segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Os latifundiários da mídia no Brasil (7)

“O sistema brasileiro de mídia, além de historicamente concentrado, é controlado por poucos grupos familiares, é vinculado às elites políticas locais e regionais, revela um avanço sem precedentes das igrejas e é hegemonizado por um único grupo, as Organizações Globo”. Venício A. de Lima, autor do livro “Mídia: crise política e poder no Brasil”


“Temos uma pequena televisão, uma das menores, talvez, da Rede Globo. E por motivos políticos. Se não fôssemos políticos, não teríamos necessidade de ter meios de comunicação”. Senador José Sarney.


O processo de concentração dos meios de comunicação no Brasil teve suas marcas distintivas e resultou numa mídia altamente elitista e impermeável, ligada às oligarquias familiares e às forças políticas de direita e que sempre usurpou das benesses públicas, numa espécie de “coronelismo eletrônico”. Desde o nascimento do primeiro jornal, o Correio Braziliense, publicado em 1808 e redigido em Londres devido à censura do império português, os veículos de comunicação foram sendo incorporados à lógica monopolista do capital, causando já em meados do século passado a extinção da “figura mítica do jornalismo”, descrita no clássico de Nelson Werneck Sodré [1].

Diferentemente da Europa, que investiu num sistema público de radiodifusão, o Brasil copiou o modelo privado dos EUA, mas sem as ressalvas legais vigentes neste país desde 1943, que coibiram os monopólios e que só foram extintas no reinado neoliberal de Bush. A ausência de legislações reguladoras e a relação promíscua com o Estado permitiram um tipo sui generis de concentração com a chamada propriedade cruzada, na qual os “donos da mídia” garantem a posse de diferentes meios – jornais, revistas, rádios, televisão, internet. No Brasil, o modelo privado e a propriedade cruzada resultaram numa mídia extremamente concentrada e historicamente antidemocrática.

De Chateaubriand a Marinho

Até meados do século passado, ainda prevalecia certa diversidade na artesanal mídia impressa do país. Levantamento do Departamento Nacional de Estatísticas, de 1931, registrou a existência de 2.959 jornais e revistas – sendo 524 no Rio Janeiro e 702 em São Paulo. Não havia veículos de expressão nacional num território de dimensões continentais. Os jornais pertenciam às pequenas empresas. No início da rádio, nos anos 1920, a pulverização também predominou. Aos poucos, aproveitando-se da ausência de normas restritivas à propriedade cruzada, alguns donos de jornais adquiriram rádios e montaram departamentos de publicidade. “Na proporção e no ritmo em que se desenvolvem as relações capitalistas, desenvolveu-se a empresa jornalística”, explica Sodré.

A ascensão dos Diários Associados marca o colapso da fase concorrencial. Assis Chateaubriand será o primeiro barão da mídia no país. Ele ingressa no setor com a compra do pequeno O Jornal do Rio de Janeiro, em 1924. Utilizando-se das brechas legais e com seus métodos agressivos da chantagem e do jornalismo denuncista, ele rapidamente prosperou. Em 1959, Chatô já era dono do maior império jornalístico da América Latina, com 40 jornais e revistas, mais de 20 estações de rádio, uma dezena de emissoras de televisão, uma agência de notícias e outra de publicidade – “além de um castelo na Normandia, nove fazendas espalhadas por quatro estados, de indústrias químicas e laboratórios farmacêuticos”, segundo balanço do Atlas da Fundação Getúlio Vargas.

A ausência de “herdeiros legítimos” e, principalmente, o golpe militar de 1964 abalaram o poder dos Diários Associados [2]. Chatô é desbancado pelas Organizações Globo, que passam a deter a total hegemonia até os dias atuais. Irineu Marinho também estreou num pequeno jornal, A Noite, fundado em 1911. A partir dos anos 20, o grupo estendeu os seus tentáculos às rádios. Mas a sua ascensão ocorre, de fato, com a criação da TV Globo, em 1965. Ela é beneficiada pela ditadura militar, que ergue toda a estrutura de telecomunicações para garantir a “segurança nacional”. O regime militar também foi cúmplice de várias negociatas do grupo, como na obscura associação com a multinacional estadunidense Time-Life, o que era proibido pela legislação em vigor [3].

A ditadura cristaliza a concentração da mídia. “O projeto de integração nacional, perseguido pelo regime militar, adquiriu materialidade nas redes de televisão e encontrou sua melhor tradução no modelo constituído pela Rede Globo. Ao longo de quase quatro décadas, enquanto expandiam-se país adentro, com a patriótica missão que lhes foi atribuída, as redes de tevê aberta forjaram um mapa do Brasil baseado nos interesses políticos e comerciais privados dos seus proprietários... O resultado foi a criação de um Brasil refém das grandes empresas da mídia, imunes a qualquer forma de controle público, comandados de forma vertical e sustentados em alianças regionais que reproduzem e amplificam idéias, concepções e valores para 170 milhões de habitantes” [4].

No mesmo período, outro grupo fincou os alicerces do seu império. Victor Civita, filho de italianos, nascido nos EUA, muda-se para o Brasil em 1949 trazendo na sua bagagem um sinistro acordo com a empresa Disney. Em 1950, ele lança as tiras do Pato Donald e logo desbanca todos os concorrentes no mercado das revistas infantis. Na sequência, ele ingressa no lucrativo negócio das fotonovelas e investe na segmentação com revistas de moda, automóveis, turismo e outras. “Fiel à sua intuição para as oportunidades inéditas, Civita decidiu que São Paulo seria sua sede. ‘Era onde estava o dinheiro’, dizia”, relata um texto bajulatório [5]. Após consolidar seu império, que inclui a maior distribuidora em bancas, o Grupo Abril lança a revista Veja em 1968.

Além destes, outros veículos se projetaram, como o jornal O Estado de S.Paulo. Criado em 1875, com o nome de Província de S.Paulo, ele é fruto “da aliança entre as elites rurais e a burguesia ascendente” e nunca escondeu seu perfil conservador [6]. O jornal do clã Mesquita será o porta-voz da elite paulista desde o fracassado levante militar da oligarquia cafeeira em 1932. A Folha, fundada em 1921 e durante décadas um jornal provinciano, só ganhará fama após o golpe militar de 64. Comprado em 1962 por Carlos Caldeira e Octávio Frias de Oliveira, metido em negócios obscuros, como a Rodoviária Júlio Prestes, na capital paulista, o grupo vai prosperar na ditadura. A Folha da Tarde será o jornal de maior tiragem do país graças ao número de tiras (policiais) na sua redação [7].

Quadro atual da monopolização

A ausência de uma legislação proibitiva da propriedade cruzada, o desrespeito à Constituição e às tímidas leis reguladoras, o respaldo da ditadura militar, as relações promiscuas com o Estado e a própria lógica monopolista do capitalismo, entre outros fatores, explicam a brutal concentração da mídia. Na década passada, nove famílias dominavam o setor: Marinho (Globo), Abravanel (SBT), Saad (Bandeirantes), Bloch (Manchete), Civita (Abril), Mesquita (Estado), Frias (Folha), Levy (Gazeta) e Nascimento e Silva (Jornal do Brasil). Hoje são apenas cinco, já que as famílias Bloch, Levy e Nascimento faliram e o clã Mesquita atravessa uma grave crise financeira.

Na original classificação de Daniel Herz, fundador do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), quatro “times” operam na mídia nacional. O “primeiro time” é composto pelos “cabeças-de-rede”, geradores de programação nacional, incluindo as principais emissoras de TV, a Editora Abril e os jornais Estadão e Folha. O “segundo time” inclui grupos regionais e nacionais com certo alcance, como o Jornal do Brasil e a RBS do Rio Grande do Sul. O “terceiro time” é formado por emissoras regionais afiliadas às redes nacionais de TV; já o “quarto time” inclui milhares de pequenas e frágeis empresas de comunicação [8]. Na fase recente, também despontaram algumas emissoras de origem religiosa, como a TV Record, da Igreja Universal.

As Organizações Globo, porém, ainda preservam avassaladora hegemonia no setor, como atesta o mais recente relatório do projeto “Donos da Mídia”: “São 35 grupos afiliados que controlam, ao todo, 340 veículos. Sua influência é forte não apenas no setor de TV. A relação com empresas em todos os Estados permite que o conteúdo gerado pelos 69 veículos próprios do grupo carioca seja distribuído por um sistema que inclui 33 jornais, 52 rádios AM, 76 rádios FM, 11 rádios OC, 105 emissoras de TV, 27 revistas e 17 canais e nove operadoras de TV paga. Além disso, a penetração de sua rede é reforçada por um sistema que inclui 3.305 retransmissoras” [9].

Disputando o segundo lugar entre as redes nacionais encontra-se a SBT. “A rede controlada pelo Sistema Brasileiro de Televisão, do empresário Sílvio Santos, foi criada a partir do espólio da extinta Rede Tupi, fundada por Assis Chateaubriand na década de 1950. O primeiro canal no Rio de Janeiro, chamado TVS, foi assumido pelo grupo já em 1976, mas apenas em 1981 o governo militar entregou as concessões que permitiram a formação da rede nacional. Em pouco tempo, o SBT tornou-se a segunda maior rede de TV do país, título que divide hoje com a Rede Record. O SBT possui relação com 195 veículos no Brasil, tendo 37 grupos afiliados. A distribuição da programação para todo o país é garantida por suas 1.441 retransmissoras”.

Já a Rede Record, que hoje está vinculada à Igreja Universal do Reino de Deus, “entrou no ar em 1953. De lá para cá, sua história foi de altos e baixos (sucessos, crises, incêndios), mas a partir da década de 1990 a emissora inicia um processo de reformulação de sua programação. Atualmente, ela já é considerada a vice-líder em audiência em todo o país, apesar de ser a quarta em número de afiliados. Para alcançar a vice-liderança vale destacar a expansão territorial, os investimentos em produções próprias (novelas, reality shows), em esporte e em jornalismo de qualidade... São 30 grupos afiliados à Rede Record, controlando direta e indiretamente 142 veículos. O seu sinal está presente em todo o Brasil por meio de 870 retransmissoras”.

Além destas redes, o projeto “Donos da Mídia” dá destaque ao império da família Civita. “Desde sua fundação, em 1950, a Abril vem se mantendo como a primeira empresa do mercado editorial do Brasil. O grupo emprega hoje 7.440 pessoas e é composto pelas seguintes empresas: Editora Abril (revistas), Abril Digital, MTV, FIZ TV e Canal Ideal (TVs segmentadas), TVA (parceria estratégica com a Telefônica), além das Editoras Ática e Scipione... Sete das dez revistas mais lidas no país são da Abril, sendo a Veja a quarta maior revista semanal de informação do mundo e a maior fora dos Estados Unidos. A Abril também detém a liderança do mercado brasileiro de livros escolares”, além de monopolizar o sistema de distribuição das publicações em bancas.


NOTAS

1- Nelson Werneck Sodré. História da imprensa no Brasil. Editora Maud, RJ, 2007, 4ª edição.

2- Ana Maria Laurenza. “Batalhas em letra de forma: Chatô, Wainer e Lacerda”. História da imprensa no Brasil. Ana Luiza Martins e Tânia de Luca (orgs.). Editora Contexto, SP, 2008.

3- Valério Brittos e César Bolãno (orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia. Editora Paulus, SP, 2005.

4- “Quem são os donos”. Relatório do Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação. Revista Carta Capital, 06/03/02.

5- Thomaz Souto Corrêa. “A era das revistas de consumo”. História da Imprensa no Brasil, 2008.

6- Maria de Lourdes Eleutério. “Imprensa a serviço do progresso”. História da Imprensa no Brasil, 2008.

