quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

A pressa do PSDB ameaça a democracia

Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:

Depois que a Central Única dos Trabalhadores divulgou uma pesquisa demonstrando o apoio absoluto da maioria dos brasileiros às regras da aposentadoria e a defesa da Previdência Social, num patamar que seria mais adequado definir como unanimidade, cabe registrar um ponto essencial do momento político.

Para o governo Dilma Rousseff, que está diante da difícil tarefa de reconstruir um governo após o desastre consumado no primeiro ano de mandato, a pesquisa recorda a importância de preservar seus compromissos com valores que marcaram sua história e suas campanhas eleitorais, o que inclui a defesa da Previdência.

Mas a oposição enfrenta, também, uma dificuldade nada desprezível.

Lembrando que a Constituição em vigor exige que o presidente da República seja escolhido em urna, pelo voto direto, a oposição precisa tentar convencer a maioria dos brasileiros de que suas propostas de governo são as mais adequadas para a maioria da população. Considerando o calendário eleitoral, dispõe de dois anos e dez meses para fazer isso.

Os números divulgados pela CUT mostram que não será uma tarefa simples nem fácil, em especial se for possível assegurar um debate democrático, capaz de permitir um confronto político de ideias e propostas, comparando as realizações e projetos de um lado e de outro.

Comprometida com um programa de corte de gastos públicos, no qual o eufemismo "reforma da Previdência" ocupa o lugar de primeiro destaque, a oposição tem pressa. Quer aproveitar o momento e por isso tenta modificar o calendário da sucessão.

Sabemos que o governo Dilma enfrenta hoje um nível de impopularidade jamais registrado pelas pesquisas de opinião.

Mas as conquistas sociais dos brasileiros, das quais a Previdência é um dos símbolos, ao lado do salário mínimo e dos programas sociais, permanecem vivas na consciência de uma população que conserva a memória de tempos miseráveis, ásperos e difíceis, que a criminalização seletiva da Lava Jato não foi capaz de apagar inteiramente, apesar do emprego de métodos stalinistas, como denuncia o professor Pedro Serrano na ótima entrevista a Folha de hoje.

Em 1964, a mesma situação se apresentou aos adversários de João Goulart. Os inimigos de Jango conspiravam com sucesso entre os grandes empresários de São Paulo e mobilizavam uma parcela importante da classe média a partir do fantasma do comunismo.

Tinham livre acesso aos quartéis, que agiam contra todo e qualquer governo ligado ao trabalhismo desde o retorno de Getúlio ao Catete, nas eleições de 1950.

Pelo menos desde 1962, ainda na Casa Branca de John Kennedy, os conspiradores contavam com o sinal verde do governo norte-americano para combater um presidente constitucional, que cometeu o pecado supremo de se recusar a alinhar o país pela lógica da Guerra Fria, enquanto tentava construir linha diplomática conhecida como Política Externa Independente.

Uma pesquisa do Ibope demonstrava, porém, que os adversários de Goulart tinham uma montanha íngreme para escalar - a vontade popular.

Apesar da imensa campanha dos jornais contra Goulart, as reformas de base que se encontravam no centro do programa do governo agradavam a maioria dos brasileiros. A margem era menor do que os 88% conferidos a Previdência Social, mas era clara e consistente. Elas tinham apoio de 59% dos brasileiros, informa uma pesquisa realizada no final de março de 1964, lembram historiadores Jorge Ferreira e Muniz Bandeira, em duas obras indispensáveis para se compreender a época.

A reforma agrária, que produzia uma divisão na base do presidente, que incluia o PSD do coronelismo tradicional, era apoiada pela maioria da população, inclusive nos centros urbanos. Entre as reformas anunciadas, era a que possuía maior aprovação. (A segunda era a reforma universitária).

Quando se recorda o calendário eleitoral do período, percebe-se um cálculo evidente. Apesar do desgaste de Goulart, a oposição tinha poucas chances de vencer a eleição presidencial seguinte, marcada para 1965. Para começar, não possuía um candidato capaz de enfrentar o adversário mais visível -- Juscelino Kubitschek, que preparava uma campanha triunfal, no que se desenhava como um continuismo moderado mas real em relação a Jango.

