terça-feira, 17 de agosto de 2021

No fio da navalha: impeachment ou golpe?

Por Liszt Vieira, no site Carta Maior:


Desde o ano passado, muitos setores e militantes clamam e tentam pressionar os partidos de esquerda a lançar uma Campanha Nacional Pelo Impeachment de Bolsonaro.

Por diversas razões, os partidos de oposição não aceitaram essa ideia. Segundo alguns, porque o impeachment não passaria na votação da Câmara. Segundo outros, porque as lideranças de oposição preferem que Bolsonaro fique até o fim, cada vez mais enfraquecido, o que facilitaria sua derrota na eleição de 2022. Claro que isso não pode ser admitido, face à tragédia dos mais de 560 mil mortos pela Covid.

Para muitos, a votação da PEC do voto impresso – 229 votos a favor e 218 contra - comprova que o impeachment não passaria na Câmara. Em relação a este argumento, cabe fazer algumas observações.

Em primeiro lugar, é bom lembrar que a Campanha das Diretas Já, em 1984, foi um grande sucesso político, com extraordinário apoio popular, mas perdeu depois a votação no Congresso. Deixou frutos, colhidos anos depois na Constituinte de 1988. O argumento de que o impeachment seria derrotado na votação é um argumento de ordem exclusivamente institucional, pois leva em conta apenas a dimensão parlamentar e ignora a força da mobilização popular que pode contribuir para mudar a correlação de forças.

Mesmo na esfera institucional, a rejeição da campanha do impeachment ignora o papel atual da CPI que começa a encurralar Bolsonaro, bem como da ação contra ele proposta pelo TSE no STF. Assim, existem atualmente contra Bolsonaro duas ofensivas em curso, uma do Legislativo via CPI, a outra do Judiciário via ações no STF. Uma campanha nacional, com apoio popular, poderia fortalecer muito a oposição e canalizar energia política para desfechar um ataque vigoroso ao projeto neofascista do presidente.

Há uma outra dimensão a ser considerada. Trata-se da conjuntura política internacional. Os países democráticos enfrentam a oposição de grupos de extrema direita em vários lugares, a começar pelos EUA que custou a se livrar de Trump, mas não se livrou do trumpismo que continua chocando o ovo da serpente.

Esta é uma das razões que levaram o presidente Biden a convocar em dezembro próximo uma Conferência de Cúpula sobre Democracia com líderes mundiais. Os participantes discutirão “os desafios que a democracia enfrenta para fortalecer coletivamente as bases para a renovação democrática”, com foco contra o autoritarismo e na defesa do combate à corrupção e à promoção do respeito aos direitos humanos (Reuters, 11/8/2021).

A luta democrática interna contra o trumpismo - que, é bom não esquecer, invadiu o Capitólio com violência inédita num ensaio geral do que seria capaz de fazer no futuro – se justifica porque ele continua forte como alternativa eleitoral. Mas, além disso, é óbvio que Biden visa também com essa Cúpula sobre Democracia atacar a China, o grande adversário comercial dos EUA que já começaram a esboçar os primeiros movimentos de uma nova Guerra Fria, desta vez contra o país asiático que lhe disputa a hegemonia mundial.

É claro que há muita hipocrisia por trás dessa Cúpula, pois os EUA apoiam ditaduras em vários países do mundo, em função de seus interesses. O neoliberalismo, em alguns lugares, se apoia em democracias, em outros, em regimes neofascistas. É um equívoco dizer que o neofascismo é o último refúgio do neoliberalismo, mas é sem dúvida uma nova roupagem em alguns lugares. Nos EUA, para enfrentar o trumpismo e a China, Biden abandonou o neoliberalismo e propôs um fabuloso investimento estatal de mais 3,2 trilhões de dólares nas áreas de infraestrutura e tecnologia!

De qualquer forma, a questão democrática vai estar na ordem do dia da conjuntura política, o que certamente pode contribuir para o isolamento ainda maior de Bolsonaro. Para alcançar esse objetivo, a esquerda tem de fazer seu dever de casa. Até agora, o que vimos foram pujantes manifestações de rua com palavras de ordem tipicamente de esquerda. Ora, creio ser consenso o reconhecimento de que a esquerda sozinha é incapaz de derrubar Bolsonaro. As manifestações teriam de incorporar os segmentos liberais que recusaram ou abandonaram o bolsonarismo.

Assim, a bandeira democrática poderia abranger todos os setores anti Bolsonaro. Isso se torna cada vez mais importante porque muitos políticos de partidos considerados liberais passaram a apoiar Bolsonaro. Na opinião do cientista político da FGV/Rio, Octavio Amorim, “A Terceira Via aderiu à agenda da extrema direita”. Segundo ele, “as três principais agremiações durante a redemocratização nos anos 1980 - PSDB, DEM (ex-PFL) e MDB - aderiram à agenda que procura deslegitimar as eleições de 2022 e faz ameaças de golpe” (Valor, 12/8/2021).

O governo brasileiro vai tentar participar da Conferência de Cúpula proposta por Biden. Mas, se for aceito, sairá desmoralizado. Afinal, ainda há pouco, em 5 de agosto último, o presidente Bolsonaro recebeu representantes oficiais do governo americano e “expressou à missão americana que mantém firme sua convicção de que o ex-presidente Donald Trump foi vítima de uma fraude eleitoral. Conversando sobre as eleições presidenciais brasileiras de 2022, o presidente disse que está lutando para não sofrer, como Trump, uma fraude” (O Globo, 7/8/2021).

A questão democrática, a pandemia e a inflação são os calcanhares de Aquiles de Bolsonaro. Por qualquer lado que se olhe, ele está encurralado, principalmente pela CPI e pelas ações no STF. No plano internacional, conseguiu angariar a antipatia generalizada da chamada “comunidade internacional”, contando apenas com a simpatia dos regimes autoritários de direita.

Diante desse quadro, em que sobressai a questão democrática como uma das principais estratégias de ataque ao governo neofascista brasileiro, cabe à oposição ir além de palavras de ordem abstratas como Fora Bolsonaro, que não dizem como ele seria posto para fora. Outras propostas sugeridas, como Interdição, por exemplo, tampouco apontam caminhos. As únicas propostas legalmente viáveis seriam uma decisão judicial, sempre muito demorada, ou o impeachment que, hoje, não seria aprovado no Legislativo, mas poderia ser objeto de um Campanha Popular Nacional que, aliada à CPI e às ações no STF, desfecharia um ataque poderoso à pessoa e ao governo Bolsonaro.

A base de apoio do governo está fragmentada. O mercado se dividiu, como demonstra o Manifesto em defesa do sistema eleitoral e da democracia, lançado em 5/8 último, com milhares de signatários, entre os quais diretores de empresas importantes como Banco Itaú, Magazine Luiza, Natura, Klabin, Porto Seguro, Credit Suisse etc. Anteriormente, em 7/4, dezenas de empresários, parte da elite do PIB brasileiro, ovacionaram Bolsonaro num jantar em São Paulo. E agora, em 12/8 último, um economista do Santander, em relatório oficial do banco, defende golpe para evitar retorno de Lula (revista Forum, 12/8/2021).

Por outro lado, os evangélicos começam a se dividir e aumenta a insatisfação no meio militar. Embora 75% dos parlamentares evangélicos tenham votado a favor do voto impresso, em apoio ao Governo, o prestígio do presidente entre os eleitores evangélicos diminuiu, segundo diversas avaliações. E as atitudes insanas de Bolsonaro geram um descontentamento cada vez maior nos quartéis com a desmoralização crescente das Forças Armadas. A recente e grotesca “tanqueata” em Brasília parece haver aumentado a fissura no apoio militar ao Governo.

Sobre isso, é de se lamentar que a oposição parlamentar e a esquerda em geral se limitem a atitudes defensivas em relação aos militares. Nunca se viu um projeto de lei para, por exemplo, acabar com a vergonhosa e inaceitável Pensão vitalícia paga às filhas dos militares que jamais se casam oficialmente para não perder esse privilégio. Muito menos propostas de paridade salarial entre civis e militares que, mesmo sem chance de prosperar, podiam ser utilizadas como meio de negociação e, sobretudo, como objetivo de colocar os militares no seu lugar previsto pela Constituição Federal.

Bolsonaro vai fazer de tudo para impedir a eleição que não poderá mais vencer. Há vários cenários possíveis, mas poucos acreditam que Bolsonaro vai entregar a faixa presidencial ao vencedor e ir para casa. Provavelmente, vai seguir o roteiro de Trump, seu mestre, e tentar um golpe com o que tiver à mão: PMs, milicianos, seguranças privados, talvez soldados e cabos, quem sabe? A grande questão é saber o que os militares vão fazer. Vão ficar neutros, cruzar os braços e não sair dos quartéis, como na Bolívia? Ou vão defender a Constituição e a Democracia?

A nosso ver, uma Campanha Nacional pelo Impeachment, mesmo sem chances de vitória no Legislativo, ao se associar à ofensiva desencadeada pela CPI e às ações ajuizadas no STF, e incorporando todos os setores anti bolsonaristas, sejam ou não de esquerda, poderia constituir uma sólida base de apoio popular para defender a democracia e impedir ou derrotar o golpe, já iniciado com a desestruturação das instituições democráticas e a destruição da administração pública responsável pela saúde, educação, ciência, cultura, meio ambiente etc.

No fio da navalha, o Brasil caminha para a beira do abismo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente: