terça-feira, 6 de agosto de 2024

O rearranjo global e a esquerda sem bússola

Montagem: Roberto Vasquez Olavarria 
Por Roberto Amaral, em seu blog:

"Se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária" - Karl Marx (O Capital, vol. III)

Fervorosos e testados defensores da democracia, por si, não devemos nos iludir quanto aos limites do processo eleitoral, cuja observância é a conditio sine qua non do governo legítimo, independentemente do que seja ele, faça ou deixe de fazer. Ainda que promova a guerra, como os governos estadunidenses, todos originários de processos eleitorais, ainda que muitos eivados de fraude (de que é acusada, por exemplo, a eleição do Bush filho em 2000). A contar do fim da segunda guerra mundial (para não ir muito longe), todos os presidentes dos EUA, com a possível exceção de Jimmy Carter, podem ser qualificados de genocidas, como hoje o governo sionista de Israel, sustentado política, financeira e militarmente pelo Grande Irmão, cujo governo, por seu turno, é condicionado pelo complexo industrial-militar que o general e presidente Dwight Eisenhower denunciou no ato de transferência do cargo a John F. Kennedy. E assim se abre o filão de explicações por que o gigante do norte está em guerra ininterrupta em quase todo o planeta, desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Talvez explique sua beligerância no mundo, e talvez explique a violência doméstica.

O fundamental, até aqui, diz o cantochão liberal, que tanto vem encantando a opinião pública mundial e setores menos informados da esquerda, é que os príncipes tenham sido ungidos por eleições – como, convém lembrar, foram Benito Mussolini e Adolf Hitler, além de Ariel Sharon e Benjamin Netanyahu. E pode voltar a ser Donald Trump, um racista condenado por estupro.

Mas nenhuma regra é absoluta na política. A eleição pode ser legítima, mas será inaceitável na ocorrência de variadas hipóteses: quando ameaça ou possa ameaçar a ordem capitalista ou a hegemonia político-militar-ideológica norte-americana, segundo a lente da CIA e do Departamento de Estado. Alguns poucos exemplos em catálogo que não cessa de crescer: a Casa Branca planejou e ajudou a operar o golpe militar de 1964, no curso de cuja violência depôs João Goulart, presidente legítimo, instaurou e sustentou por 21 anos uma ditadura militar que prendeu, exilou, torturou e matou um número ainda desconhecido de brasileiros. Durante todos esses anos as nomeações dos generais-presidentes brasileiros foram consideradas eleições legítimas. Nenhuma conheceu a mínima contestação. Não se via a usurpação da soberania popular como uma fraude, desqualificando o sistema. Em 1965, os marines invadiram a pequena República Dominicana para impedir a posse de Juan Bosch, o primeiro presidente democraticamente eleito após a longa ditadura de Rafael Trujillo. A CIA carimbara Bosch como comunista. A intervenção deixou como herança uma guerra civil e a sequência de governos autoritários, que só cessa em 1978.

Mas a violência paradigmática seria registrada em 1965, com a deposição do presidente chileno Salvador Allende, este sim intentando alterar o statu quo pela via legítima das eleições. A utopia da democracia socialista foi substituída pela ditadura luciferina do general Augusto Pinochet, responsável por um número ainda desconhecido de presos e torturados (brasileiros inclusive) e um mínimo de três mil mortos.)

O sistema político-eleitoral do Ocidente, inclusive nos EUA, sua matriz material e ideológica, foi engendrado para que, havendo eleições, trocando-se governantes, mesmo de partidos distintos e aparentemente antagônicos, tudo continuasse como dantes no Castelo de Abrantes. Mudanças, tão somente as perfunctórias, aquelas que de vez em quando se fazem taticamente necessárias, para que tudo continue como está. É recorrente a sentença de Tancredi no diálogo engendrado por Giuseppe Lampedusa, em texto literário que nas mãos de governantes se converteu em manual da ciência de bem gerir o poder para nele manter-se.

Assim são as eleições nos EUA, nas quais quase tudo pode acontecer (inclusive atentados e assassinatos), contanto que o presidente eleito seja oriundo de um dos dois partidos hegemônicos, destinados pelos pais da pátria a conduzir o país. Esses dois, e só eles, e entre eles nenhuma personalidade heterodoxa. Para tal não importa que a primeira disputa se faça na busca de doações do grande capital, reduzindo em muito o poder do voto, carente de autonomia em face da manipulação ideológica facilitada pela movimentação de grandes recursos. E pouco importa que o resultado final não se conecte com a soberania popular, pois pode chegar à presidência o candidato que obteve o menor número de votos, como ocorreu recentemente com as eleições de Bush filho e de Trump, irmãos no reacionarismo. O essencial é que o presidente, lá, aqui e até onde chegue a sombra da Pax Americana, seja um quadro do sistema para que, havendo troca de bastão, não haja mudança de governo, e assim a classe dominante tenha assegurada sua hegemonia.

Embora a maior parte dos norte-americanos apoie a taxação dos bilionários, nenhum candidato democrata ou republicano à Casa Branca abraça a ideia, dependentes (e procuradores) que são dos grandes doadores. Embora a precarização do trabalho atinja milhões de cidadãos daquele país, projetos que regulamentem o trabalho intermitente, garantindo direitos mínimos, sequer são pautados no Congresso.

