quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
Balanço-2010: Cenário mundial de incertezas
Por Altamiro Borges
I- O fantasma da crise econômica
1- Os trabalhadores do mundo inteiro acompanharam, tensos e temerosos, a crise que se abateu sobre a economia capitalista desde a falência do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008. Afinal, em todas as recessões econômicas, sejam nas mais suaves ou nas mais profundas, os que vivem do trabalho são sempre as principais vítimas, com a explosão do desemprego, o arrocho dos salários e a precarização trabalhista.
No caso desta crise, ela teve um agravante. Ela começou no coração do sistema capitalista, nos EUA – e não na sua periferia. Detonada a partir do estouro da bolha especulativa no setor imobiliário, o chamado subprime, ela logo atingiu o setor financeiro, levando à falência centenas de bancos. Na sequência, indústria e comércio sentiram seu impacto, cuja concordata da GM foi o caso mais grave. Diferente das crises cíclicas anteriores, esta foi e ainda é uma crise estrutural e sistêmica, cujos efeitos deverão ser mais prolongados e destrutivos.
2- No rastro devastador da crise, que logo contaminou as economias “avançadas” da Europa e do Japão, cerca de 16 milhões de trabalhadores foram sumariamente demitidos e inúmeros governos reduziram investimentos nas áreas sociais e impuseram leis de precarização trabalhista. Estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) revela que apenas nas 20 maiores economias do planeta o desemprego ceifou 6 milhões de postos na indústria, 3 milhões na construção civil e 2,3 milhões no comércio.
Culpados pela crise, os capitalistas novamente jogaram seu ônus nas costas dos assalariados. Numa prova de cinismo, eles rasgaram os dogmas neoliberais, que pregavam o desmonte do Estado, da nação e do trabalho e que foram os culpados pela eclosão da recessão. O poder público, antes satanizado e reduzido a “estado mínimo”, foi acionado para salvar avarentos capitalistas. George W. Bush e Barack Obama saquearam dos cofres públicos trilhões de dólares para socorrer bancos, indústrias e comércio. Para os ricaços, tudo e com célere urgência; para os trabalhadores, o brutal ônus da crise – como sempre ocorreu no sistema de exploração capitalista.
3- A grave retração mundial confirmou que o capitalismo é um sistema de crises periódicas. Elas fazem parte da sua dinâmica, com todas suas chagas sociais. Mas também revelou que o sistema não cai de maduro. Ele desenvolveu mecanismos para se safar do completo colapso. No auge da crise, em meados de 2009, muitos analistas sonharam com reformas do sistema, com a adoção de medidas de controle de agiotagem financeira e de maior justiça social. Mas isto não ocorreu. O capitalismo mantém a sua dinâmica de exploração do trabalho, de concentração das riquezas nas mãos de uma minoria e de especulação rentista.
A crise não foi terminal, como muitos previam. Mas ela também ainda não está superada, como os apologistas do capital agora bravateiam. Nas potências capitalistas, ela continua causando instabilidade política e enorme insegurança para os trabalhadores. Na maior parte da periferia do sistema, seus efeitos ainda são sentidos, inclusive nos países da América Latina mais dependentes do mercado externo. Os sinais de novos repiques da crise mundial ainda assombram os povos, como um fantasma que ronda o mundo capitalista.
4- No livro “A queda livre”, ainda não traduzido no Brasil, o prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz demonstra que a elite capitalista ainda está distante de enfrentar os gargalos que levaram a mais brutal crise do sistema das últimas décadas. Na prática, o egoísmo capitalista encara como “uma nova normalidade” o desemprego alto, o baixo crescimento da economia e o desmonte dos serviços públicos. Eles já tratam como natural a chamada “doença japonesa”, que afeta este país há vários anos, explica o ex-economista-chefe do Banco Mundial.
Para manter seus privilégios, os ricaços exigem cortes nos gastos sociais para que sobre mais dinheiro dos tributos na salvação desta minoria de parasitas. Stiglitz analisou as medidas adotadas nos primeiros oito meses deste ano e chegou à conclusão que a crise capitalista vai ser prolongada, com enormes prejuízos aos trabalhadores – cortes de salários, demissões em massa, retirada de direitos trabalhistas, redução de investimentos nas áreas sociais. A anarquia capitalista cobra seu preço no coração do sistema.
5- Nos EUA, epicentro da crise, o desemprego alcançou o recorde histórico de 10% em 2009 – o dobro de 2008. O déficit público, decorrente do salvamento aos poderosos, já engoliu US$ 12,36 trilhões do erário e o Orçamento para 2011 prevê cortes de US$ 1,6 trilhão nos gastos sociais – o que agravará o drama de milhões de miseráveis deste país símbolo do capitalismo. O socorro até agora dispensado às poderosas corporações ainda não surtiu efeito. Em abril último, a comissão de valores mobiliários dos EUA (SEC) acusou os 19 maiores bancos do país de usarem artifícios contábeis para desviar fortunas dos cofres públicos. Já a auditoria federal teme pela capacidade de sobrevivência da GM, apesar dos US$ 13,4 bilhões que garfou da União.
Na Europa, o quadro é ainda mais grave. A Grécia faliu e outros primos pobres da continente, como Portugal, Irlanda e Espanha, estão no buraco. Para o Banco Central Europeu, há forte risco de “novas turbulências econômicas”. “Podemos já ter entrado na próxima fase da crise”, afirma Jürgen Stark, executivo do BCE. Algumas economias inclusive já ameaçam abandonar a moeda única da região, o Euro.
6- Já nos países mais frágeis do sistema, na África e na maior parte da Ásia e da América Latina, o impacto da crise mundial é devastador. A miséria é uma tragédia social que se alastra. Recente relatório da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) comprova que o número de pessoas que passam fome no mundo beira um bilhão em decorrência da crise capitalista.
“Nunca houve tanta gente passando fome no mundo”, garante Gustavo Chianca, representante da FAO. Crianças com menos de dois anos compõem a metade do contingente que padece na subnutrição. Dos 122 países pesquisados, 29 deles, principalmente no Sul da Ásia e na África Subsaariana, têm níveis de fome descritos como “extremamente alarmantes”. Enquanto o dinheiro público escoa para salvar os ricaços, os pobres são abandonados pelo capitalismo – sem comida, sem saneamento básico, sem trabalho... sem perspectiva de futuro.
7- Como em outros momentos históricos, a grave crise das maiores economias capitalistas abriu espaço para o crescimento de alguns países da periferia do sistema – o que reforça a tese de que, na lógica do desenvolvimento combinado e desigual do capitalismo, a crise pode se tornar uma janela de oportunidades. Isto é que explicaria a situação distinta do chamado Bric, que reúne as economias do Brasil, Rússia, Índia e China.
Segundo previsões do Banco Mundial para 2010, a China terá um crescimento de quase 10% no seu PIB; a Índia pode beirar os 7%; e o Brasil deve superar os 6%. A Rússia, que foi destruída pela restauração capitalista, é que apresenta maiores dificuldades – mesmo assim, ela está em melhores condições do que várias potências capitalistas. Um dos segredos desta situação favorável dos Bric é que estas nações não seguiram o receituário neoliberal imposto pela ditadura financeira – de desmonte do estado, da nação e do trabalho. Elas ainda possuem empresas estatais fortes, bancos públicos de peso, maior capacidade dos governos de regulação e indução econômica e mercados internos protegidos. A negação do neoliberalismo foi decisiva para que estes países fossem os últimos a entrar em crise e os primeiros a sair dela.
II- Instabilidade política e ofensiva belicista
8- A grave crise promoveu alterações no quadro político mundial, o que tem reflexos na luta dos trabalhadores. Nos EUA, a retração econômica e a agressiva política externa de George W. Bush foram responsáveis pela eleição do primeiro presidente negro desta nação racista. Barack Obama foi eleito com a promessa de mudança, mas até agora só causou decepção. Tanto que seu índice de popularidade já despencou – de 72% na posse para menos de 50% na atualidade.
Vacilante, ele não enfrentou o poderoso complexo financeiro/industrial/militar, bancou trilhões de dólares para os rentistas e abrandou até a sua reforma do sistema de saúde. No campo externo, Obama segue os passos genocidas de Bush. Ele reforçou a ocupação militar do Afeganistão, apóia Israel contra os palestinos e, o mais preocupante, dá fortes sinais de uma nova escalada militar – com o risco de guerras contra Irã e Coréia do Norte, o que pode lançar a humanidade numa completa barbárie de conseqüências desastrosas. Historicamente, as guerras sempre foram um instrumento usado pelo capitalismo para superar suas graves crises econômicas. Obama vai virando um refém dos setores mais direitistas dos EUA, alojados no Partido Republicano, que ameaçam desestabilizar o seu governo e exigem uma política mais militarizada e expansionista.
9- Já a Europa, continente envelhecido, presencia o crescimento de forças nitidamente fascistas, que utilizam o discurso xenófobo para jogar a sociedade contra os imigrantes. A maior parte dos governos do continente está sob controle de partidos de direita, que promovem contra-reformas da Previdência, impõem medidas de precarizaçao do trabalho, arrocham brutalmente os salários e desmontam o estado de bem-estar social construído no pós-guerra. A situação dos trabalhadores europeus é de acelerada regressão dos direitos.
Ângela Merkel (Alemanha), Nicolas Sarkozy (França) e Silvio Berlusconi (Itália) estão na linha de frente desta onda direitista na Europa. Seus governos também reforçam os traços imperialistas e belicistas, almejando principalmente maior expansão no Leste Europeu, destruído pelo tsunami capitalista, e no sofrido continente africano. A Europa, sob a hegemonia de forças de caráter fascista, abandona a bandeira da paz e reforça o discurso guerreiro dos EUA, o que agrava a situação de instabilidade no mundo atual.
10- Diante deste triste cenário, os trabalhadores europeus resistem, mas ainda numa correlação de forças adversa. As oito greves gerais na Grécia são a resposta às tentativas de regressão dos direitos trabalhistas e previdenciários. Em Portugal, prestes a cair no desfiladeiro, também foram realizadas três greves gerais neste ano.
Na França, que sofre a pior recessão desde o pós-guerra – o PIB recuou 2,2% em 2009 –, desde março ocorrem sucessivas paralisações contra o pacote de maldade do governo direitista de Nicolas Sarkozy, que visa congelar salários e elevar o tempo de aposentadoria dos franceses. Na mais recente greve geral, realizada em outubro passado, o país quase entrou em colapso com o fechamento de dez das doze refinarias de petróleo e a escassez de combustível. Desde a sua chegada ao poder, em maio de 2007, Sarkozy tem sofrido gradual perda de popularidade e corre sério risco de derrota nas eleições de 2012. Ele prometera “mais trabalho”, mas a taxa de desemprego na França bate recorde – atingindo 10% em setembro. Já na Itália, Silvio Berlusconi é hostilizado devido ao seu projeto regressivo de reforma da Previdência Social. Na Inglaterra, a ocupação de fábricas falidas prossegue. A luta de classes deve se aguçar na Europa, que vive a tensa disjuntiva: progresso social ou fascismo!
III- Riscos de retrocesso na América Latina
11- Na América Latina, o cenário também não é dos mais tranqüilos. Após a heróica luta contra as ditaduras militares, o continente oprimido virou o principal laboratório mundial das políticas neoliberais. A partir do Consenso de Washington, firmado pelas elites empresariais em 1989, um tsunami devastou os países da região com a privatização das empresas estatais, redução do papel do estado, abertura de fronteiras contrária à soberania nacional, corte de investimentos públicos e retirada de direitos trabalhistas.
A taxa de desemprego bateu recordes históricos; a informalidade superou os índices de trabalho formal; os salários perderam peso no Produto Interno Bruto (PIB); a miséria e a barbárie se alastraram na América Latina. O neoliberalismo se tornou hegemônico, elegendo e reelegendo presidentes comprometidos com os seus dogmas, afinados com a ditadura financeira e alinhados servilmente com os EUA. Uma parcela dos trabalhadores, inclusive, foi seduzida pelos slogans midiáticos contra os servidores públicos, os direitos previdenciários e trabalhistas e a soberania das nações. A manipulação neoliberal, porém, não durou muito tempo.
12- De continente laboratório das políticas neoliberais, a América Latina se transformou, a partir do final da década de 1990, na vanguarda da luta contra o neoliberalismo. Apesar da devastação do trabalho, que fragmentou e tornou mais complexa a classe trabalhadora, o sindicalismo não se curvou e resistiu à brutal ofensiva do capital. Novos movimentos sociais passaram a jogar papel de maior protagonismo no hemisfério.
Fruto desta resistência ativa, onze presidentes neoliberais foram depostos e os candidatos identificados com esse receituário destrutivo e regressivo foram rechaçados nas urnas. Com concepções distintas e ritmos diferenciados, reflexos da realidade da luta de classes em cada país, novos governantes passaram a adotar políticas de fortalecimento do estado, de reversão do processo de privatização, de maior investimento em programas sociais e de diálogo mais democrático com os movimentos sindicais e populares. A hegemonia neoliberal deu lugar a uma guinada à esquerda na América Latina.
Os novos governos também perceberam que precisavam investir na integração regional; divididos diante do império estadunidense, estes países se desintegrariam. Em curto espaço de tempo, o sonho de uma América Latina mais unida ganhou contornos mais nítidos. A proposta dos EUA da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), que transformaria todo o continente numa colônia escravizada, foi enterrada pela luta dos povos. Houve a retomada do Mercosul, que agora deixa de ser uma mera união aduaneira e passa a ter maior papel político – inclusive com a eleição para o parlamento do Sul (Parlasul). Criou-se a Unasul, unindo toda a América do Sul, e avançam as articulações da Alba (Aliança Bolivariana para as Américas). A integração também dá passos no terreno econômico, com a construção do gasoduto regional, e no campo militar, com a constituição do Conselho de Defesa Militar do Sul. Neste aspecto, mesmo a polêmica presença de soldados do Brasil no Haiti – país devastado por ditaduras e desastres naturais – representa um revés da ação militarista dos EUA no continente.
13- Estes expressivos avanços, porém, não estão imunes a risco. Ainda campeia a desigualdade social nesta região devastada pelo colonialismo, ditaduras e neoliberalismo. As experiências em curso também revelam limitações, não conseguindo enfrentar os seus problemas estruturais. Para agravar o cenário, os EUA tentam retomar a ofensiva no seu “quintal”, após uma fase de sensível perda de influência política e econômica. Não dá para subestimar a agressividade deste império, que tem muitos interesses em jogo na região.
Um breve balanço confirma que ele obteve recentes vitórias e recupera terreno no continente, seja através de golpes, ocupações militares e até mesmo pela via eleitoral. Ainda na gestão de George Bush, os EUA reativaram a 4ª Frota, composta por navios nucleares que vigiam os mares do hemisfério sul, ameaçando os governos progressistas da região e a cobiçando as riquezas do pré-sal. Em maio de 2009, o empresário direitista Ricardo Martinelli venceu as eleições no Panamá; em junho, o “democrata” Barack Obama foi cúmplice do golpe em Honduras, o que fez ressurgir o fantasma das ditaduras; no mesmo período, os EUA anunciaram a criação de seis bases militares na Colômbia; já no Haiti, o trágico terremoto serviu de pretexto para o envio de milhares de soldados ianques.
Na eleição do Chile, Michele Bachelet, apesar da sua popularidade, não conseguiu transferir votos para o seu candidato Eduardo Frei. A direita saiu unificada e as forças de centro à esquerda apresentaram três candidaturas. Resultado: o barão midiático Sebastián Piñera, totalmente servil à política externa dos EUA, venceu o pleito para o delírio da direita latino-americana. Agora, no final de setembro, forças militares tentaram um golpe no Equador. Treinados e financiados pelos EUA, os golpistas deram um baita susto, mas foram barrados pelo povo nas ruas, que garantiu o retorno do presidente Rafael Correa.
14- Estes reveses indicam que a guinada progressista na América Latina corre perigo. A opção por programas sociais distributivos, pela retomada do papel indutor do estado e pela integração latino-americana, entre outros avanços, pode ser abortada com o regresso de gestores neoliberais, que pregam o “alinhamento automático” com os EUA. Há sinais de alerta na Argentina, onde a direita ruralista e rentista joga na desestabilização do governo Cristina Kirchner; na Venezuela, onde ressurgem conspirações golpistas e a direita avançou nas eleições de setembro; na Bolívia, sempre sob a ameaça da divisão territorial; e principalmente nos países da América Central, agora sob o espectro assustador do retorno dos golpes e ditaduras militares.
Mas, como apontou recente artigo do jornal britânico Guardian, a aposta decisiva para os rumos da América Latina se dá no Brasil devido ao seu peso geopolítico na região. “Embora as autoridades do Departamento de Estado sob Bush e Obama tenham mantido postura amigável, é obvio que se ressentem das mudanças na política externa brasileira que aliaram o país a outros governos social-democratas do hemisfério e se ressentem da posição independente do Brasil em relação ao Oriente Médio, ao Irã e a outros lugares”. O destino da América Latina será decidido no Brasil, garante o Guardian. Dilma Rousseff, a primeira mulher eleita presidente do país, terá muitos desafios pela frente.
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I- O fantasma da crise econômica
1- Os trabalhadores do mundo inteiro acompanharam, tensos e temerosos, a crise que se abateu sobre a economia capitalista desde a falência do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008. Afinal, em todas as recessões econômicas, sejam nas mais suaves ou nas mais profundas, os que vivem do trabalho são sempre as principais vítimas, com a explosão do desemprego, o arrocho dos salários e a precarização trabalhista.
No caso desta crise, ela teve um agravante. Ela começou no coração do sistema capitalista, nos EUA – e não na sua periferia. Detonada a partir do estouro da bolha especulativa no setor imobiliário, o chamado subprime, ela logo atingiu o setor financeiro, levando à falência centenas de bancos. Na sequência, indústria e comércio sentiram seu impacto, cuja concordata da GM foi o caso mais grave. Diferente das crises cíclicas anteriores, esta foi e ainda é uma crise estrutural e sistêmica, cujos efeitos deverão ser mais prolongados e destrutivos.
2- No rastro devastador da crise, que logo contaminou as economias “avançadas” da Europa e do Japão, cerca de 16 milhões de trabalhadores foram sumariamente demitidos e inúmeros governos reduziram investimentos nas áreas sociais e impuseram leis de precarização trabalhista. Estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) revela que apenas nas 20 maiores economias do planeta o desemprego ceifou 6 milhões de postos na indústria, 3 milhões na construção civil e 2,3 milhões no comércio.
Culpados pela crise, os capitalistas novamente jogaram seu ônus nas costas dos assalariados. Numa prova de cinismo, eles rasgaram os dogmas neoliberais, que pregavam o desmonte do Estado, da nação e do trabalho e que foram os culpados pela eclosão da recessão. O poder público, antes satanizado e reduzido a “estado mínimo”, foi acionado para salvar avarentos capitalistas. George W. Bush e Barack Obama saquearam dos cofres públicos trilhões de dólares para socorrer bancos, indústrias e comércio. Para os ricaços, tudo e com célere urgência; para os trabalhadores, o brutal ônus da crise – como sempre ocorreu no sistema de exploração capitalista.
3- A grave retração mundial confirmou que o capitalismo é um sistema de crises periódicas. Elas fazem parte da sua dinâmica, com todas suas chagas sociais. Mas também revelou que o sistema não cai de maduro. Ele desenvolveu mecanismos para se safar do completo colapso. No auge da crise, em meados de 2009, muitos analistas sonharam com reformas do sistema, com a adoção de medidas de controle de agiotagem financeira e de maior justiça social. Mas isto não ocorreu. O capitalismo mantém a sua dinâmica de exploração do trabalho, de concentração das riquezas nas mãos de uma minoria e de especulação rentista.
A crise não foi terminal, como muitos previam. Mas ela também ainda não está superada, como os apologistas do capital agora bravateiam. Nas potências capitalistas, ela continua causando instabilidade política e enorme insegurança para os trabalhadores. Na maior parte da periferia do sistema, seus efeitos ainda são sentidos, inclusive nos países da América Latina mais dependentes do mercado externo. Os sinais de novos repiques da crise mundial ainda assombram os povos, como um fantasma que ronda o mundo capitalista.
4- No livro “A queda livre”, ainda não traduzido no Brasil, o prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz demonstra que a elite capitalista ainda está distante de enfrentar os gargalos que levaram a mais brutal crise do sistema das últimas décadas. Na prática, o egoísmo capitalista encara como “uma nova normalidade” o desemprego alto, o baixo crescimento da economia e o desmonte dos serviços públicos. Eles já tratam como natural a chamada “doença japonesa”, que afeta este país há vários anos, explica o ex-economista-chefe do Banco Mundial.
Para manter seus privilégios, os ricaços exigem cortes nos gastos sociais para que sobre mais dinheiro dos tributos na salvação desta minoria de parasitas. Stiglitz analisou as medidas adotadas nos primeiros oito meses deste ano e chegou à conclusão que a crise capitalista vai ser prolongada, com enormes prejuízos aos trabalhadores – cortes de salários, demissões em massa, retirada de direitos trabalhistas, redução de investimentos nas áreas sociais. A anarquia capitalista cobra seu preço no coração do sistema.
