Assustada com o que leu nas redes sociais desde a prisão dos petistas condenados pelo STF, uma leitora desabafou no Facebook: “Fascismo social”. Confesso que também me assustei, tanto quanto me assustei naquela manifestação na avenida Paulista, em São Paulo, quando a multidão enfurecida expulsou militantes de esquerda e de movimentos sociais. Exultante, o repórter da TV Bandeirantes registrou na edição da noite seguinte: “Escorraçados”.
Que os condenados deveriam ir de carroça até a prisão, puxando uns aos outros; que deveriam ser fuzilados com um tiro de 7mm; que deveriam ser entregues aos black blocs, supostamente para linchamento. Li e tenho registro do que foi escrito por gente que se identifica abertamente, com foto e tudo. É mais que a tradicional arrogância da elite brasileira, mais que expressão da licença para dispor do corpo alheio — como em nosso escravismo fundador — ou demonstração de que o entulho autoritário da ditadura está vivinho por aí.
No ano que vem será comemorado um aniversário de dez anos. A década em que a mídia corporativa brasileira repetiu basicamente o mesmo discurso sobre “o maior escândalo de corrupção da História”. O “escorraçados” dito na TV pelo repórter da Band, sem qualquer tipo de reflexão ou contextualização, legitima, estimula e “naturaliza” o discurso que ecoa hoje nas redes sociais. Mas também estamos diante de um fenômeno original.
Há algo intrínseco às redes sociais — à comunicação instantânea, sem fronteiras — que potencializa a violência verbal que temos testemunhado.
No interessante The Age of Insight, o cientista Eric Kandel explora os mecanismos pelos quais o cérebro humano desenvolve sua capacidade para empatia, ou seja, para entender — ainda que sem concordar — a posição do outro. Entender que o outro possa ter uma posição diferente da sua — e sobreviver sem ser “escorraçado” — é essencial à prática política. Uma das condições essenciais para a empatia, diz o cientista, é a troca de olhares — definidora de qualquer contato humano.
As redes sociais, onde as pessoas se escondem atrás da tela de um computador, algumas vezes no anonimato, são a antítese da “transparência” que pretendem representar. Ao mesmo tempo, o dinamismo oferecido pela comunicação instantânea nos afasta da reflexão e estimula respostas emocionais. É assim que se formam verdadeiras turbas eletrônicas, manadas virtuais dispostas ao linchamento, que em seguida transpõem para as ruas seu comportamento online.
Se por um lado as redes sociais permitem que todos se expressem — o que tem caráter altamente democrático, considerando que a liberdade de expressão sempre foi de muito poucos –, ao mesmo tempo contribuem para a atomização da opinião pública.
Alianças políticas sobre temas altamente emocionais, formadas em rede, nas quais internautas estimulam uns aos outros a agir, podem eventualmente transbordar para as ruas, como se deu nas manifestações de julho, mas se esvaziam com a mesma rapidez assim que a catarse se esvai.
Nos Estados Unidos, as alianças eventuais formadas em rede, a partir da reprodução de conteúdo midiático — especialmente da Fox News, de programas de debates em emissoras de rádio, mas também de blogs de direita como o Drudge Report — eventualmente se consolidaram num movimento intrapartidário, o Tea Party, que hoje dá direção ao Partido Republicano. É o melhor exemplo de casamento midiático-militante dos dias de hoje.
Dá para ouvir, no movimento, o eco das ideias simplórias e maniqueístas produzidas com didatismo pelas usinas midiáticas: o ‘peso’ e a ‘ineficiência’ do Estado; dar a vara de pescar, não o peixe; o sindicalismo corrupto; o multiculturalismo ‘esquerdizante’ e outros jargões de fácil apreensão e reprodução.
É possivel traçar um paralelo entre o Tea Party e o movimento neoliberal dos anos 70 e 80, que acompanhou a ascensão de Ronald Reagan à Casa Branca, as reformas internas nos Estados Unidos e a globalização a partir da plataforma econômica do consenso de Washington.
Lá atrás, os neoliberais se organizaram em torno de institutos, think tanks, bancados por grandes empresários direitistas, na capital norte-americana. A ideia era popularizar a produção intelectual de um grupo de neocons, o que foi feito através de revistas que circulavam junto à classe média. Reagan havia sido eleito ainda com sustentação da base tradicional do Partido Republicano, reforçada pelos cabos eleitorais da coalizão religiosa formada por evangélicos, católicos e judeus conservadores. Eram “os braços” de Reagan, a militância que o reelegeu em 1984.
Sob Reagan os neocons se instalaram em cargos-chave da burocracia, mas só assumiram o poder de fato muito mais tarde, através de George W. Bush, quando dispunham de uma grande massa de seguidores de diversas classes sociais, formada não apenas por revistas como Commentary e Weekly Standart, mas por programas de rádio de grande penetração, capazes de mobilizar milhões de pessoas, como os de Rush Limbaugh e outros.
Existe, porém, uma distinção importante entre os neocons, que se propunham e em certa medida revolucionaram o mundo, especialmente o Oriente Médio — deixando atrás de si um rastro de destruição — e o Tea Party. Este é um movimento claramente reacionário. Uma pesquisa recente com integrantes do Tea Party descobriu que ele é acima de tudo uma reação cultural à ascensão de Barack Obama, ou seja, tem uma forte base de racismo dissimulado, não apenas contra a cor da pele de Obama, mas contra a pregação multicultural “da elite de Harvard” (onde Obama estudou), que é vista como ameaça aos valores essenciais dos Estados Unidos.
Os que neste artigo eu chamo de black blocs da mídia brasileira (com o perdão dos anarquistas), que dizem nas redes sociais pretender fuzilar José Dirceu e José Genoino, também representam uma reação cultural à ascensão social promovida pelos governos Lula/Dilma, como escreveu aqui Gilson Caroni Filho. Mas não apenas.
Este movimento ainda amorfo e sem rumo expressa também os limites da política de alianças do PT, que garantiu vitórias eleitorais mas amarrou o partido a uma política econômica conservadora, que o impede de atender às enormes demandas da sociedade brasileira, que se tornaram ainda mais urgentes em regiões metropolitanas desiguais, violentas e carentes de serviços públicos essenciais.
Há muito mais que classe média aí.
Em certa medida, a despolitização do discurso cotidiano dos governos Lula/Dilma, associada ao intenso ativismo midiático, ajudou a gerar esta multidão de órfãos políticos, cuja expressão eleitoral mais recente foram os surpreendentes 20 milhões de votos de Marina Silva em 2010. Para as ruas, eles foram em julho. Agora, podem enfim conseguir quem os conduza.
É aquele que muitos chamam carinhosamente de Quincas, Joaquim Barbosa, o presidente do Supremo Tribunal Federal. Rodrigo Vianna escreveu um artigo interessante sobre o cálculo político que Barbosa talvez tenha feito ao decidir, de forma açodada, pela prisão dos réus do mensalão no feriado do 15 de novembro.
Hoje, nos bastidores da política, há os que acreditem que Barbosa é realmente um reformista togado, cujo primeiro objetivo foi punir o PT para em seguida fazer o mesmo com o PSDB e finalmente, no inquérito secreto 2474, chegar a um certo banqueiro.
Por outro lado, muitos estão certos de que o ministro vai se afastar do STF para ser vice de Aécio Neves ou lançar candidatura própria, em 2014.
O barbosismo traz consigo vários atrativos eleitorais: é centrado num outsider, um homem que veio de baixo, eleitor original de Lula e Dilma que poderia se propor a “corrigir” os erros do petismo e ao mesmo representar centenas de milhares de antipetistas que estão prontos para se unir à “revolta” contra o sistema. Tem classe média aí, sim, mas tem também uma grande dose de frustrados com o sistema político brasileiro, de todas as classes sociais, especialmente jovens.
Joaquim Barbosa seria uma espécie de John McCain, um cowboy tropical disposto ao acerto de contas com a “politicagem” de Brasília.
Sabemos muito bem o que esse tipo de “aventura” representou no passado e a elite econômica brasileira vai pensar algumas vezes antes de entregar o poder a alguém imprevisível, como fez com Fernando Collor diante do “mal maior”, Lula.
No desespero, nunca se sabe.
O ponto é que, mesmo que não tenha pretensões eleitorais, Joaquim Barbosa vai se tornando peça-chave nas eleições de 2014. Ele e sua imensa legião de black blocs midiáticos.
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