Também deveria derrotar um projeto de futuro para o país que contava com apoio consistente da população.

Alimentada por convicções democráticas profundas como uma poça d'água, para lembrar uma expressão de Nelson Rodrigues em outro contexto, a opção por um golpe de Estado tornou-se inevitável, do ponto de vista dos adversários de Goulart. Com ajuda dos meios de comunicação, foi possível fabricar a farsa de que um presidente constitucional deveria ser deposto para combater a corrupção e a subversão e salvar a democracia. Sabemos o fim dessa história.

Quando se analisa o comportamento dos adversários do governo em 2015, é fácil perceber o que acontece.

Com um padrão de escrúpulos éticos capaz de fazê-la abraçar Eduardo Cunha e seu esquema milionário sem o menor sinal de pudor e contrariedade, já que se tratava da única alternativa disponível para tentar emparedar o Planalto, a oposição tira o máximo proveito possível da criminalização do governo, do Partido dos Trabalhadores e seus aliados. Isso explica a frágil dianteira de Aécio Neves nas pesquisas para presidente, hoje, até pequena diante do massacre enfrentado pelo governo e seus aliados.

Mais do que eventuais méritos próprios, o que dá vida e Ibope a Aécio é o desmanche ocorrido no governo no primeiro ano do mandato de Dilma, realizado de modo seletivo e eficiente. Nunca é demais lembrar que as mesmas empreiteiras que fizeram contribuições eleitorais -- colocadas sob suspeita -- para a campanha de Dilma, contribuíram nas mesmas datas, a partir de somas equivalentes e até superiores, em alguns casos, para o caixa eleitoral de Aécio. O CNPJ era o mesmo. Nenhum dirigente tucano foi chamado a explicar-se por causa delas, no entanto.

As dificuldades do governo são imensas mas há uma dificuldade à vista para a oposição.O prazo constitucional de 34 meses até o próximo pleito abre uma grande possibilidade de mudança na situação política. Não há experiência histórica conhecida capaz de assegurar que um governo, qualquer governo, esteja condenado previamente a cometer fracassos sucessivos e rastejar por um prazo de quase três anos, incapaz de apresentar algum nível de recuperação até lá.

Não acredito que Dilma será capaz de retornar a aprovação altíssima exibida durante a maior parte do primeiro mandato. Mas acho pouco provável que se mantenha no nível atual. Acredito que, se for capaz de dar respostas coerentes a seu eleitorado, destravando a economia com medidas capazes de estimular o crescimento, mesmo moderadamente, o condomínio político que chegou ao Planalto em 2003 -- e não se dispersou até agora, como se viu em 16 de dezembro -- será capaz de produzir uma candidatura competitiva até 2018, dentro ou mesmo fora do PT, como JK, do PSD, aparecia nas articulações para a sucessão de Jango, do PTB.

E é isso, essa incerteza, que os adversários temem. Ao assumir que vale-tudo para afastar Dilma ("renúncia, retomada da liderança presidencial em novas bases ou, sendo inevitável, impeachment ou nulidade das eleições") Fernando Henrique Cardoso avisou aos navegantes que a prioridade é a luta contra o relógio.

Claro que é necessário estabelecer todas as distâncias devidas em função de momentos históricos distintos. Também é preciso levar em consideração o histórico de cada personagem. Mas o fato é que essa postura implica num ultimato contra as regras democráticas, pois a Constituição define um rito específico e instransponível para o afastamento de um presidente. Neste sentido, lembra a tristemente célebre declaração do ministro Jarbas Passarinho, em dezembro de 1968, na reunião em que deu voto favorável ao AI-5 da Junta Militar. Antigo coronel do Exército, que sempre disse orgulhar-se de suas ideias liberais, Passarinho admitiu que era preciso mandar "às favas os escrúpulos de consciência."

Alguma dúvida?

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente: