sábado, 24 de novembro de 2018

A calculada crueldade contra o Mais Médicos

Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:

Vamos reconhecer que num país no qual a saúde pública atingiu um nível de calamidade pública, o ataque de Jair Bolsonaro ao programa Mais Médicos é uma iniciativa que está além do debate ideológico. O argumento de que o programa se destina a "financiar" a ditadura cubana tem a lógica da crueldade, este elemento político que busca se fortalecer pela ausência explícita de compaixão.

"O Mais Médicos é o Bolsa Família da saúde pública", define Eduardo Tadeu Pereira, atual diretor da Associação Brasileira de Municípios, ex-prefeito de Várzea Grande, em São Paulo, um dos pioneiros na defesa do programa.

Em pesquisa realizada em 2015 pela Universidade Federal de Minas Gerais, quando o programa completava dois anos, nada menos que 94% dos milhões de usuários se disseram satisfeitos com o atendimento recebido. Entre os motivos apontados para tamanha satisfação, alguns são fáceis de compreender por toda pessoa que já frequentou postos de saúde e até filas de espera em determinados planos privados: a presença todos os dias de pelo menos um médico nas unidades de atendimento; uma elevação em 33% do número de consultas; atendimento descrito como "educado, atencioso e resolutivo".

Vivemos num país onde a Constituição não poderia ser mais clara a respeito da saúde como um direito de universal. Alvo permanente de campanhas do setor privado, que não mostraram força para derrubá-lo até agora, o artigo 196 diz expressamente: "A saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e do acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".


Diante de uma afirmação tão clara, combinada com o imenso apoio popular ao programa, não surpreende que em novembro de 2017 o Supremo Tribunal Federal tenha rejeitado uma ação de entidades médicas que tentava questionar a constitucionalidade da lei 12.871, que criou o Mais Médicos. Após esmiuçar cada um dos argumentos contrários, a mais alta corte do país tomou uma decisão que não deixa dúvidas pelo placar -- 6 a 2 a favor do Mais Médicos -- nem pelo conteúdo. Os argumentos corporativos contra a presença de médicos cubanos no país, que costumam ser retomados sistematicamente por Bolsonaro, foram examinados, debatidos e rejeitados, numa maioria liderada pelo voto de Alexandre de Moraes, integrada pelo decano Celso de Mello, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Edson Fachin e Luiz Fux. (Os votos em contrário foram de Marco Aurélio Mello e Rosa Weber).

Na configuração nascida da campanha presidencial, a decisão do STF representa um elemento em desacordo com a nova situação política. O placar derrotou uma tentativa de cortar o programa pela raiz. Com isso, dificulta qualquer tentativa de impedir, abertamente, a decisiva participação de profissionais de saúde cubanos -- 8 332 sobre um total de 18 000 inscritos no programa.

Em atividade desde 2013, quando o Mais Médicos foi lançado por Dilma Rousseff, gerando lamentáveis cenas de doutores de avental que foram aos aeroportos vaiar e até dar cusparadas, o campo de ação dos adversários está limitado, agora, a medidas de caráter administrativo. São recursos clássicos, que podem envolver manobras de todo tipo -- inclusive atraso e suspensão de pagamentos -- capazes de comprometer sua continuidade.

Não há dúvida, porém, que a intervenção de Bolsonaro surtiu um efeito prático. Convenceu Havana a chamar preventivamente seus médicos de volta, desfalcando os brasileiros e brasileiras de um contingente que atendia a população de locais mais distantes e abandonados. Em 30% dos municípios brasileiros -- 1585 para ser preciso -- apenas médicos cubanos respondem, hoje em dia, pelo atendimento. Na narrativa oficial, foi Cuba quem decidiu chamar seus médicos de volta. O enredo da história é outro.

Ocorreu aqui um cálculo aqui político e diplomático. Ninguém pode prever as medidas concretas que um governo que se apresenta como adversário assumido e declarado do regime cubano pode assumir contra um dos mais luminosos cartões de visita de Havana.

