Segundo recente reportagem do jornal Valor, “o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já marcou data para anunciar seus planos ambiciosos para o uso do real nas transações da América do Sul... Na próxima reunião da Unasul, que agrega os países da região, ainda neste semestre, Lula quer apresentar aos parceiros proposta que pode ampliar o uso do real nas relações entre os vizinhos”. Caso a notícia se confirme, será um fato inédito na história desta sofrida região, sempre tratada como “quintal dos EUA”, e poderá representar o fim do “império do dólar” no continente.
Ainda conforme a reportagem, o mecanismo de substituição do dólar não está pronto e passa por discussões na equipe econômica, “onde, jura-se no Palácio do Planalto, já existe concordância do reticente Banco Central”. Henrique Meirelles, ex-dirigente do Bank of Boston, é um estorvo até neste tema. Segundo estudos prévios, os países sul-americanos seriam autorizados a sacar, junto ao BC, uma quantia de reais que seria usada no comércio com o Brasil ou mesmo para repassar a outros países da região. “Falta ainda, segundo graduado assessor de Lula, definir o total que será posto à disposição dos vizinhos. Lula quer que seja uma quantia significativa”, afirma o jornal.
O debate sobre o fim do padrão-dólar na região não parte apenas do governo brasileiro e nem é simples retórica. Hugo Chávez foi o primeiro a defender esta medida de defesa da soberania e de integração latino-americana, quando propôs a criação do “sucre” como moeda única regional. Na seqüência, em abril passado, Brasil e Argentina firmaram um acordo de substituição do dólar nas transações comerciais entre os dois países. A nova proposta do presidente Lula já tem o apoio de Cristina Kirchner e Hugo Chávez. Os demais países da região, inclusive os alinhados aos EUA, também deverão aderir à iniciativa, como forma, até pragmática, de superar sua vulnerabilidade.
“Um tabu mental desmorona”
Esta notícia bombástica, inimaginável há algum tempo atrás, parece confirmar uma tendência em curso em vários continentes e não só na nossa região. A mídia européia tratou a recente visita de Lula à China como mais um petardo no fim agonizante do padrão-dólar, com o início das trocas comerciais em iuan e real. “É como se um tabu mental desmoronasse, como se o inconcebível se tornasse, de repente, possível”, alertou o jornal francês Le Monde. “A idéia de um mundo liberto do domínio do bilhete verde avança. Moscou e Nova Déli poderão se juntar ao movimento e permitir às divisas do Bric formarem um bloco dos ‘4 R’ (real, rublo, rupia, renminbi). O fim do reinado do dólar será, talvez, lento. Mas não menos inevitável”, concluiu o renomado periódico.
No mesmo rumo, o presidente do Banco do Povo da China, Zhou Xiaochuan, defende substituir o dólar pelos Direitos Especiais de Saque (DES) do Fundo Monetário Internacional (FMI), uma vez que a moeda de reserva dominante traria maior estabilidade à economia global. Sua idéia de reformar o sistema através de uma moeda de reserva supranacional já teria o apoio da Rússia e de outros países. A mesma tese também é defendida por Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de economia, que propõe uma nova moeda de reserva, possivelmente baseada no DES, criado há 40 anos para suplementar o que na época foi considerado um nível inadequado de reservas globais.
“Quais as probabilidades de se adotar um plano deste tipo hoje? Os EUA estariam preparados para aderir a uma reforma do sistema monetário internacional que reduzisse o papel do dólar? Até recentemente, eu teria considerado isto improvável. A mudança da situação internacional e a possibilidade de um surto de grave fragilidade do dólar, porém, poderiam convencer os EUA a aderir a um plano de conversão que aliviasse a pressão excessiva exercida sobre o dólar. Além disso, excetuando-se possíveis considerações políticas, detentores de dólares de grande porte considerariam uma conta substituta atraente, como forma de proteção contra intensas oscilações no valor do dólar”, argumenta Onno Wijnholds, ex-diretor executivo do FMI.
O declínio relativo do império
A possibilidade real, mas não irreversível, do fim do padrão-dólar tem forte motivação política e econômica. Ela reflete o declínio relativo da hegemonia mundial dos EUA, que se acelerou com a desastrosa administração do presidente-terrorista George W. Bush. No caso da América Latina, ela expressa profundas mudanças políticas na correlação de forças, com as vitorias eleitorais de forças progressistas não alinhadas automaticamente com o império. O fim do padrão-dólar seria impensável há alguns atrás, quando os EUA exerciam poder unipolar sobre o planeta. Como fera acuada, o “império do mal” pode até realizar novas provocações para manter sua hegemonia. Irã e Coréia do Norte podem ser os seus novos álibis, rasgando a “face humana” de Barack Obama.
Além do fator político, o derretimento do padrão-dólar coincide com o agravamento da recessão nos EUA, que detonou uma das mais graves crises da história do capitalismo mundial. A recente falência da GM, que a mídia brasileira insiste em abrandar com o uso do termo concordata, pode indicar o fim de um ciclo. Não foi apenas um símbolo do império ianque que sucumbiu; todo um edifício que está rachado. Como afirma o jornalista Bernardo Joffily, editor do Portal Vermelho, “quando os grandes quebram, é sinal de que a crise é grave, já que em crise ‘normais’ eles até se fortalecem, engolindo os concorrentes mais fracos. Isto significa também que um número muito maior de falências está ocorrendo na base da pirâmide empresarial, fora dos holofotes da mídia”.
"Um sistema que faz água"
No mês de maio, o total de falências nos EUA foi de 7.514, uma média de 242 por dia. O número foi 40% maior que o de maio de 2008. A falência da GM, maior produtora de veículos do planeta entre 1927 e 2007 e responsável por metade da frota de carros dos EUA, foi somente o caso mais emblemático. Antes da sua estatização – outro termo que a mídia procura omitir –, oito grandes bancos e várias indústrias já tinham quebrado. Além do baque empresarial, o governo dos EUA patina nos “déficits gêmeos” (importam mais do que exportam e gastam mais do que arrecadam) e as famílias estão endividadas. No ano passado, 1,1 milhão de famílias pediram “falência” – um recurso legal existente no país. Neste ano, calcula-se que serão 1,6 milhão de famílias.
“É todo um sistema que faz água, e as aflições dos oligopólios bilionários dão apenas uma pálida idéia do que acontece embaixo deles”, arremata Bernardo Joffily. Num cenário em que ninguém tem certeza sobre a dimensão e a duração da crise econômica e no qual a hegemonia política dos EUA atravessa um visível declínio, o padrão-dólar sofre questionamentos no mundo inteiro. A manutenção desta moeda como referência nas transações comerciais e financeiras é hoje mais motivo de instabilidade do que de segurança. Por estas e outras razões, o império do dólar corre sério risco, o que é motivo de expectativa para as nações “rivais” e de esperança para os povos.
Neste quadro de incertezas, a recente proposta do presidente Lula seduz até o jornal de negócios Valor, porta-voz do capital: “Se quiser reduzir as fontes de pressão sobre as políticas comerciais dos parceiros sul-americanos e minimizar seus efeitos sobre as vendas de produtos brasileiros na região, o governo tem de buscar mecanismos criativos e menos dependentes do fluxo de dólares para esses países. Lula mandou seus técnicos encontrarem esses mecanismos e conta tê-los em mãos até junho”. Se a medida realmente vingar, derrotando as “reticências” do BC e de outros neoliberais de plantão, a história das “veias abertas” da América Latina poderá ser reescrita no futuro. A soberania das nações e a integração latino-americana sairão fortalecidas.