segunda-feira, 5 de agosto de 2019

O esculacho nosso de cada dia

Por Rogério Lima Barbosa, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

Praticamente todos os dias somos surpreendidos com acintes de pessoas que, a princípio, deveriam preocupar-se com o bem-estar de qualquer brasileiro/a. São expressões e frases que demonstram uma visão de mundo enviesada para o aproveitamento individual, sempre, e para os “iguais”, sempre que possível. Nós, ou melhor, eu, quando ouço alguns comentários do governo, sinto uma mistura de raiva, tristeza, desesperança, revolta e impotência. Muitas vezes algumas notícias sobre os dizeres da equipe desse governo são tão descoladas de um ambiente democrático, que me levam a buscar a informação para checar a sua veracidade. Quando se faz essa busca não sei o que é pior, ler a notícia que já vilipendia a nossa consciência, ou constatar que a aberração realmente é verdadeira. São visões duras, preconceituosas, presunçosas e arrogantes que nos açoitam quase na pele. A funcionalidade dessas posições é para nos colocar no nosso lugar. E esse é, para esse governo, o não lugar. Como somente quem tem lugar está apto para alcançar um diálogo ou ter as suas demandas ouvidas, a restrição do lugar àqueles que estão longe da esfera do governo é justamente para manter a contenção de nossa angústia na esfera particular.

Se de um lado há “o cidadão de bem”, principalmente empresários e militares, que pode fazer e dizer o que quiser, não se pode deixar que do outro lado surja aquele que, não tendo lugar, também se torne o “não cidadão” (caracterizado pelo não branco, não hetero, não homem e o não trabalhador). Não é preciso que esses concordem com todos os sinais que indicam a obrigatoriedade do silêncio ou que, diante de tantas adversidades, prefira ficar paralisado. Deve-se deixar a revolta vir à flor da pele e, no mínimo, tentar se fazer ouvido. Pois o chicote do Senhor que se usava sobre a pele do “não cidadão”, para violentar e inferiorizar, é transmutado para as palavras duras e selvagens do capitão para obter os mesmos resultados: violentar, amedrontar, estigmatizar, apartar indivíduos e paralisar ações.

Não há melhor palavra para descrever o que a grande maioria da população vive diariamente que esculacho. É uma palavra que faz parte de nosso vocabulário cotidiano. A palavra tanto significa o espancamento e a surra como, também, um chicoteamento verbal para lembrar a pessoa de sua insignificância. E é assim que vamos andando ou, quem sabe, levando.

Vamos apontar alguns dos últimos esculachos diários por meio das frases do presidente Bolsonaro.

Esculacho 1: Pretendo beneficiar o meu filho sim! Não consigo lembrar se já ouvi essa frase por algum lugar que andei. Tenho três crianças e, portanto, frequentei muitas rodas de pais/amigos. Também já passei por alguns lugares fora do Brasil e nunca ouvi algo nesse sentido. O que é mais comum ouvir, e eu concordar, é que vamos ajudar as nossas crianças, apoiá-las, cuidar, ou qualquer outra coisa para contribuir com a sua educação, visão de mundo e responsabilidade junto a sua comunidade. Beneficiar é atribuir vantagem ou favorecer alguém. Você somente pode beneficiar alguém com alguma coisa que é tua ou você tem o controle. E é aqui que mora o pensamento de Bolsonaro e seus seguidores. Para Jairzão, é ele quem manda no Brasil. Para ele, não existe a separação de poderes porque, quase como o Luís XIV, o poder é ele mesmo.

Esculacho 2: Para o paizão Jair, a vivência internacional de intercâmbio é o carimbo para o filho ser embaixador dos Estados Unidos. Para ele, vale até se apropriar e modificar a conhecida afirmação do Brizola (Se a Globo diz que algo está errado para o Brasil é porque está certo!), desconsiderar que não somente a mídia mas a ciência, parte da Igreja e a maioria das sociedades profissionais apontam os seus erros e declarar que “se a mídia diz que está errado é porque estou certo!”. De onde vem um pensamento tão complexo como o do nosso presidente? O concurso para diplomata é considerado o mais difícil do Poder Executivo brasileiro. Ademais, qualquer pessoa curiosa poderá ver, em qualquer site ou mesmo no Wikipédia, que nas últimas décadas todos os ex-embaixadores em Washington possuem duas características à época da sua missão: eram profissionais de carreira formados no Instituto Rio Branco e estavam acima dos 50 anos, com vasta experiência em outras embaixadas e órgãos. Apesar de tímida, a Associação dos Diplomatas do Brasil reagiu à nomeação do clã Bolsonaro, emitindo uma nota pública para relembrar das competências e contribuição da diplomacia brasileira para a defesa dos interesses do país. Em uma das respostas apresentada em jornal, Eduardo, na mesma erudição do pai, sentencia: “Parece que papai do céu fez a gente no ano certinho” Aí você pensa, pera lá?! Papai do céu que o fez? Só falta falar que ele é o próprio Jesus e o paizão é Deus. Pelo menos assim, é muito melhor que estar apto por ser intercambista e, com certeza, como Jesus, não teria qualquer concorrente à altura. Apesar dos apoiadores bolsonaristas terem que “rebolar” para tentar explicar mais uma marca do chicote na mente das pessoas que acreditam na educação dos filhos sem favorecimentos, somente artimanhas jurídicas e imorais podem tentar negar a clara demonstração de nepotismo do paizão Jair. Pelo menos que reconheçam então: Eduardo é o príncipe enviado por Jair.

Esculacho 3: E agora José? Essa é a pergunta que, nas palavras de Gilmar Mendes, o bobinho Dallagnol fez à sua trupe do Telegram. A angústia do procurador surgiu quando percebeu que Flávio Bolsonaro estava envolvido em esquemas de corrupção e duvidava se o paizão Jair continuaria com o discurso anticorrupção se: 1. Passaria a sofrer as consequências na própria carne; 2. Poderia também fazer parte do esquema. Mais uma vez, o clã Bolsonaro faz seus apoiadores rebolarem. Enquanto eles buscam, desesperadamente, a justificativa para criminalizar o vazamento dos diálogos do Intercept, o Ministério Público Federal emitiu nota pública rechaçando o comportamento do bobinho e seus amigos e a Agência Nacional dos Procuradores da República, formada por outros procuradores iguais ao Dallagnol, não se omitiu ou se acovardou em explicitar a insensatez de suspender parte das investigações originadas de relatórios de informações financeiras do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). E mesmo diante da investigação aprofundada do COAF sobre as movimentações de Flávio Bolsonaro, a Procuradoria Geral da República, PGR, faz diligências para que a decisão de Toffoli se restrinja ao caso do senador Bolsonaro. Afinal, não se pode tocar na família real.

Esculacho 4: Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Talvez o presidente esteja se acostumando com o trajeto real, desculpe, presidencial na capital federal. Em Brasília, mais especificamente no Plano Piloto, temos o costume de não ver demasiada sujeira na rua e algumas pessoas até conseguem fazer das poucas imagens de miséria, frutos da paisagem (afinal, conforme Foucault, a família pobre deve ser criminalizada e apartada dos grandes centros). Mas o Brasil se mostra de verdade a poucos quilômetros do Palácio. Certamente, o presidente não ficaria confortável ao se embrenhar nas diferentes invasões que ficam perto de sua residência oficial. Mas, pensando bem, não se pode exigir muito. Porque se ele nunca viu as pessoas revirando lixos, dormindo em rodoviárias, no chão de calçadas, pedindo esmolas em sua cidade base que é o Rio de Janeiro, como exigir que veja as pessoas em Brasília e no Plano Piloto? Todavia, ainda que longe de entender um pensamento tão complexo, será que em alguma hora a ideia de Bolsonaro que o Brasil é uma grande área tão verde que todo “Tarado” deseja se cruzou com as imagens das pessoas famintas para, então, surgir a questão: ué, com tanto capim porque esse pessoal passa fome?

Esculacho 5: Daqueles governadores de Paraíba, o pior é do Maranhão, não tem que ter nada para esse cara. Confesso que essa notícia foi uma daquelas que me fez procurar o vídeo porque, simplesmente, é inacreditável. Os governadores do Nordeste já vislumbravam o posicionamento do presidente contra os seus estados e, portanto, a sua posição não é novidade. Sem contar o preconceito rentista do Jairzão, porque atacar o Maranhão? De acordo com as pesquisas de institutos nacionais e internacionais, o Maranhão obteve o 8º maior aumento do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) do Brasil. O que significa que a gestão estatal é, no mínimo, superior à média nacional. Será que é porque essa performance foi causada pelo incremento às políticas públicas? Ou será pelo simples fato do Flávio Dino ser do PCdoB? Novamente é custoso o nosso entendimento. Porque ao mesmo tempo em que sabemos da exigência do presidente governar para todo o Brasil, também sabemos que o Bolsonaro é apoiador da política, que em campanha dizia combater, do toma lá da cá! Se o Bolsonaro já deu exemplos do seu exercício recíproco de favores pela política, então, só podemos concluir que o governador Flávio Dino, no mínimo, não “dá” ao presidente aquilo que ele julga ser dele.

Esculacho 6: Se o presidente da OAB quiser saber como o pai desapareceu no período militar, eu conto para ele. É a redundância do pensamento de Bolsonaro que estamos em guerra. A desproporção e destempero desta frase provocaram a reação de ex-presidentes da OAB e levantaram vozes de vários lugares que convergem para um mesmo pensamento, ainda que alguns o vejam somente nebuloso, não houve eleição e não há presidente. A frase demonstra uma crueldade não somente do presidente como de qualquer outra pessoa que a corrobore. Simplesmente porque não há partilha de sentimentos e de dor. A morte em si é uma dor para quem fica, independente da idade de quem morreu. A morte repentina, causada por repressão a um pensamento, além da dor, abre um vazio impossível de ser preenchido. Que não diminui com o aparecimento do corpo entregue pelo Estado e alarga exponencialmente com o não corpo. O luto para o corpo que não se vê é tão significativo que, muitas vezes, é mais fácil esquecer, modificar ou acreditar em qualquer história que se esquiva da verdade: Seu pai (tio, mãe, irmão, irmã, amigo) morreu por causa de suas ideias e quem o matou foi o Estado. E, se foi o Estado, foram os mesmos pais, mães, tios, tias, irmãos, irmãs, amigos e amigas que ficaram calados no momento da necessária reação. Até quando ficarão calados? E se vivemos em guerra e o presidente lembrou-se da ditadura, é preciso lembrar que na guerra de Bolsonaro, que abrange a ditadura militar, morreram mais brasileiros que na segunda guerra mundial.

***

Os últimos tempos são de esculacho geral. Na semana passada, enquanto o Jairzão fazia grande parte da população lembrar de sua insignificância nos pensamentos reais, ops!, presidenciais, Breno Costa, do Brasil Real Oficial, destrinchou os atos que atacaram as universidades e facilitou a nomeação para cargos comissionados. Uma coisa ninguém pode dizer, o presidente cumpre o que prometeu: sua atenção é na família, a dele de preferência, e está focado na eliminação dos vermelhos ao mesmo tempo que se abraça com os amigos e o poder.

Olhar para o presidente e o governo é bem instigante. Por exemplo, sempre fiquei a matutar sobre a fixação do Jair com a bic. Quem passou pelos bancos escolares conhece a sua função de caneta cuja carga dura uma eternidade e até suas outras funções como, por exemplo, a de zarabatana. A bic fazia parte tanto dos deveres escolares quanto da diversão entre os amigos. O Jairzão, às vezes, parece que a usa como se fosse uma espada para cortar tudo aquilo que ele não gosta e mostrar para os seus inimigos que ela é bem mais afiada que as deles. Mas o curioso é que a criação da bic tem origem em uma empresa francesa que aliou qualidade a baixo custo. A França, e a Europa, é uma região onde se viveu o Estado social. Além do mais, é o local da inspiração de muitas outras ações que tiveram a Revolução Francesa como uma baliza. Portanto, é difícil alinhar a bic a alguma situação de desfavorecidos financeiramente ou “coisa de pobre”. Ao lembrar dos incontáveis momentos em que o presidente tenta se aproximar da população com o pão com leite condensado, café com leite, chinelos e bic, é mais fácil associá-lo ao tiozão que não sabe muito o que faz do que vê-lo como uma pessoa próxima aos mais desfavorecidos. A utilização da bic como demonstração de simplicidade está na mesma hipocrisia em tentar passar a mensagem à população que uma viagem do chefe ao exterior, como a do Moro, não o responsabiliza pelas ações realizadas por seus comandados e não significa perseguição. Já começou a ladainha, principalmente da Globo, para desviar a nossa atenção da imoralidade das mensagens trocadas entre o chefe e o bobinho para criminalizar o vazamento de seus telefones. Porque Moro ainda não caiu? Eis a questão. É como se a captação das mensagens ilibasse a mais sinistra articulação entre poderosos do governo que se baseiam pelo velho ditado: eu faço porque eu posso!

Hummm… colocar rei, esculacho, espada e França no mesmo caldo dá até um sabor. Porque foi nesse caldo que os esculachados se levantaram para cortar a cabeça de toda a realeza e seus agregados. Mas, infelizmente, estamos longe disso. Porque é difícil termos uma revolução ou luta de classes quando não se sabe o que fazer com a grande mancha cinza que fica entre o operariado e os capitalistas, a classe média. Para a falta de sorte marxista, há uma variada expressão do que é essa classe que, muitas vezes, não se alinha. Também, infelizmente, não tenho a mesma crença na humanidade como alguns colegas. Não tenho a confiança suficiente na humanidade para pensar que um dia chegaremos ao comunismo, no sentido de vivermos numa sociedade igualitária, sem propriedade privada, onde se busca a satisfação mútua e o bem comum.

A vida em sociedade, como apontado por Weber, se pauta pela ação social que liga um indivíduo a outro e, de acordo com Simmel, a partir da tomada de consciência para uma tal relação não igualitária, as pessoas entram em conflito para conseguir produzir os acordos necessários para viver em comunidade. Para não haver conflito e, consequentemente, avanço, promove-se o Estado de guerra. Somente pela guerra a insensatez, o abuso, a usurpação da cidadania e a mediocridade humana são normalizadas. E o Estado de guerra promovido pelo presidente não favorece qualquer avanço de nossa sociedade, pelo contrário, é o mais puro cerceamento de nossos dizeres, fazeres e sonhos.

Para uma mudança no Brasil de hoje, temos que reconhecer as chicotadas que nos açoitam diariamente, tentando nos lembrar de uma suposta insignificância. É preciso reconhecer o quão esculachada está a nossa vida para podermos ver a necessidade de nos organizar, mobilizar, levantar e agir, de preferência, nas ruas. E não é porque votou no Bolsonaro que você tem que fingir que ele é o tiozão. Porque ele não o é.

Ou, você pode continuar vilipendiado, usurpado, humilhado… resumindo, esculachado, não somente pelo pessoal do Jairzão, como por aqueles que o fazem rindo e se amontoam, por exemplo, na Globo. Ou, sinceramente, você está à espera da Globo abrir os teus olhos?

* Rogério Lima Barbosa é mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra (Portugal), membro do Health, Technology and Society Research Group, na Universidade de Exeter (Inglaterra), e pós-doutorando PNPD/CAPES – Programa de pós-graduação em saúde da criança e da mulher – IFF/Fiocruz.

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