quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Mídia vitamina discurso policialesco

Por Felipe Bianchi, no site do Centro de Estudos Barão de Itararé:

Mesmo sendo o país com a terceira maior população carcerária no mundo, perdendo apenas para Estados Unidos e China, impera, no Brasil, a ideia de que a solução para combater a criminalidade é continuar mandando gente - principalmente jovens - para a prisão. Para piorar, as eleições de 2018 mostraram que o discurso policialesco, autoritário e essencialmente punitivista tem "colado" na opinião pública, já que portadores de bandeiras como "bandido bom é bandido morto" e representantes da chamada "bancada da bala" obtiveram votações expressivas, seja no âmbito da presidência, de governos estaduais e para a Câmara dos Deputados.

A pesquisadora gaúcha Marília Budó falou ao Cento de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé sobre o assunto. Em seu livro recém-publicado, Mídias e discurso do poder - Estratégias de legitimação do encarceramento da juventude no Brasil (Ed. Revan), a pesquisadora joga luz sobre como se dá a produção do senso comum relacionado a diversos temas, como o aumento da criminalidade e da insegurança, o crescimento da delinquência juvenil, a suposta “benevolência” do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em relação aos infratores. Em seu estudo, Budó desconstrói a tese de que o encarcamento em massa sirva como remédio para os problemas referidos. A premissa da obra, no entanto, é refletir sobre como esse discurso é apropriado, reproduzido e amplificado pela mídia.

Confira a entrevista completa a seguir:

João Dória, em São Paulo, ganhou a eleição para governador com um agressivo discurso policialesco, prometendo intensificar o caráter punitivo do sistema penitenciário e escantear, ainda mais, questões relativas a direitos humanos. Por que esse discurso "cola"? Em que medida a mídia hegemônica ajuda a impulsionar esse tipo de discurso?

Esse discurso é muito bem aceito por diversos motivos, mas eu destacaria a capacidade que ele tem de diferenciar as pessoas de acordo com critérios pouco transparentes em “cidadãos de bem” e “bandidos”. Quem vota em políticos influenciados por propostas de combate ao crime são pessoas que não reconhecem a si próprias como alvos em potencial do sistema de controle penal. O fato de elas praticarem crimes rotineiramente não é facilmente relacionado com o conceito de “bandido”. Apesar de todas as pessoas praticarem crimes, cada um tem as justificações para sua própria criminalidade, e entende que a criminalidade dos outros é que é perniciosa. Além disso, não podemos dizer que a mídia cria a noção de uma sociedade dividida em “amigos” e “inimigos”, mas sim que ela reproduz facilmente todas as estruturas que permitem essa divisão. Por exemplo, a noção de que a criminalidade está ligada à pobreza está impregnada no senso comum, e faz com que as pessoas pobres sejam consideradas criminosas em potencial. Quando na verdade a criminalidade mais danosa socialmente é típica das classes altas, aquela que tem o potencial de matar inúmeras pessoas, como é o caso dos crimes ambientais em geral – Mariana, por exemplo –, de crimes financeiros etc. No entanto, não são eles vistos efetivamente como esses bandidos que Dória promete deixar “apodrecerem” na cadeia.

Para além disso, é interessante notar que os meios de comunicação hegemônicos representam o crime na mídia a partir de um reforço ao senso comum sobre o crime (como se fosse um comportamento excepcional na sociedade), o criminoso (como se fosse alguém anormal) e a punição (como se fosse branda ou até mesmo estimulante da reincidência). Além da noção da excepcionalidade do crime, o que notamos na análise dos jornais é que eles costumam sobrerrepresentar em suas páginas policiais os crimes contra o patrimônio e o tráfico de drogas, e ao fazê-lo, obscurecer toda a criminalidade que não corresponde a esse modelo pré-determinado do que pode ser compreendido como crime. Além disso, quando resolvem noticiar, por exemplo, homicídios ou estupros, isso depende de dois requisitos essenciais: a pessoa que praticou o crime deve corresponder ao estereótipo do criminoso de uma sociedade classista, racista e patriarcal (negro, homem, jovem, mal vestido), e a vítima deve também corresponder ao estereótipo de quem pode ser visto como vítima nessa mesma sociedade (mulher ou criança, branca, de classe média ou alta, e que em seu comportamento corresponda a uma moral sexual recatada). Pouco se vê, por exemplo, notícias sobre os números reais dos homicídios praticados por policiais e militares contra jovens negros: estes não correspondem ao estereótipo da vítima. Também em relação ao estupro esse sinal é evidente: somente serão efetivamente considerados estupros no jornal aqueles que o senso comum o consideraria após julgar a mulher vítima e reconhecendo que ela não “mereceria” ser estuprada (para usar a expressão do presidente eleito, Jair Bolsonaro).

