domingo, 10 de março de 2019

Mídia agora tenta negar o filho feio

Por Eliara Santana, no blog Viomundo:

O editorial do jornal Estado de São Paulo do último dia 8 de março talvez seja o marco de uma linha divisória para o governo eleito em 2018 - acabou o namorico da imprensa com Bolsonaro.

À esquerda e à direita, várias esferas apontaram o tom contundente e certeiro nas críticas ao presidente e suas falas estapafúrdias. A gota d’água parece ter sido o vídeo pornô que Bolsonaro publicou em rede social para criticar o Carnaval no Brasil.

“O presidente deve ter consciência de que não é mais candidato, condição que lhe permitia incorporar o personagem histriônico e falastrão que seus fanáticos seguidores apelidaram de ‘mito’, disse o editorial do Estadão, num tom de muita indignação, escancarando o desconforto que parte da grande imprensa — com exceção de Record, Band e Rede TV - vem mostrando em relação ao “mito”.

No Jornal Nacional da Rede Globo, muitas e muitas matérias sobre o filho ligado a negócios escusos, com um vasto laranjal e muitas matérias sobre feminicídio (um calo para quem acha que ter uma filha é “dar uma fraquejada” e que mulher tem mesmo de ganhar menos).

No jornal O Globo, colunista fala que “nunca um presidente conseguiu queimar tanto capital político trazido das urnas em tão pouco tempo”.

Lendo e assistindo a todas essas manifestações indignadas, é curioso pensar: depois de incessantes tuitadas nonsense e o país à deriva, somente agora a imprensa brasileira descobriu quem é Bolsonaro?

De repente, a imprensa brasileira descobre que o “mito” é um “mico”?

Descobre que o presidente eleito é alguém que professa “destrambelhadas manifestações”, faz “discurso grotesco”, tem “arroubos” e “bravatas”, além de um “comportamento grosseiro”?.

De repente?!

Eram todos ingênuos e acreditavam que o capitão reformado e afastado do Exército, com declarações machistas, homofóbicas e racistas fosse alguém realmente capaz de governar o país?

Realmente, causa certa surpresa que os grandes veículos de comunicação do Brasil tenham tido essa percepção tão tardia, posto que a imprensa estrangeira - NYT, Guardian, The Economist, CNN, para citar alguns - se horrorizava há muito, antes mesmo da eleição de 2018, com as tiradas do mito/mico.

Agora, diante desse arroubo questionador e indignado da mídia corporativa diante do inacreditável presidente eleito, é interessante fazermos algumas considerações, especulações sobre o brevíssimo casamento.

Primeiramente, é certo que Jair Bolsonaro nunca foi o candidato dos sonhos da direita e centro-direita, lugar de origem dos grandes grupos midiáticos que controlam a comunicação no Brasil e em nome de quem falam.

Havia outros candidatos, mas eles (tentativa após tentativa, até de um apresentador global) não emplacaram.

Por outro lado, o elemento norteador das ações e do posicionamento desses grupos era o antipetismo.

Ou seja, desde o apoio ao impeachment forjado de Dilma Rousseff até a prisão de Lula, todas as arbitrariedades e injustiças cometidas foram devidamente escamoteadas pela imprensa, fiel ao propósito dos grupos dominantes de eliminarem o PT da cena política brasileira.

Assim, a urgência em tirar o PT do páreo atenuou as possíveis “divergências”. E então, o capitão reformado (e afastado do Exército) se tornou o candidato possível.

A partir dessa constatação, torceram o nariz e aceitaram o bode na sala (talvez apostando que seria fácil controlá-lo), afinal, “tudo menos o PT”, dizia-se por aí.

Sinais eram evidentes

O agora referenciado como “destrambelhado” e incompetente (entre outros adjetivos pouco favoráveis) sempre deu claros sinais de tudo o que era.

Claríssimos sinais, diga-se de passagem.

Por tudo isso que aparece numa rapidez nunca antes vista na recente histórica democrática do pais - o Collor demorou pouco mais de um ano para começar a ser desconstruído pela mídia –, cabe o questionamento: em nenhum momento da campanha eleitoral de 2018 a imprensa brasileira percebeu quem de fato era Jair Bolsonaro?

Essa pergunta deflagra outras:

1) Por que ninguém na imprensa tratou, com seriedade, as denúncias feitas pela Folha de S. Paulo do uso de WhatsApp pela campanha de Bolsonaro? O que poderia mudar o rumo das eleições…

2) Por que esqueceram a fala Bolsonaro no julgamento do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara, quando ressaltou ostensivamente a memória de um torturador?

3) Por que a Folha de São Paulo proibiu que Bolsonaro fosse referenciado como candidato de extrema-direita, mesmo quando os jornais estrangeiros assim o faziam?

4) Por que o Jornal Nacional colocou em pauta um processo de humanização do candidato, silenciando sobre seu passado misógino, homofóbico e racista?

5) Por que nunca se dedicaram a investigar as ligações perigosas dele e dos filhos? Indícios sempre houve…

6) Por que parte da imprensa tratou com certo menosprezo o movimento #elenão?

7) Por que a imprensa tratou as duas candidaturas – Haddad e Bolsonaro – como representantes de dois polos num mesmo campo democrático? Uma vez que as diferenças entre elas eram gritantes…

8) Por que nunca cobraram as suas propostas efetivas para o país ao longo da campanha?

9) Por que aceitaram prontamente as desculpas esfarrapadas para o não comparecimento aos debates?

10) Por que aceitaram vender Bolsonaro, deputado há 30 anos sem aprovar um único projeto, como alguém de fora da política, alguém “novo”?

Além das perguntas, alguns fatos nos mostram que a imprensa foi, no mínimo, condescendente com o candidato.

Durante a campanha, a fábrica de fake news estava em sua capacidade máxima.

No Jornal Nacional, Bolsonaro falou ao vivo sobre o malfadado kit gay, atribuindo a aberração a uma ação de Fernando Haddad, o candidato do PT, quando ainda era ministro.

William Bonner não retrucou nem tampouco questionou o teor absolutamente desqualificado da fala do candidato Bolsonaro. O tal kit gay foi um dos mais virulentos instrumentos a povoar as redes sociais.

Em momentos distintos da campanha, Bolsonaro e filhos fizeram menções honrosas ao torturador Brilhante Ustra, sem que tivessem sido duramente interpelados ou questionados.

No dia 29 de setembro, mulheres de todo o país e de todos os matizes políticos foram às ruas gritando #elenão.

No Jornal Nacional, o movimento teve uma cobertura tímida, de apenas cinco minutos.

Nesta mesma edição, Bolsonaro deu uma entrevista exclusiva, de dentro do avião, indo para casa, depois de ter alta do hospital Albert Einstein, onde se recuperava de uma cirurgia em virtude da facada de que foi vítima.

Ali, a encenação com apelo melodramático atingiu o ápice, destruindo a imagem que os protestos queriam colocar em xeque: um candidato misógino, racista, homofóbico.

Também nunca perguntaram a ele, por exemplo, por que disse que preferia ter um filho morto a um filho gay.

Tampouco repercutiram, à exaustão, a fala dele em relação à deputada Maria do Rosário, de que ele não a estuprava porque ela não merecia.

A imprensa estrangeira questionou essas falas.

O Guardian fez um pequeno documentário com os “melhores momentos” do mito, além de muitas matérias. o NYT se escandalizou com as declarações, Liberátion e Le Mondetambém, CNN, idem, além de muitos outros veículos mundo afora.

Demonização da política e o que vem depois...

Para naturalizar o golpe contra Dilma Rousseff, a mídia em geral, particularmente o Jornal Nacional, construiu uma narrativa jornalística com características bem específicas, alicerçada pela base dos repertórios (temas gerais) corrupção e crise econômica, num meticuloso trabalho de demonização da política.

Diuturnamente, a política passou a ser enquadrada no referencial da corrupção, passando a ser vendida para o público consumidor de notícia como algo muito negativo.

A mensagem subentendida era: para o Brasil dar certo, precisa se livrar da política e dos políticos.

Quem toma o lugar? Um neófito, alguém “de fora” do esquema, capaz de acabar, como um herói, com o grande mal da corrupção.

Assim, trataram de estruturar e consolidar essa narrativa, ao mesmo tempo em que tratavam o impeachment baseado em pedaladas (alguém ainda se lembra disso?) como algo dentro da normalidade (me refiro ao impeachment!).

Nunca mostraram, por exemplo, quem eram os que julgavam Dilma Rousseff, como Eduardo Cunha por exemplo.

Estratégia consolidada com sucesso, o próximo passo era blindar o governo golpista sucessor, Michel Temer.

Nesse momento, a jogada ficou mais difícil, pois o sucessor não ajudava em nada, e sua inépcia ia resultar naquilo que mais temiam: a volta de Lula.

Novamente, a imprensa teve papel decisivo ao incensar Sergio Moro e a Lava Jato e tapar olhos e ouvidos para todas as arbitrariedades cometidas contra Lula, e sua prisão em abril parecia coroar um processo.

Nas semanas seguintes, toda a mídia, teleguiada pela ação do JN, fez uma operação de silenciamento em relação a Luis Inácio, que parecia ter sido abduzido de repente.

Infelizmente para os grupos no poder, a estratégia não estava dando certo, e a velha jararaca não parava de subir nas intenções de voto, mesmo preso.

A mídia corporativa parece entender muito bem o modelo de propaganda de Chomsky e o que ele afirma em termos da criação de consenso: em países de democracia formal, é preciso buscar o consentimento da população.

Cria-se, por exemplo, um inimigo comum. Nos EUA, os terroristas; aqui, o PT e a figura de Lula.

Daí o surgimento do ódio à política, do combate histérico à corrupção.

Em suma, não dava para errar de novo… e é aí que entra a figura idiossincrática do capitão reformado, e assim podemos encontrar respostas para algumas das indagações feitas mais acima.

No entanto, logo após a vitória no segundo turno, o tom hostil de Bolsonaro em relação à imprensa e os desencontros do governo - que não apresentou nenhuma medida para aplacar os problemas brasileiros e dar uma resposta efetiva ao eleitorado e aos grupos de poder - pareciam mostrar que a coisa não iria andar conforme o script estabelecido, pois a figura problemática do eleito ficava cada vez mais evidente.

Papel decisivo

A imprensa corporativa brasileira, ao invés de expor à exaustão esse comportamento que insulta a civilidade, tratou como normais atitudes completamente ultrajantes e desalinhadas de uma perspectiva democrática e cidadã.

Fizeram vista grossa para a grave disseminação de fake news, contribuindo, em muitos momentos, com ilações.

Em nome da pretensa “imparcialidade” na cobertura, normalizaram um candidato cuja base de princípios não é a da democracia nem a do respeito aos direitos e à diversidade.

Normalizaram Bolsonaro e taparam os olhos para todo o conjunto de graves problemas que o cerca para inviabilizar o PT.

Portanto, a imprensa brasileira, tão combativa e rápida em atribuir responsabilidades a outros atores em outros momentos, tinha todos os elementos para saber, de fato, quem era Bolsonaro.

E se não o fez naquele momento foi porque tinha outros interesses.

Em nome do antipetismo que ajudaram a construir, em nome do silenciamento absoluto e do afastamento de Lula, ajudaram a eleger o candidato que agora chamam de “incompetente” ou “destrambelhado”, ignorando todos os sinais de perigo.

Talvez achassem que iriam usá-lo e, depois, num grande acordo nacional, descartá-lo. Mas o poder é tentador, e a família tem ideias próprias e seguidores fanáticos.

Bolsonaro foi também gestado e parido pela imprensa brasileira. Não adianta, agora, querer negar o filho feio…

* Eliara Santana é jornalista, doutoranda em Estudos Linguísticos pela PUC Minas/Capes.

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