É esta a democracia representativa que se espalha, cada vez mais independente da soberania popular. É esta a cartilha a que somos constrangidos a nos adaptar. A simbologia do Estado pode ficar nas mãos de um presidente sem poder, como por exemplo o presidente da Alemanha, que ninguém sabe quem é, transferida seja a gestão do governo para autarquias poderosas desvinculadas do processo eleitoral, como entre nós o Banco Central, cujo poder a Faria Lima busca aumentar, como são as corporações internacionais, como o Banco Mundial e a OTAN, que, sob o mando de Washington, gerencia o poder de guerra da Europa.

Este é o mundo que o neoliberalismo está construindo, ao lado da guerra – já acesa em quase todos os continentes, e que, a partir da Venezuela, pode chegar até nós, quando os embargos se tornarem insuficientes para manter a primazia dos interesses do império sobre os interesses nacionais.

A guerra já está na Europa e no Oriente Médio e, se depender do sionismo e da beligerância da União Europeia, tende a alastrar-se. Já chegou ao Líbano e ao Irã. Se depender dos falcões da União Europeia, é incontornável o ataque à Rússia. Todos os países europeus estão investindo na produção de armas. A indústria europeia, a alemã à frente, está exultante com as encomendas.

O que ocorre na Venezuela, país com o qual dividimos extensa fronteira, que pode ser considerada a entrada da Amazônia, deve ser analisado considerando esse quadro. Como observa o professor Manuel Domingos Neto, se eleições pudessem mudar a ordem política, não haveria eleições. Em face da crise venezuelana – por que, estranhos em face dela, queremos ditar o que ela deve ser? – pensamos e construímos nossa opinião a partir da aparência da realidade, manipulada pela unilateralidade dos meios de comunicação – monopólio na construção ideológica a serviço da classe dominante –, sem contar com qualquer resistência significativa, porque a esquerda, seus partidos e o nosso governo renunciaram ao seu dever histórico de travar a luta ideológica.

Na questão internacional, onde o lulismo tem primado pelo acerto, o governo pode estar cavando seu próprio isolamento, na medida em que evita discutir sua política com a nação. Aliás, neste ponto, suas reservas são bem maiores, posto que nenhuma discussão política promove e, assim, a cidadania se vê na contingência política de defender um governo cujo programa não é enunciado, após um ano e meio de mandato. Esse programa – algo além de uma antologa de iniciativas isoladas – haveria de ser um projeto estruturado de país, o país que queremos, mesmo sem ameaçar a ordem capitalista e fazer enfrentamento ao imperialismo.

Estamos sendo condicionados a nos concentrar no superficial, no epidérmico, e também no pitoresco, no anedótico. Isso dificulta o entendimento do que se passa na Venezuela, no Brasil, no mundo, bem como o caráter de nosso papel como liderança que almejamos ser na América do Sul.

A esquerda em grande parte ficou sem bússola, ao abandonar a luta socialista e conceitos-chave como imperialismo e luta de classes – assim, facilmente se confundindo com os liberais, que lhe dão a mão para poderem apunhalá-la na primeira oportunidade que surja. Se a esquerda parece confusa e aturdida, que dizer das grandes massas desassistidas politicamente por nós, postas à mercê da cantilena diária e permanente dos de comunicação de massa e da pregação religiosa mercantil?

Fenômeno humano, a história não se desenvolve no vazio; o presente, sempre um fenômeno novo, é filho do passado, sem ser seu duplo. Mas pode nos advertir relativamente ao futuro. Aquele que os dados de hoje sugerem não deve surpreender o observador atento da história, mas nos deve assustar profundamente. Muito do que estamos a registrar, faz anos, relembra momentos sombrios do grave caminhar da humanidade, que parece rebelde à aprendizagem. Os tambores estão rufando.
 
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Paris é uma festa? – Aproveitando o momento de grande entusiasmo pelas instituições democráticas (que esperamos seja sincero), vale perguntar: quando Emmanuel Macron irá passar o bastão à Nova Frente Popular, vencedora das eleições de julho?

O Brasil sem espaço – Por artes e artifícios não sabidos, as forças armadas do Estado brasileiro dividiram entre si, lá atrás, a condução das áreas fundamentais para a soberania nacional e o desenvolvimento, autônomo segundo as circunstâncias. A FAB – a quem se deve os primeiros passos da futura Embraer (que, há pouco, quase foi doada à Boeing), abocanhou o projeto espacial. Estamos, hoje, como estávamos nos primórdios: sem satélite próprio, sem veículo lançador e sem estação de lançamento, carregando nas costas a perda de 21 técnicos e cientistas no desastre de 2003, consequência de erros de operação do veículo em terra.

A esfinge da política de comunicação - O desemprego caiu a nível recorde, a renda média cresceu. É o que diz O Globo (1º.8.24), reproduzindo dados do IBGE (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios-PNAD). A população ocupada chega (recorde) a 101,8 milhões, enquanto o número de desempregados caiu para 7,5 milhões, o menor patamar desde 2015. O rendimento médio dos assalariados sobe para R$ 3,4, uma alta de 5,8%, na comparação anual. Mas esses avanços não se refletem na aprovação do governo e do presidente. Já está na hora de o terceiro andar do Planalto pensar em uma política de comunicação.

Samuel Pinheiro Guimarães – Excelente o texto de Magno Klein (“Samuel Pinheiro Guimarães e o desafio aos gigantes”) na Insight Inteligência de junho passado. Aos que não tiverem acesso à versão gráfica da revista (de primeira linha) informo que o texto recomendado pode ser encontrado em: inteligencia.insightnet.com.br .

* Com a colaboração de Pedro Amaral.

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