A mídia representa a ordem nas notícias, mesmo que a partir de casos que rompem com a ordem.

Qualquer discussão sobre regulação dos meios de comunicação no Brasil é automaticamente denunciada como tentativa de censura e de controle da imprensa. Em outras partes do mundo, porém, é comum que, frente a um poder econômico e simbólico tão grande como o dos grandes grupos de comunicação, o Estado atue de maneira a estabelecer regras e limites para o setor. No Uruguai, por exemplo, os programas de televisão de caráter policialesco, foram regulamentados para que só pudessem ser veiculados entre 22h e 06h. No Brasil, esse tipo de programação, que "se espremer sai sangue da TV", é veiculada diariamente, ao final da tarde, em milhões de lares, bares, lanchonetes e estabelecimentos de toda sorte. O quanto esse tipo de programação reforça o caráter punitivo do sistema penitenciário e o quão prejudicial eles são para uma abordagem que preze pelos direitos humanos antes da espetacularização do combate ao crime?

No livro, a questão da regulamentação dos meios de comunicação é abordada como um dos caminhos para que seja possível a construção de um discurso contra-hegemônico sobre o crime. A ideia de que existe uma compreensão hegemônica a respeito do crime se baseia justamente na ideia da construção e reprodução de estereótipos de crimes, criminosos e vítimas na sociedade, e que obedece claramente a padrões que reproduzem as desigualdades. Pensar uma mídia democrática, efetivamente comprometida com o direito à informação das cidadãs e cidadãos implica necessariamente em algum tipo de freio à busca pela obtenção de lucros a qualquer custo.

Esse tipo de programa policialesco tende ainda a outros resultados, como, por exemplo, a espetacularização da violência e da atuação da polícia, ao vivo. Em alguns casos, a violência policial é exacerbada pela presença das câmeras; em outros casos, a atuação da televisão pode inclusive tirar a situação do controle da polícia. Isso faz com que seja evidente a participação direta da mídia não apenas na reprodução dos estereótipos, como afirmei antes, mas mesmo na atuação direta do sistema penal, tese esta já defendida em um texto clássico da criminologia pelo professor Nilo Batista. Em todos os casos, porém, a característica que predomina é a restrição do conceito de violência àquela individual e de rua, deslocando completamente os holofotes das formas mais graves de violência, como a violência estrutural, decorrente da negligência do Estado e que leva as pessoas à morte por doenças, por desnutrição, por fome, por atropelamentos etc., da violência gerada pela criminalidade do colarinho branco, que provoca ainda mais desigualdades, e mesmo da violência institucional da própria polícia que, quando noticiada, é apresentada como um erro e não como uma sistemática.

Jair Bolsonaro e grande parte dos candidatos do PSL foram eleitos com muita ênfase em uma agenda que engloba a liberação do uso e comércio de armas de fogo; o combate violento ao crime nas ruas; a redução da maioridade penal; entre outras medidas. Qual a sua opinião sobre esta agenda?

Essa é uma agenda clássica na política conservadora, o tradicional to be tough on crime. O discurso punitivo angaria votos e popularidade porque, como afirmado na primeira questão, permite a formação do consenso contra um inimigo comum, por mais abstrato que possa ser construído – um bom exemplo é o conceito de criminalidade organizada – , ou concreto na figura do homem jovem negro. Apesar de a construção desse inimigo concreto gerar insegurança e medo, o fato é que sua corporeidade leva a algum alívio da reafirmação de consensos estabelecidos em uma sociedade racista.

Especificamente sobre a redução da maioridade penal essa utilização política dos medos ancorados nos preconceitos estruturais do país fica muito evidente na votação da PEC 171 pela Câmara dos Deputados em 2015. Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, após romper com o governo de Dilma Rousseff, utilizou esta pauta como forma de enfraquecer o governo, tendo em vista a posição histórica do PT contrária a ela. Eduardo Cunha tomou os holofotes e pautou a agenda da mídia, ganhando capital simbólico em um contexto de crise. A aprovação da redução da maioridade penal em 2015 foi o primeiro passo para o golpe parlamentar-midiático-judicial de 2016.

Isso mostra o quanto a popularidade dessas medidas pode de fato impactar nas democracias. Não se trata, de fato, de uma questão menor.

