sábado, 6 de abril de 2019

Trump, Bolsonaro e os perigos da atualidade

Por Wladimir Pomar, no site Correio da Cidadania:

A vi­sita de Bol­so­naro a Trump ilu­minou com maior ni­tidez seu pro­jeto es­tra­té­gico de trans­formar o Brasil numa se­mi­colônia dos Es­tados Unidos. Não se trata apenas de su­bor­dinar as cor­rentes brasileiras de co­mércio aos in­te­resses norte-ame­ri­canos. Trata-se de abrir to­tal­mente as portas do Brasil à ação pre­da­tória das em­presas ca­pi­ta­listas norte-ame­ri­canas, in­cluindo a cessão de ter­ri­tó­rios e de áreas tec­no­ló­gicas es­tra­té­gicas, a exemplo da base de lan­ça­mento de fo­guetes de Al­cân­tara.

Para pi­orar, a es­tra­tégia bol­so­na­rista está sendo le­vada a cabo num mo­mento em que os Es­tados Unidos en­frentam uma cres­cente crise em seu de­sen­vol­vi­mento econô­mico, com con­sequên­cias de­sas­trosas nas taxas de em­prego, nos pa­drões de vida de sua po­pu­lação e em seu co­mércio in­ter­na­ci­onal. Di­zendo de outro modo, o ca­pi­ta­lismo es­ta­du­ni­dense se tornou in­capaz de re­petir, mesmo em pe­quena es­cala, o que fez nos anos 1970. Isto é, pro­mover uma cor­rente de ex­por­tação e de in­ves­ti­mentos de ca­pi­tais que pos­si­bi­litou à di­ta­dura mi­litar da época pro­pagar, por algum tempo, a exis­tência de um “mi­lagre econô­mico”. Sua es­tra­tégia atual é sim­ples­mente pre­da­tória.

A in­ca­pa­ci­dade atual do ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano está re­la­ci­o­nada tanto aos in­te­resses mun­diais de seu setor he­gemô­nico, o setor fi­nan­ceiro, cujos lu­cros são prin­ci­pal­mente ori­gi­nados da es­pe­cu­lação, quanto à po­lí­tica ul­tra­na­ci­o­na­lista de Trump, que tem como pro­jetos em­ble­má­ticos a cons­trução de um muro na fron­teira com o Mé­xico, o con­fronto com a China e o des­monte da zona do euro.

Nessas con­di­ções, a su­bor­di­nação aos in­te­resses norte-ame­ri­canos re­pre­senta, na prá­tica, a oferta de pri­va­ti­zação, a baixo preço, dos prin­ci­pais ins­tru­mentos de de­sen­vol­vi­mento econô­mico do Brasil. A de­cisão de vender todas as em­presas es­ta­tais, in­cluindo as de se­tores es­tra­té­gicos (bancos, energia, mi­né­rios, agri­cul­tura), na ex­pec­ta­tiva de atrair in­ves­ti­mentos pro­du­tivos, é uma ilusão. Ela se confronta com a re­a­li­dade crí­tica da­queles in­te­resses e vai con­duzir o Brasil ra­pi­da­mente a um charco econô­mico, so­cial e po­lí­tico ainda mais pro­fundo do que o atual.

Ou, como sus­tentam al­guns co­men­ta­ristas, vai in­verter to­tal­mente o pro­cesso de cres­ci­mento econômico. Com a mo­no­po­li­zação ainda maior da eco­nomia pelas em­presas mul­ti­na­ci­o­nais es­tran­geiras, a de­sin­dus­tri­a­li­zação e as dis­tor­ções da in­fra­es­tru­tura (por exemplo, au­sência de rede fer­ro­viária e de um sis­tema na­ci­onal de ca­bo­tagem ma­rí­tima) serão acen­tu­adas, ele­vando preços, tor­nando menos com­pe­ti­tivos os pro­dutos que dis­putam o mer­cado in­ter­na­ci­onal e tor­nando os pro­dutos des­ti­nados ao mer­cado in­terno ainda mais ina­ces­sí­veis a grandes con­tin­gentes da po­pu­lação.

Para pi­orar, o go­verno Bol­so­naro, com as re­formas pro­me­tidas (em es­pe­cial a das apo­sen­ta­do­rias), também tra­balha in­ten­sa­mente no sen­tido de re­duzir em­pregos, sa­lá­rios e pen­sões. Joga sobre os ombros dos que tra­ba­lham a ta­refa de re­duzir os custos das em­presas ca­pi­ta­listas, de elevar os lu­cros dessas em­presas e de sus­tentar o pa­ga­mento dos dé­bitos in­ternos e ex­ternos do país.

Assim, em­bora a bur­guesia la­ti­fun­diária do agro­ne­gócio es­teja pre­o­cu­pada em manter a China como des­tino de grande parte de sua pro­dução, ela pa­rece sa­tis­feita com as pro­messas bol­so­na­ristas de liquidar qual­quer pro­cesso de re­forma agrária, tomar me­didas ra­di­cais contra os sem-terra e os indígenas, fe­char os olhos ao des­flo­res­ta­mento, e am­pliar os in­ves­ti­mentos es­tran­geiros na agri­cul­tura co­mer­cial.

Por­tanto, apesar de al­gumas re­sis­tên­cias in­ternas no grupo do­mi­nante bol­so­na­rista, não se pode descartar a in­tenção do pre­si­dente de su­bor­dinar o Brasil, es­trita e ser­vil­mente, à po­lí­tica dos EUA em todas as ques­tões in­ter­na­ci­o­nais, o que in­clui ata­ques po­lí­ticos e econô­micos à China, apoio à polí­tica ex­pan­si­o­nista is­ra­e­lense, e a in­tenção de in­vadir a Ve­ne­zuela para as­sumir o con­trole da produção pe­tro­lí­fera desse país, im­pondo por lá um go­verno to­tal­mente servil aos in­te­resses norte-ame­ri­canos.

É evi­dente que o con­junto dessas po­lí­ticas tende a se con­frontar cada vez mais não só com os mi­lhões de bra­si­leiros que não vo­taram nele, mas também com par­celas cres­centes dos que de­po­si­taram seu voto no can­di­dato que pro­metia li­quidar com tudo de ruim exis­tente no país. E que tal con­fronto tende a levar o bol­so­na­rismo a co­locar cada vez mais em evi­dência seu viés fas­cista e pro­fun­da­mente an­ti­na­ci­onal, an­ti­de­mo­crá­tico e an­ti­po­pular, pro­cu­rando li­quidar os di­reitos de­mo­crá­ticos e ape­lando para me­didas di­ta­to­riais.

Tal pro­cesso pode ficar ainda mais con­fli­tuoso se as li­ga­ções de pró­ceres do bol­so­na­rismo com a cor­rupção e com o crime or­ga­ni­zado das mi­lí­cias ur­banas vi­erem à tona. A cres­cente dis­puta entre as di­versas fra­ções par­la­men­tares, po­li­ciais, das pro­mo­to­rias e dos juízes, antes mais ou menos unidos na cru­zada an­ti­pe­tista, pode trazer à tona fraudes, apro­pri­ação de di­nheiro pú­blico e ou­tras ações cor­ruptas nada re­pu­bli­canas, a exemplo da apro­pri­ação de al­guns bi­lhões de dó­lares pela Lava Jato de Cu­ri­tiba, ca­pazes de des­nudar o nú­cleo cen­tral do poder po­lí­tico atual e dar maior evi­dência ao con­junto de con­tra­di­ções que con­forma a si­tu­ação atual e contém o que muitos ana­listas chamam de de­sa­fios tá­ticos e es­tra­té­gicos.

Em termos tá­ticos o Brasil se con­fronta, de ime­diato, com a pos­si­bi­li­dade de ver li­qui­dados os di­reitos de­mo­crá­ticos for­mais cons­tantes na Cons­ti­tuição de 1988, as­sistir à apro­vação de uma re­forma no sis­tema pre­vi­den­ciário que mantém os pri­vi­lé­gios das castas do­mi­nantes e achata os di­reitos dos tra­ba­lha­dores, ser le­vado a uma ação mi­litar que in­ter­fere na so­be­rania de países vi­zi­nhos e li­quidar suas prin­ci­pais cor­rentes de co­mércio in­ter­na­ci­onal.

Em termos es­tra­té­gicos, a si­tu­ação co­loca em evi­dência não só os pe­rigos à de­mo­cracia, mas também os pe­rigos à con­dição do Brasil como nação in­de­pen­dente em de­sen­vol­vi­mento e à mai­oria do povo bra­si­leiro como so­bre­vi­vente. É pro­vável que em sua his­tória mo­derna, mesmo sob con­di­ções de­mo­crá­ticas uni­ca­mente for­mais, o país não tenha se con­fron­tado com pe­rigos tão pro­fundos e com­plexos.

Para en­frenar tais pe­rigos será ne­ces­sário não só um mer­gulho pro­fundo nas con­di­ções de vida e nas lutas dos tra­ba­lha­dores e ex­cluídos, que con­formam a base da so­ci­e­dade bra­si­leira, mas também uma de­fi­nição mais con­sis­tente dos pro­blemas e so­lu­ções es­tra­té­gicos e tá­ticos que emer­giram com a vi­tória elei­toral do bol­so­na­rismo e com as ten­dên­cias reais deste.

Por um lado, será pre­ciso apro­veitar e in­cen­tivar as tra­pa­lhadas e de­sa­venças nas hostes bol­so­na­ristas, mesmo que tais tra­pa­lhadas e de­sa­venças re­pre­sentem a imo­lação de uma cor­rente ou outra delas. Por outro, será um erro nu­trir qual­quer ilusão es­tra­té­gica de que tal imo­lação possa mudar a na­tu­reza dessas cor­rentes fas­cistas e pro­mover mu­danças ra­di­cais em seus ob­je­tivos e em sua po­lí­tica an­ti­na­ci­onal, an­ti­de­mo­crá­tica e an­ti­po­pular. Tal tipo de mu­dança em uma ou outra dessas cor­rentes talvez só venha a ocorrer quando a maior parte da base da so­ci­e­dade se le­vantar e se mo­bi­lizar contra aquelas po­lí­ticas.

Em vista disso, a tá­tica deve ser fle­xível e ampla, mas deve estar su­bor­di­nada à es­tra­tégia de mu­danças e re­formas pro­fundas no sen­tido na­ci­onal, de­mo­crá­tico e po­pular, le­vando em conta as ex­pe­ri­ên­cias po­si­tivas e ne­ga­tivas dos go­vernos Lula e Dilma. Em ou­tras pa­la­vras, sem re­de­finir sua es­tra­tégia, as forças po­lí­ticas de­fen­soras da so­be­rania na­ci­onal, da de­mo­cracia e dos in­te­resses po­pu­lares podem ficar presas aos pro­blemas tá­ticos ime­di­atos e, even­tu­al­mente, afundar neles, um dos prin­ci­pais pe­rigos da atu­a­li­dade.

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