Os elos de ligação política entre os dois países obedece a um encadeamento histórico. No livro "O governo João Goulart", o historiador Muniz Bandeira informa, com apoio em boa documentação, que a neutralidade de Jango no bloqueio dos EUA a Cuba após a crise dos mísseis foi o fator decisivo para o democrata John Kennedy alinhar-se com os generais brasileiros -- avôs ideológicos de Bolsonaro -- para apoiar o golpe de 64. Mais tarde, a geração militar anterior a Bolsonaro fez da luta contra militares armados inspirados por Fidel e Guevara uma das principais razões de sua existência.

Três décadas após o fim da Guerra Fria, Cuba permanece como alvo estratégico do republicano Donald Trump, que tem feito o possível para revogar todo esforço de distensão e aproximação pacífica ensaiado por Barack Obama. Neste ambiente, toda e qualquer medida que possa enfraquecer o governo cubano será bem vinda e estimulada-- o que explica os aplausos imediatos de Washington aos ataques de Bolsonaro.

Do ponto de vista dos brasileiros e brasileiras, resta o problema principal: garantir o atendimento à população que reside em cidades distantes demais para interessar tanto médicos e instituições de saúde que pautam sua intervenção pelas regras do mercado de saúde como autoridades limitadas a agir e pensar dentro de projetos convencionais de saúde pública.

O sucesso do Mais Médicos se explica pelo encontro quase impossível de duas necessidades -- uma brasileira, a outra, cubana. Sua criação, em 2013, foi uma resposta de urgência a um país no qual 700 municípios -- ou 15% do total -- não possuíam um único profissional de saúde. Em outros 1,9 mil municípios, 3 000 habitantes disputavam a atenção estatística de menos de um médico por pessoa -- a média nacional de 1,8 médico por 1000 habitantes, contra 3 por 1000 na Argentina e Uruguai, 2.8/1000 na Inglaterra, 6/1000 em Cuba.

Como é previsível, nos locais mais carentes o salário de um médico costuma ser maior do que o do próprio prefeito -- a maior remuneração da cidade -- e mesmo assim a permanência não é garantida. Por razões que se pode imaginar, a maioria das tentativas de atrair profissionais de saúde -- e mesmo de outras áreas -- para locais remotos, com raríssimos contatos com o mundo exterior e um padrão necessariamente reduzido de conforto e opções de consumo dar errado. Muito antes do que se imagina, a maioria absoluta dos profissionais deslocados costuma pedir demissão e ir embora. Os médicos cubanos, que hoje atuam em 60 países diferentes, são um caso à parte.

Na realidade de seu país, são profissionais graduados, com vencimentos modestos pelo padrão internacional e recompensados pelo trabalho externo. Quando partem em missão no exterior são formalmente proibidos de trabalhar fora do local pré-determinado. Mesmo que quisessem, isso não seria possível. A lei brasileira não lhe dá o direito de revalidar os diplomas trazidos de casa e assim não podem ingressar no mercado de trabalho local.

Essa união de necessidades e conveniências mútuas explica a natureza bem sucedida de um programa que produziu outros frutos importantes, como a criação de faculdades de medicina em locais impensáveis do interior brasileiro. Resta, no entanto, a ameaça de quebrar o atendimento aos mais pobres e aos muito pobres, onde as falhas são cobradas em moléstias de todo tipo e ameaças desnecessárias à vida humana.

Numa demonstração de que ninguém quer pagar a conta por uma medida socialmente desastrada, o governo Temer anuncia a criação de regras emergenciais para permitir o preenchimento das 8 000 vagas que serão abertas pela saída dos cubanos. A experiência indica que a parte menos difícil é atrair profissionais para o serviço. Pelo menos 50% desiste após o primeiro ano e mais tarde restam apenas 30% do grupo original.

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