A pauta da redução da maioridade volta e meia retorna à pauta dos jornalões e do parlamento, principalmente fomentados por casos graves envolvendo adolescentes, ainda que desproporcionalmente apresentados.

Reduzir a maioridade penal é ir contra a Constituição Federal, que, em conformidade com a Convenção Internacional de Direitos da Criança, previu em seu artigo 228 que: “são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”. A legislação especial é o Estatuto da Criança e do Adolescente, que reconhece esse grupo como sujeitos de direitos que devem ser responsabilizados pelas infrações que cometem. Porém, reconhece que essa responsabilização deve ser proporcional à sua maturidade, o que implica em respostas diferentes. O Estatuto é principal instrumento de proteção de crianças e adolescentes, que já prevê medidas socioeducativas para jovens que praticam atos infracionais, com oportunidades claras de reintegração ao meio social. Reduzir a maioridade penal é aceitar que, num país democrático, a punição seja mais importante que a educação.

Em "Mídias e discursos do poder - Estratégias de legitimação do encarceramento da juventude no Brasil", todos esses temas presentes nesta entrevista são abordados com bastante profundidade, sob uma perspectiva científica. O que a academia tem produzido de consenso, no Brasil e no mundo, sobre a questão do encarceramento em massa no Brasil e em outros países?

O principal consenso existente é o de que a punição não conduz à prevenção da criminalidade e da violência, em nenhum aspecto. Ao contrário, da maneira como a punição ancorada na privação de liberdade foi historicamente projetada, o principal resultado é a reprodução das violências, e a exclusão social das pessoas muito seletivamente recrutadas pelo sistema de justiça criminal. O encarceramento em massa é o resultado de uma sucessão de políticas criminais absolutamente equivocadas do ponto de vista da prevenção, como, por exemplo, a política de guerra às drogas. Mesmo nos Estados Unidos, onde essa política nasceu e de onde se espalhou para o resto do ocidente, não há mais quem a defenda, a ponto de o consumo recreativo e medicinal de drogas como a maconha ser uma realidade na maior parte dos estados.

No Brasil, essa guerra empilha mortos diariamente nas periferias. Os corpos que não são empilhados mortos são empilhados vivos em um sistema carcerário com um déficit de 250 mil vagas, o número da superlotação, e mais outros 250 mil mandados de prisão não cumpridos. O próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu que nosso sistema carcerário opera em um “estado de coisas inconstitucional”, por ser uma instituição única e exclusivamente de violação de direitos dos condenados, dos familiares e mesmo das trabalhadoras e trabalhadores que circundam o sistema.

Outro consenso é o de que a população das prisões em qualquer país é composto pelo mesmo tipo de pessoas: os excluídos. Na Itália e outros países europeus, estão sobrerrepresentados os imigrantes, legais ou ilegais, resultado de uma cultura racista e xenofóbica reproduzida pelo sistema. Nos Estados Unidos, as pessoas negras estão sobrerrepresentadas, assim como os latinos. No Brasil, como já disse, os jovens negros semianalfabetos. São as pessoas excluídas de cada país aquelas recrutadas por este sistema, demonstrando que sua função é a de depósito, por um lado, de máquina de moer corpos, por outro, e de fábrica de dinheiro para o complexo de serviços terceirizados que envolvem as prisões.

Em uma conjuntura tão difícil como a que se apresenta no país, com um Congresso no qual a visão hegemônica é extremamente punitivista e com ampla presença da chamada "BBB" - Bancada do Boi, Bala e Bíblia -, como os meios de comunicação alternativos e contra-hegemônicos, além de blogueiros, midiativistas e coletivos de mídia das periferias, podem enfrentar e pautar esse debate tão importante para o país? Uma outra abordagem sobre segurança pública, sistema penitenciário e carcerário, além de direitos humanos, é uma forma de luta e resistência para o próximo período?

A comunicação é central para a difusão do pensamento contra-hegemônico. É claro que não podemos contar com a mudança dos meios de comunicação hegemônicos, apesar de todos os espaços criados deverem ser utilizados. Ainda assim, a própria internet tem propiciado o acesso ao discurso. Porém, não sou completamente entusiasta da internet. Basta vermos o que ocorreu nessas últimas eleições. A guerra da informação está perdida se dependermos da atuação individual, levando em consideração as empresas riquíssimas que operam de fato a difusão de informações falsas em massa e atingem um número absurdo de pessoas. Ainda me parece que não há outro caminho senão o retorno à produção de informação local, no diálogo com as pessoas, nos bairros, nas periferias. Os meios de comunicação não são instrumentos do capital por natureza, mas é uma conjuntura que pode ser disputada.

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