terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

A falência do jornalismo investigativo

Por Luis Nassif, no Jornal GGN:

Em plena efervescência da Lava Jato, o grande Audálio Dantas organizou um evento em Tiradentes (MG) para discutir a cobertura da operação. Foram convidados – e compareceram – os maiores defensores da Lava Jato na grande imprensa, incluindo Miriam Leitão. Fui convidado na condição de crítico da operação.

Na minha apresentação – para minha surpresa – uma experiente repórter, já aposentada, das melhores que a mídia produziu, e, ali, representando a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), me questionou:

– Você está criticando tanto. O que teria feito de diferente?

Confesso minha total surpresa. Um jornalista experiente jamais qualificaria aquela cobertura, meros repassadores de releases, como atividade jornalística. Até fiz blague com ela: A primeira coisa que faria seria te contratar para fazer reportagem de verdade.

A cada dia que passa fica mais nítido que a cobertura da Lava Jato – somada à do impeachment – foi o maior desastre da história do jornalismo brasileiro desde as campanhas de 1964.

Mas o depoimento da repórter – e a posição da Abraji – mostrava que não se tratava apenas do viés partidarizado das empresas jornalísticas. A operação foi um retumbante fracasso do jornalismo como um todo, atraído pelo canto de sereia da Lava Jato, alimentando-os com vazamentos de informações.

Obviamente, não havia apenas desinformação e ingenuidade nessa parceria.

Repórteres que se deixaram cavalgar pela Lava Jato ganharam manchetes, escreveram livros, conquistaram prestígio junto às chefias pelo trabalho sujo ofertado. O que espantou foi o silêncio da associação frente ao óbvio antijornalismo praticado.

Nos encontros anuais da Abraji até 2019, a Lava Jato era centro de loas e ofertas de colaboração.

Em um dos Congressos, em 2018, o repórter da Folha elogiava a divulgação dos fatos, por trazer luz às investigações.

A colunista do Estadão tratava os vazamentos de Sérgio Moro como sinal de transparência. Dizia que, com todos os dados divulgados, “foi possível checar os dados, cruzar informações”.

Era parcialmente verdade. Foi possível checar os fatos, mas esse exercício não foi feito pelos jornalões.

A repórter Cintia Alves, do GGN, assistiu a uma infinidade de vídeos com as delações e os julgamentos. O conteúdo contrastava radicalmente com o teor das reportagens divulgadas pelos jornais, especialmente pelo Estadão.

Nas reportagens, afirmações taxativas sobre propriedade de Lula do triplex, o luxo das instalações. Nos vídeos, apenas afirmações vagas, de “ouvi falar”.

A Lava Jato vazava informações para seus jornalistas, para que tivesse o controle das narrativas.

O repórter do Globo se superou. Garantiu que a operação foi importante para a imprensa, porque trouxe pluralidade para o noticiário em relação a personagens que não apareciam – seja lá o que ele entendia por pluralidade. Provavelmente chamava de pluralidade o fato das informações serem vazadas para muitos veículos.

Mas ambos – a colunista do Estadão e o repórter de O Globo – admitiram que houve excesso de informações que, muitas vezes, não teve a curadoria adequada.

A cumplicidade chegou ao ponto de O Globo e a revista Época, através de dois repórteres experientes, ligados à Abraji, servirem de sela para uma articulação da Lava Jato Rio quebrando o sigilo bancário de David Miranda, marido de Glenn Greenwald, do The Intercept, divulgando suspeitas de que ele participaria das “rachadinhas”.

Os dados, segundo os jornalistas investigativos, constavam de um relatório enviado pelo COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) ao Ministério Público do Rio de Janeiro.

Foi uma investigação em que Miranda foi incluído a fórceps, meramente por ter contratado os serviços de uma gráfica investigada pelo MP.

Quem segurou o abuso foi o juiz Marcelo da Silva, da 16a Vara da Fazenda Pública do Rio de Janeiro, que decretou segredo de justiça até que David e outras quatro pessoas fossem ouvidas.

Intimado pelo Ministério Público de Contas, o COAF negou que a Polícia Federal tivesse solicitado o relatório sobre as movimentações financeiras de Greenwald. Mas, de qualquer forma, foi produzido um Relatório de Inteligência Financeira sobre ele em tempo recorde: apenas dois dias após o início da Vaza Jato.

A Abraji não se manifestou. Apenas se manifestou quando Glenn acusou os jornalistas que participaram da trama de banditismo.

Aí a Abraji acordou, saiu em defesa dos seus associados, em cima de uma alegação que sintetizava bem o espírito que tomou conta do jornalismo investigativo brasileiro:

“Nenhum jornalista deve ser acusado sem provas por realizar seu ofício de divulgar informações. Lamentamos que um jornalista lance mão de expedientes dos quais ele próprio é vítima frequente —acusações e descredibilização— contra outros colegas, ultrapassando o limite da crítica ao trabalho feito”.

Ali estava a definição clássica da deturpação do jornalismo produzido pela Lava Jato. Divulgar as informações recebidas passou a ser o mantra, mesmo desacompanhada de qualquer filtro, qualquer espírito crítico, deixando-se cavalgar pelas fontes. Sem essas ferramentas, o repórter tornava-se um mero instrumento da fonte.

Outra confusão fatal da Abraji foi comparar os vazamentos da Lava Jato e alguns clássicos do jornalismo moderno, como a Wikileaks de Julian Assange ou os vazamentos de Edward Snowden.

Nestes casos, tratava-se de vazamentos oficiais, dossiês montados por órgãos estatais contra cidadãos e países, vindo a público através de jornalistas destemidos.

No caso da Lava Jato, eram vazamentos do Estado contra cidadãos, era o anti-Wikileaks, o anti-Snowden. A imprensa foi manipulada por funcionários do Estado para ajudar no massacre de pessoas – pouco importando o seu grau de culpabilidade. E a associação representante do jornalismo investigativo não se deu conta.

Um ano antes, o espírito da delação pairou sobre o 13o encontro da Abraji, em julho de 2018, quando foi anunciada uma “rede colaborativa horizontal de jornalistas” para ajudar o processo da Lava Jato.

Em uma enorme cegueira sobre a promiscuidade dos grupos jornalísticos com a Lava Jato, Milagros Salazar, do Peru, louvava a iniciativa do que ele denominava de “jornalistas independentes”, vendo como alternativa para as grandes organizações.

Citava o caso do Panamá Papers, sem se tocar que um ex-presidente da Abraji, Fernando Rodrigues, recuou na divulgação dos trabalhos quando percebeu que donos de grupos jornalísticos estavam envolvidos com as contas off-shore.

E passou por cima da constatação óbvia de que os grupos de mídia eram aliados da Lava Jato.

Alguns dos jornalistas investigativos defendiam a articulação em defesa de uma operação com óbvios propósitos políticos, “para proteger a integridade do profissional, como México e Brasil, nos quais os ataques a jornalistas são comuns”.

Dizia isso enquanto a Lava Jato jogava no xadrez dezenas de pessoas, em processos de tortura destinados a obrigá-los a delações – não a delações comuns, mas a endossar roteiros previamente definidos pelos procuradores.

O único jornalista atingido – o blogueiro Eduardo Guimarães – não fazia parte dos jornalistas oficiais da operação. Lembrou-me em muito o vergonhoso episódio do Bar Bodega, no qual repórteres comiam nas mãos dos delegados e testemunharam um mês de torturas em rapazes inocentes, mantendo um silêncio cúmplice.

Enquanto Assange era perseguido pelo mundo, por sua atitude libertária, o juiz Sérgio Moro era homenageado pela plutocracia nacional e internacional nos salões do mundo e pelos donos de mídia, no Brasil. E os bravos jornalistas investigativos julgando-se no papel de heróis correndo riscos para trazer a informações ao público.

Não faltaram avisos.

No ano anterior, em 2017, ao ser homenageado no Congresso da Abraji, o jornalista Carlos Wagner foi incisivo. Ele comparou a cobertura da Lava Jato ao caso da Escola Base. E atribuiu as falhas jornalísticas à pauperização das redações.

Disse ele:

"A informação que vinha para nós era de um grupo de pessoas que interrogava, investigava e julgava os suspeitos. O mínimo que se poderia esperar era que cada um cumprisse a sua função determinada pela lei. O que as publicações do Intercept estão mostrando é que isso não acontecia (…)

Descobrimos agora que os dois transgrediram a lei; falando um português simples e direto: mentiram para nós, repórteres".

Dois anos antes no V Seminário de Pesquisa em Jornalismo Investigativo da Universidade Anhembi Morumbi, foi apresentado o trabalho “O surgimento da Lava Jato e o sumiço do jornalismo investigativo: uma análise de Veja, Época e Isto é”, de Solano Nascimento, professor da Universidade Nacional de Brasília, um verdadeiro necrológio do jornalismo investigativo brasileiro.

Baseando-se nos estudos de Bill Kovach e Tom Rosenstiel, o trabalho dividia o chamado jornalismo investigativo em dois grupos: as reportagens investigativas, levantadas pelos próprios jornalismo; e as reportagens sobre investigações, com material fornecido pelos investigadores.

As reportagens foram selecionadas entre aquelas enviadas de Brasília e publicadas na editoria principal das revistas.

A diferença era acachapante,

A operação nasceu no dia 17 de março. O estudo fez um recorte desse dia até o final do primeiro semestre. Ou seja, 3,5 meses.

Das 12 reportagens investigativas da revista Veja, apenas 1 foi levantamento próprio: as 11 restantes foram reportagens sobre investigações.

No caso da época, as 10 reportagens foram sobre investigações, assim como as 3 da IstoÉ.

O trabalho apontava um quadro preocupante.

“A leitura das reportagens com denúncias publicadas na esteira da Operação Lava Jato, mostra que os jornalistas receberam dados de procuradores da República, de policiais federais, do Judiciário e de advogados dos acusados.

Em partes das vezes, essas informações foram transmitidas para jornalistas de forma pública e transparente, em entrevistas coletivas ou pela distribuição eletrônica de documentos.

Em outras ocasiões, essas informações chegaram à imprensa por meio de vazamentos.

Houve casos em que a informação se limitava a uma parceria muito ínfima da investigação, algumas vezes a poucas páginas de uma proposta de acordo de delação premiada.

Em um quadro assim, é muito grande o risco apontado por Kovach e Ronsenstiel de manipulação de jornalistas por fontes ou de deturpação de uma informação pelo acesso a somente uma parcela pequena de uma investigação”.

E concluía:

“O virtual desaparecimento do jornalismo investigativo indicado por este estudo é grave tanto para a imprensa quanto para o restante da sociedade. (…) Mesmo que consideremos que policiais e procuradores são sempre eficazes em suas investigações – e se sabe que não são – isso não anula a necessidade de que jornalistas também investiguem”.

Apesar dos estudos terem sido publicados pela Abraji, a entidade não assimilou as conclusões.

Só passou a investir contra Sérgio Moro quando a Vaza Jato já havia virado o jogo e a Lava Jato não tinha mais carne fresca para oferecer.

Mesmo sendo uma entidade algo invertebrada, a Abraji conta em seus quadros com repórteres capazes, convivendo com repassadores de releases da Lava Jato.

Talvez se consiga deles uma autocrítica pública dos pecados do jornalismo investigativo brasileiro no caso Lava Jato.

Não haverá a menor repercussão nos destinos da operação, mas poderá resgatar a Abraji para se tornar uma voz efetivamente consistente em defesa do verdadeiro jornalismo.

Convite

Convidei a Abraji para participar de um debate sobre a cobertura da Lava Jato pelo jornalismo investigativo.

Recebi a seguinte resposta:

Nassif,

Agradecemos pelo convite. A Abraji é uma associação de jornalistas, não de veículos. Se o foco do debate é o comportamento da mídia, não nos cabe participar, pois não representamos as empresas desse setor. A Abraji defende os jornalistas, a liberdade de expressão e o acesso à informação, mas não se posiciona em relação a questões editoriais, comerciais ou trabalhistas.


Respondi:

Não serão questões editoriais ou comerciais mas questões estritamente jornalísticas. À luz de tudo o que se sabe hoje, como deveria ter sido a cobertura da operação.

Continuamos abertos à Abraji para uma discussão franca e aberta sobre os rumos do jornalismo investigativo.

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