domingo, 18 de março de 2018

A vida de Marielle e a morte da democracia

Por Elika Takimoto, na revista Fórum:

Há tempos, muitos de nós alertamos que não estamos mais vivendo em um país democrático. Não se trata de ter um governo que não nos agrade e indignar-se por ver quem votamos ter sido afastada do cargo. Sempre foi algo muito mais profundo. A forma pela qual Dilma foi tirada do poder mostrou claramente que tudo o que está sendo feito não é pensando no melhor para o povo.

Não adiantou áudio, as provas não serviram de nada, malas de dinheiro ficaram invisíveis para quem via o bolsa-família com péssimos olhos e as manchetes e as matérias claramente manipuladoras feitas pela grande mídia nada significavam para quem sempre foi contra as cotas. A lavagem cerebral foi tão intensa que a reforma trabalhista foi desejada por pessoas que não eram grandes empresárias, o projeto de lei Escola sem Partido que amordaça os professores e as professoras chegou a ser aplaudido, o aumento da gasolina não mais incomodou, o sucateamento das Universidades Públicas não comoveu e, além de tantas coisas importantes que nos tiraram, tentaram diminuir a importância da vida de Marielle para o Brasil.

Quando falamos no fim da democracia ao ver uma presidente ser deposta como foi, não estávamos brincando. Nunca foi retórico. Há quem acredite que para vivermos em uma ditadura temos que ver as ruas preenchidas com tanques de guerra e soldados em cada esquina. Jamais foi assim. Para começar, uma das marcas mais conhecidas da ditadura foi a censura. Ela atingiu a produção artística e controlou com pulso firme a imprensa. Qualquer semelhança com os dias de hoje não é coincidência. Ver artistas sendo perseguidos, linchados, achincalhados e a arte sendo considerada algo pernicioso são características marcantes de um regime tirano. Lá nos idos de 1964, as escolas foram rigorosamente controladas. Havia uma gestão austera sobre as informações que por elas transitavam e houve um engessamento forte do currículo e das metodologias utilizadas. Aulas de filosofia e sociologia deixaram de existir e, se hoje vemos perseguição aos professores dessas áreas que são acusados de fazerem doutrinação em sala de aula, saibam que isso tem tudo a ver com o regime que estamos vivendo.

Como não havia conselhos fiscalizatórios e, com a dissolução do Congresso Nacional, as contas públicas não eram analisadas, era impossível controlar os gastos ou denunciar a corrupção. Até mesmo o discurso de que as “taxas de crescimento” melhoraram foi bastante controverso. Melhoraram para quem? De fato, houve oportunidades de lucros altos, mas para os mais pobres, assalariados ou informais, restava a manutenção de sua pobreza e o aumento da dificuldade de chegar às universidades, como vemos, de novo, acontecer com a reforma do Ensino Médio realizada no governo Temer. Muitos que se posicionaram contra essa estrutura montada entre 1964 e 1985 tiveram o mesmo fim que Marielle: uma vida encerrada abruptamente.

Não é, porém, o que foi acima apontado o que caracteriza, em sua totalidade, um regime ditatorial. Se não tem quem o apoie, ele não se sustenta. Para tanto, o poder da imprensa e o controle do que deve ser consumido em termos culturais e intelectuais são fundamentais para moldar o cérebro de uma grande parte da população.

A morte de Marielle e a quantidade de discursos – vindo até mesmo de deputados e de uma desembargadora – que debocham da comoção não somente dos seus (mais de) 45 mil eleitores, mas também de quem reconhecia nela uma força política contra as injustiças sociais escancararam, para quem ainda não acreditava, que a democracia não mais existe em nosso país e o nível da cegueira de grande parte da população.

Marielle mostrou que estava disposta a levar às últimas consequências sua condição de relatora da comissão de acompanhamento criada pela Câmara dos Vereadores para monitorar a intervenção militar no estado do Rio de Janeiro e, pouco antes de sua morte, chegou a indicar atrocidades cometidas pela polícia militar contra os moradores de Acari. Não sem motivo, Marielle sempre se posicionou a favor da desmilitarização da polícia – o que, nem de longe, é o mesmo que dizer que ela apoiava bandido. Ninguém, em sã consciência, quer ver criminosos sem punição vivendo livremente no meio do povo.

Muitos ainda não sabem a diferença entre o trabalho da polícia Civil e Militar e esclarecê-la é fundamental nesse contexto. A atribuição de cada grupo está explícita no artigo 144 da Constituição Federal de 1988. As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais são responsabilidades da polícia civil que é dirigida por delegados de polícia de carreira. Já às polícias militares cabem o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública. Em que medida essa divisão atual é boa para o país do ponto de vista operacional? Por que existe essa separação? O mundo tal qual estamos vivendo parece-lhe um lugar bom? Marielle achava que não e, inteligente que era, jamais foi a favor de desarmar a polícia, como muitos estão dizendo. Porém, Marielle indicou – inúmeras vezes – as vantagens para a sociedade se tivéssemos uma polícia desmilitarizada.

Desmilitarizar a PM não é nada mais do que transformá-la numa instituição civil para assim permitir que seus membros detenham os mesmos direitos e deveres básicos do restante da população. Ela visa abolir da polícia o seu modo de operação que vem do sistema militar das Forças Armadas e de sua ação hierarquizada. Na reformulação da segurança pública promovida pelo golpe ditatorial de 1964, esse esquema foi intensificado e, até hoje, a formação da polícia militar é baseada na ideia da guerra contra um “inimigo”. As perguntas que Marielle insistia em fazer eram: Quem é esse inimigo? A quem a polícia militar está servindo?

Hoje, os recrutas são submetidos a treinamentos violentos, a maus tratos e à Justiça Militar. Abusos de autoridade, tão comuns à hierarquia militar, não seriam permitidos depois da desmilitarização, pois esta prevê que os direitos dos policiais sejam respeitados e que eles tenham liberdade para se expressar e exigir condições dignas de trabalho. A proposta, vale frisar, garante a manutenção de todos os direitos trabalhistas dos profissionais da segurança. Enfim, a polícia que deixa de ser militar passa a usufruir de alguns Direitos Humanos que hoje somente os policiais civis possuem como, por exemplo, a liberdade de expressão e não ser preso de forma arbitrária no quartel. Certamente por isso, há muitos policiais militares que são a favor da desmilitarização da polícia.

Falando em Direitos Humanos…
Acreditar que a defesa dos direitos humanos é um estorvo para a segurança pública, como muitos estão seguramente afirmando, beira à insanidade. A Declaração dos Direitos Humanos foi redigida após o mundo passar por uma guerra marcada pela brutalidade genocida de regimes fascistas. Ela é formada por 30 artigos que, dentre outros direitos, declara o direito a não ser escravizado, não ser preso ou exilado de forma arbitrária, o direito de ser tratado com igualdade perante as leis, o direito à livre expressão política e religiosa, e à liberdade de pensamento e de participação política. O lazer, a educação, a cultura também são declarados como direitos humanos fundamentais.

No Brasil, há muitas organizações e políticos que se articulam em torno da defesa e promoção dos direitos humanos. Marielle teve uma atuação exemplar registrando 16 projetos de lei. Como consequência de tamanho empenho, ela se envolveu diretamente na fiscalização da atuação das polícias e, como já mencionado aqui, tornou-se relatora da Comissão de Representação para acompanhar a Intervenção Federal na Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Vale lembrar que ela não ficava somente em gabinete. Marielle ia para as comunidades conversar com a população pobre que é o principal alvo, segundo apontava, dessas políticas.

Não há dúvidas de que com a chegada da intervenção militar houve uma restrição de direitos nas comunidades. A mídia alternativa tem mostrado incessantemente isso. Há uma movimentação dos militares, como apontou Orlando Zaccone, delegado da polícia civil do Rio de Janeiro, no sentido de que haja a suspensão de direitos e garantias dentro das comunidades, como é a questão da lei do abate, que permite que uma pessoa suspeita de portar uma arma possa ser atingida letalmente numa ação policial.

Marielle não cansava de salientar como os direitos humanos estavam sendo constantemente violados dentro das favelas. Com a intervenção – tal como já vimos em um passado remoto quando não vivíamos em uma democracia – percebemos um reforço do discurso de que temos que restringir direitos individuais para “a manutenção de uma certa ordem”. A execução de Marielle indica que aqueles que se opõem a essa postura passam a estar no outro campo político e correm risco de vida. Qualquer semelhança com o nosso passado seria mera coincidência?

É importante frisar que testemunhamos um crime político tanto para dar o valor merecido à luta de Marielle quanto para, mais uma vez, denunciar o que está, de fato, ocorrendo em nosso país.

Desde 2014, como mostrou o historiador Fernando Horta, ao menos outros 24 líderes comunitários, ativistas e militantes políticos foram evidentemente executados em diferentes regiões do Brasil. A maioria negros. O levantamento feito por Horta não inclui mortes suspeitas de lideranças nem trabalhadores que não tinham, pelo menos de forma evidente, papel político de liderança. Se usarmos esses dois critérios adicionais, a lista certamente passa de centenas de nomes.

Se há quem julgue, à luz de tudo o que está acontecendo, que estamos ainda em uma democracia, que o que ocorreu no Rio de Janeiro é algo pontual, que a execução de Marielle não tem a ver com esse golpe, esse ser, ouso dizer, não está entendendo nada.

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