência Social, as duas últimas no primeiro governo Dilma. A mais radical das reformas ocorreu no governo Fernando Henrique Cardoso, quando foram introduzidas diversas medidas das quais destacamos: a incorporação de critérios financeiros e atuariais nos regimes previdenciários; e o fim a aposentadoria por tempo de serviço, sendo substituída pelo tempo de contribuição.

O governo Lula trouxe mais uma reforma da Previdência que, inclusive, levou à resistência de parlamentares do próprio Partido dos Trabalhadores (PT) que, por se oporem às mudanças, acabaram expulsos do partido e vieram a fundar o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).

Entre as medidas então aprovadas, concentradas no serviço público, cabe ressaltar: o fim da paridade e da integralidade para novos servidores; a cobrança de contribuição de aposentados e pensionistas; a adoção de tetos e subtetos na administração pública; e a previsão de adoção, por lei ordinária (no governo FHC previu-se a regulamentação por lei complementar), da previdência complementar do servidor.

As mudanças constitucionais promovidas por Fernando Henrique e Lula foram as mais marcantes, entretanto houve ainda diversas mudanças em dispositivos legais nos últimos 20 anos. Neste contexto é que surgem os debates sobre a necessidade de uma nova reforma da Previdência. O governo Temer, sem qualquer preocupação com a popularidade e ancorado em forte apoio parlamentar, impulsiona a discussão e torna a reforma quase inevitável com a aprovação da Emenda Constitucional nº 95, a famigerada emenda do teto dos gastos.

É um debate que desperta acaloradas controvérsias entre os economistas, contra e a favor. O primeiro ponto de controvérsia é se a Previdência é pensada como uma espécie de seguro social ou se ela está sustentada na solidariedade intergeracional. Na primeira perspectiva, para a Previdência pouco importaria o resultado fiscal e ela funcionaria num regime semelhante aos regimes privados de previdência, sendo a aposentadoria vinculada à contribuição. Sob esta ótica, as propostas de mudança na idade mínima e tempo de contribuição chegam a ser cruéis, pois muitas pessoas receberiam como retorno da Previdência muito menos do que aquilo que contribuíram. Ainda assim, há, principalmente entre os que defendem a reforma, quem argumente sob esta perspectiva para defender mudanças principalmente para aqueles que pouco ou nada contribuiriam para a Previdência.

Entretanto, os que defendem a reforma da Previdência normalmente usam os argumentos da solidariedade intergeracional e do inevitável envelhecimento da população na defesa de seu ponto de vista. Para tanto, desconsideram o conceito de seguridade social, e apontam um déficit corrente e uma futura explosão dos gastos com Previdência que gerariam um perigoso rombo nas contas públicas.

Para além da discussão sobre as contestáveis projeções dos economistas do governo, eles incluem na conta da Previdência os benefícios de prestação continuada e a aposentadoria rural que têm características de assistência social. Ademais, desconsideram a sonegação fiscal, desvios de receitas vinculadas à Previdência e a informalidade no mercado de trabalho no Brasil. Tampouco levam em conta o baixo grau de capitalização da economia brasileira, já que uma economia mais capitalizada aumentaria a eficiência do trabalho e, por consequência, permitiria uma maior capacidade de tributação garantindo um financiamento sustentado da Previdência.

Entre os críticos da reforma, o argumento central normalmente se concentra na tese, baseada na Constituição, de que se trata de um regime de seguridade social. Este regime de Seguridade Social, de acordo com diversos estudos, seria superavitário e, portanto, qualquer proposta de reforma seria um engodo. Este argumento poderia ser ainda extrapolado para uma sequência de superávits da seguridade social ao longo dos últimos anos que garantiria sua sustentabilidade ainda que haja eventuais déficits futuros.

Os argumentos, contra ou a favor, normalmente focam no resultado fiscal, seja da Previdência, seja da Seguridade Social. Ambas as argumentações procuram provar que há um déficit ou superávit, atual ou futuro. O argumento que apresentamos é de que não é um problema em si existir déficit na previdência ou seguridade social, o resultado fiscal de um governo monetariamente soberano é menos relevante que o resultado econômico (inflação e emprego) e social (bem-estar da população). O que se pretende afirmar vai além, não é problema existir déficit público em si, na verdade o normal numa economia capitalista é que exista déficit público.

O problema da maioria dos economistas é que partem da interpretação smithiana de moeda enquanto uma mercadoria. Na verdade, Alfred Mitchell Innes demonstrou num artigo seminal, What is Money? [1], que a moeda é uma relação de crédito e débito. A aceitação de um débito de um determinado agente por outro é o ato que em si cria a moeda. De forma bastante simplificada, como há a obrigação do pagamento dos tributos, entende-se, portanto, que a moeda em última instância seria uma criatura do Estado [2]. Sob esta ótica o dispêndio público é financiado sempre pela emissão monetária, enquanto tributação e o endividamento do estado são apenas formas de se reduzir a quantidade de moeda em poder do público.

Deste entendimento deriva-se a ideia das finanças funcionais [3], um contraponto à ideia das finanças saudáveis que tem embasado todo o pensamento de austeridade e coloca os governos reféns dos resultados fiscais. Nesta perspectiva, rejeita-se a ideia de equilibrar o orçamento governamental num ano ou qualquer outro período arbitrário para que o gasto público seja orientado pelo nível do emprego e pela taxa de inflação.

Assim, a reforma da Previdência, como qualquer outro gasto do governo, deveria ser orientada pelos seus impactos econômicos e sociais. Os gastos do nosso sistema de Previdência Social, em sua maioria, são benefícios para as camadas de menor rendimento e, por consequência, com efeitos multiplicadores importantes devido à alta propensão marginal a consumir dos seus beneficiários. Em realidade, haveria, sim, a necessidade se discutir uma reforma que aumentasse os benefícios mais baixos: enquanto o piso da Previdência está baseado no salário-mínimo de R$ 937,00, o DIEESE aponta que o necessário seria de R$ 3.754,16 [4].

Poderia se argumentar que os altos benefícios, nas faixas mais altas de renda, normalmente têm uma menor propensão marginal ao consumo, logo, ao contrário dos benefícios mais baixos, não fazem girar a economia e, portanto, deveriam ser combatidos. O que não se diz é que, no Regime Geral de Previdência, o limite máximo foi instituído na reforma promovida por Fernando Henrique e, para os servidores públicos, na reforma do início do governo Lula. Não há novas superaposentadorias sendo concedidas, o que existe é o resquício de superaposentadorias do passado.

Obviamente, não se pode ignorar a existência de diversos diplomas legais que impõem a doutrina das finanças saudáveis e sua ideologia da austeridade. Entretanto, o déficit público em geral, e o da Previdência em particular, não é um problema. Na realidade, quando o governo realiza déficits, o setor privado é superavitário e sob a égide da austeridade, a realização de superávits inevitavelmente drena recursos da economia.

O que se advoga, portanto, é que não se olhe o problema da Previdência sob a ótica de um resultado fiscal arbitrário, de um ano ou qualquer outro período que se queira, mas que se faça uma análise dos seus resultados econômicos e sociais.

Notas

[1] Innes, A. M. What is Money? Disponível em .

[2] Ver Knapp, G. F. The State Theory of Money. Disponível em .

[3] Sobre finanças funcionais ver Lerner, A. P. Functional finance and the federal debt. Disponível em

[4] Dados para outubro de 2017. Informações atualizadas disponíveis em .

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