5- Nos EUA, epicentro da crise, o desemprego alcançou o recorde histórico de 10% em 2009 – o dobro de 2008. O déficit público, decorrente do salvamento aos poderosos, já engoliu US$ 12,36 trilhões do erário e o Orçamento para 2011 prevê cortes de US$ 1,6 trilhão nos gastos sociais – o que agravará o drama de milhões de miseráveis deste país símbolo do capitalismo. O socorro até agora dispensado às poderosas corporações ainda não surtiu efeito. Em abril último, a comissão de valores mobiliários dos EUA (SEC) acusou os 19 maiores bancos do país de usarem artifícios contábeis para desviar fortunas dos cofres públicos. Já a auditoria federal teme pela capacidade de sobrevivência da GM, apesar dos US$ 13,4 bilhões que garfou da União.
Na Europa, o quadro é ainda mais grave. A Grécia faliu e outros primos pobres da continente, como Portugal, Irlanda e Espanha, estão no buraco. Para o Banco Central Europeu, há forte risco de “novas turbulências econômicas”. “Podemos já ter entrado na próxima fase da crise”, afirma Jürgen Stark, executivo do BCE. Algumas economias inclusive já ameaçam abandonar a moeda única da região, o Euro.
6- Já nos países mais frágeis do sistema, na África e na maior parte da Ásia e da América Latina, o impacto da crise mundial é devastador. A miséria é uma tragédia social que se alastra. Recente relatório da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) comprova que o número de pessoas que passam fome no mundo beira um bilhão em decorrência da crise capitalista.
“Nunca houve tanta gente passando fome no mundo”, garante Gustavo Chianca, representante da FAO. Crianças com menos de dois anos compõem a metade do contingente que padece na subnutrição. Dos 122 países pesquisados, 29 deles, principalmente no Sul da Ásia e na África Subsaariana, têm níveis de fome descritos como “extremamente alarmantes”. Enquanto o dinheiro público escoa para salvar os ricaços, os pobres são abandonados pelo capitalismo – sem comida, sem saneamento básico, sem trabalho... sem perspectiva de futuro.
7- Como em outros momentos históricos, a grave crise das maiores economias capitalistas abriu espaço para o crescimento de alguns países da periferia do sistema – o que reforça a tese de que, na lógica do desenvolvimento combinado e desigual do capitalismo, a crise pode se tornar uma janela de oportunidades. Isto é que explicaria a situação distinta do chamado Bric, que reúne as economias do Brasil, Rússia, Índia e China.
Segundo previsões do Banco Mundial para 2010, a China terá um crescimento de quase 10% no seu PIB; a Índia pode beirar os 7%; e o Brasil deve superar os 6%. A Rússia, que foi destruída pela restauração capitalista, é que apresenta maiores dificuldades – mesmo assim, ela está em melhores condições do que várias potências capitalistas. Um dos segredos desta situação favorável dos Bric é que estas nações não seguiram o receituário neoliberal imposto pela ditadura financeira – de desmonte do estado, da nação e do trabalho. Elas ainda possuem empresas estatais fortes, bancos públicos de peso, maior capacidade dos governos de regulação e indução econômica e mercados internos protegidos. A negação do neoliberalismo foi decisiva para que estes países fossem os últimos a entrar em crise e os primeiros a sair dela.
II- Instabilidade política e ofensiva belicista
8- A grave crise promoveu alterações no quadro político mundial, o que tem reflexos na luta dos trabalhadores. Nos EUA, a retração econômica e a agressiva política externa de George W. Bush foram responsáveis pela eleição do primeiro presidente negro desta nação racista. Barack Obama foi eleito com a promessa de mudança, mas até agora só causou decepção. Tanto que seu índice de popularidade já despencou – de 72% na posse para menos de 50% na atualidade.
Vacilante, ele não enfrentou o poderoso complexo financeiro/industrial/militar, bancou trilhões de dólares para os rentistas e abrandou até a sua reforma do sistema de saúde. No campo externo, Obama segue os passos genocidas de Bush. Ele reforçou a ocupação militar do Afeganistão, apóia Israel contra os palestinos e, o mais preocupante, dá fortes sinais de uma nova escalada militar – com o risco de guerras contra Irã e Coréia do Norte, o que pode lançar a humanidade numa completa barbárie de conseqüências desastrosas. Historicamente, as guerras sempre foram um instrumento usado pelo capitalismo para superar suas graves crises econômicas. Obama vai virando um refém dos setores mais direitistas dos EUA, alojados no Partido Republicano, que ameaçam desestabilizar o seu governo e exigem uma política mais militarizada e expansionista.
9- Já a Europa, continente envelhecido, presencia o crescimento de forças nitidamente fascistas, que utilizam o discurso xenófobo para jogar a sociedade contra os imigrantes. A maior parte dos governos do continente está sob controle de partidos de direita, que promovem contra-reformas da Previdência, impõem medidas de precarizaçao do trabalho, arrocham brutalmente os salários e desmontam o estado de bem-estar social construído no pós-guerra. A situação dos trabalhadores europeus é de acelerada regressão dos direitos.
Ângela Merkel (Alemanha), Nicolas Sarkozy (França) e Silvio Berlusconi (Itália) estão na linha de frente desta onda direitista na Europa. Seus governos também reforçam os traços imperialistas e belicistas, almejando principalmente maior expansão no Leste Europeu, destruído pelo tsunami capitalista, e no sofrido continente africano. A Europa, sob a hegemonia de forças de caráter fascista, abandona a bandeira da paz e reforça o discurso guerreiro dos EUA, o que agrava a situação de instabilidade no mundo atual.
10- Diante deste triste cenário, os trabalhadores europeus resistem, mas ainda numa correlação de forças adversa. As oito greves gerais na Grécia são a resposta às tentativas de regressão dos direitos trabalhistas e previdenciários. Em Portugal, prestes a cair no desfiladeiro, também foram realizadas três greves gerais neste ano.
Na França, que sofre a pior recessão desde o pós-guerra – o PIB recuou 2,2% em 2009 –, desde março ocorrem sucessivas paralisações contra o pacote de maldade do governo direitista de Nicolas Sarkozy, que visa congelar salários e elevar o tempo de aposentadoria dos franceses. Na mais recente greve geral, realizada em outubro passado, o país quase entrou em colapso com o fechamento de dez das doze refinarias de petróleo e a escassez de combustível. Desde a sua chegada ao poder, em maio de 2007, Sarkozy tem sofrido gradual perda de popularidade e corre sério risco de derrota nas eleições de 2012. Ele prometera “mais trabalho”, mas a taxa de desemprego na França bate recorde – atingindo 10% em setembro. Já na Itália, Silvio Berlusconi é hostilizado devido ao seu projeto regressivo de reforma da Previdência Social. Na Inglaterra, a ocupação de fábricas falidas prossegue. A luta de classes deve se aguçar na Europa, que vive a tensa disjuntiva: progresso social ou fascismo!
III- Riscos de retrocesso na América Latina
11- Na América Latina, o cenário também não é dos mais tranqüilos. Após a heróica luta contra as ditaduras militares, o continente oprimido virou o principal laboratório mundial das políticas neoliberais. A partir do Consenso de Washington, firmado pelas elites empresariais em 1989, um tsunami devastou os países da região com a privatização das empresas estatais, redução do papel do estado, abertura de fronteiras contrária à soberania nacional, corte de investimentos públicos e retirada de direitos trabalhistas.
A taxa de desemprego bateu recordes históricos; a informalidade superou os índices de trabalho formal; os salários perderam peso no Produto Interno Bruto (PIB); a miséria e a barbárie se alastraram na América Latina. O neoliberalismo se tornou hegemônico, elegendo e reelegendo presidentes comprometidos com os seus dogmas, afinados com a ditadura financeira e alinhados servilmente com os EUA. Uma parcela dos trabalhadores, inclusive, foi seduzida pelos slogans midiáticos contra os servidores públicos, os direitos previdenciários e trabalhistas e a soberania das nações. A manipulação neoliberal, porém, não durou muito tempo.
12- De continente laboratório das políticas neoliberais, a América Latina se transformou, a partir do final da década de 1990, na vanguarda da luta contra o neoliberalismo. Apesar da devastação do trabalho, que fragmentou e tornou mais complexa a classe trabalhadora, o sindicalismo não se curvou e resistiu à brutal ofensiva do capital. Novos movimentos sociais passaram a jogar papel de maior protagonismo no hemisfério.
Fruto desta resistência ativa, onze presidentes neoliberais foram depostos e os candidatos identificados com esse receituário destrutivo e regressivo foram rechaçados nas urnas. Com concepções distintas e ritmos diferenciados, reflexos da realidade da luta de classes em cada país, novos governantes passaram a adotar políticas de fortalecimento do estado, de reversão do processo de privatização, de maior investimento em programas sociais e de diálogo mais democrático com os movimentos sindicais e populares. A hegemonia neoliberal deu lugar a uma guinada à esquerda na América Latina.
Os novos governos também perceberam que precisavam investir na integração regional; divididos diante do império estadunidense, estes países se desintegrariam. Em curto espaço de tempo, o sonho de uma América Latina mais unida ganhou contornos mais nítidos. A proposta dos EUA da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), que transformaria todo o continente numa colônia escravizada, foi enterrada pela luta dos povos. Houve a retomada do Mercosul, que agora deixa de ser uma mera união aduaneira e passa a ter maior papel político – inclusive com a eleição para o parlamento do Sul (Parlasul). Criou-se a Unasul, unindo toda a América do Sul, e avançam as articulações da Alba (Aliança Bolivariana para as Américas). A integração também dá passos no terreno econômico, com a construção do gasoduto regional, e no campo militar, com a constituição do Conselho de Defesa Militar do Sul. Neste aspecto, mesmo a polêmica presença de soldados do Brasil no Haiti – país devastado por ditaduras e desastres naturais – representa um revés da ação militarista dos EUA no continente.
13- Estes expressivos avanços, porém, não estão imunes a risco. Ainda campeia a desigualdade social nesta região devastada pelo colonialismo, ditaduras e neoliberalismo. As experiências em curso também revelam limitações, não conseguindo enfrentar os seus problemas estruturais. Para agravar o cenário, os EUA tentam retomar a ofensiva no seu “quintal”, após uma fase de sensível perda de influência política e econômica. Não dá para subestimar a agressividade deste império, que tem muitos interesses em jogo na região.
Um breve balanço confirma que ele obteve recentes vitórias e recupera terreno no continente, seja através de golpes, ocupações militares e até mesmo pela via eleitoral. Ainda na gestão de George Bush, os EUA reativaram a 4ª Frota, composta por navios nucleares que vigiam os mares do hemisfério sul, ameaçando os governos progressistas da região e a cobiçando as riquezas do pré-sal. Em maio de 2009, o empresário direitista Ricardo Martinelli venceu as eleições no Panamá; em junho, o “democrata” Barack Obama foi cúmplice do golpe em Honduras, o que fez ressurgir o fantasma das ditaduras; no mesmo período, os EUA anunciaram a criação de seis bases militares na Colômbia; já no Haiti, o trágico terremoto serviu de pretexto para o envio de milhares de soldados ianques.
Na eleição do Chile, Michele Bachelet, apesar da sua popularidade, não conseguiu transferir votos para o seu candidato Eduardo Frei. A direita saiu unificada e as forças de centro à esquerda apresentaram três candidaturas. Resultado: o barão midiático Sebastián Piñera, totalmente servil à política externa dos EUA, venceu o pleito para o delírio da direita latino-americana. Agora, no final de setembro, forças militares tentaram um golpe no Equador. Treinados e financiados pelos EUA, os golpistas deram um baita susto, mas foram barrados pelo povo nas ruas, que garantiu o retorno do presidente Rafael Correa.
14- Estes reveses indicam que a guinada progressista na América Latina corre perigo. A opção por programas sociais distributivos, pela retomada do papel indutor do estado e pela integração latino-americana, entre outros avanços, pode ser abortada com o regresso de gestores neoliberais, que pregam o “alinhamento automático” com os EUA. Há sinais de alerta na Argentina, onde a direita ruralista e rentista joga na desestabilização do governo Cristina Kirchner; na Venezuela, onde ressurgem conspirações golpistas e a direita avançou nas eleições de setembro; na Bolívia, sempre sob a ameaça da divisão territorial; e principalmente nos países da América Central, agora sob o espectro assustador do retorno dos golpes e ditaduras militares.
Mas, como apontou recente artigo do jornal britânico Guardian, a aposta decisiva para os rumos da América Latina se dá no Brasil devido ao seu peso geopolítico na região. “Embora as autoridades do Departamento de Estado sob Bush e Obama tenham mantido postura amigável, é obvio que se ressentem das mudanças na política externa brasileira que aliaram o país a outros governos social-democratas do hemisfério e se ressentem da posição independente do Brasil em relação ao Oriente Médio, ao Irã e a outros lugares”. O destino da América Latina será decidido no Brasil, garante o Guardian. Dilma Rousseff, a primeira mulher eleita presidente do país, terá muitos desafios pela frente.
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