7- Beatriz Kushnir. Cães de guarda – Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. Boitempo Editorial, São Paulo, 2004.

8- Luiz Egypto. “Quem são os donos da mídia no Brasil”. Observatório da Imprensa, 24/04/02.

9- O projeto “donos da mídia” monitora do setor e foi idealizado pelo jornalista Daniel Herz. As informações são sempre atualizadas. Consultar o endereço: www.donosdamidia.com.br


- Extraído do terceiro capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para adquirir seu exemplar, entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico – livro@vermelho.org.br

domingo, 24 de janeiro de 2010

Guerrilha midiática na América Latina (6)

Com a fadiga neoliberal e aguçamento da luta de classes na América Latina, que desembocou na vitória de governantes progressistas, este papel concentrado e manipulador da mídia hegemônica passou a ser alvo de mais atenção das forças políticas e sociais de esquerda. Hoje há consenso de que não é possível avançar nas lutas emancipadoras sem investir no fortalecimento dos veículos próprios dos movimentos sociais e sem enfrentar a ditadura midiática. O sindicalismo brasileiro, por exemplo, produz mensalmente cerca de 10 milhões de exemplares de jornais e boletins [24]. As rádios comunitárias se multiplicaram na Venezuela, Equador e Bolívia e já ocupam um papel protagonista na mobilização, conscientização e organização dos setores populares.

A internet também possibilitou a criação de milhares de sítios e blogs progressistas que realizam a guerrilha informativa contra-hegemônica e já incomodam os barões da mídia. Em vários países do continente, jornalistas críticos, intelectuais engajados, estudantes e comunicadores populares hoje militam em entidades que priorizam a luta pela democratização dos meios de comunicação. As articulações contra a ditadura midiática, inclusive, já adquirem caráter regional. Em março de 2008, o 1º Encontro Latino-Americano contra o Terrorismo Midiático reuniu lutadores sociais de 14 países em Caracas. O documento final, além das duras críticas à mídia hegemônica, apresenta propostas para fortalecer os veículos alternativos e integração regional na área da comunicação.

“O terrorismo midiático somente poderá ser confrontado com o desenvolvimento de políticas públicas de comunicação. Se cada vez mais se constata a impossibilidade de recuperar, civilizar ou humanizar os meios privados prisioneiros da lógica do mercado, um esforço redobrado deve ser dirigido para construir o nosso sistema público de comunicação, tal como já está se fazendo na Venezuela, Brasil, Bolívia e Nicarágua. Partindo do raciocínio de Karl Marx, segundo o qual ‘a primeira liberdade de imprensa é não se tornar um negócio’, concluímos que somente meios comunitários livres da lógica capitalista poderão fazer uma comunicação libertária, humanista e solidária, e permitirão outro jornalismo, construtor da unidade latino-americana”, defendeu no encontro o jornalista brasileiro Beto Almeida, membro do conselho diretivo da Telesur [25].

Os avanços na construção dos veículos alternativos e das redes públicas são sensíveis nos países da região. Na Venezuela, após o traumático o “golpe midiático” de 2002, houve uma explosão de rádios e TVs comunitárias, de jornais e de sítios na internet. Esta comunicação popular é uma das bases de sustentação da revolução bolivariana [26]. Segundo o mais recente balanço, existem no país 167 rádios e 26 TVs comunitárias; a área de cobertura destes 193 veículos é de 116 das 335 cidades venezuelanas. “A população com acesso a estes meios é de 11,9 milhões de habitantes (46% do total)... Atualmente, também se editam 164 jornais e 117 meios digitais. Estudiosos têm qualificado esta proliferação de veículos populares na Venezuela de fenômeno inédito” [27].

Na Bolívia, além da explosão das rádios e TVs comunitárias, como a rede Erbol, ligada à igreja progressista, o governo iniciou em janeiro de 2009 a publicação do jornal Cambio, que se soma à rádio Pátria Nueva e ao Canal 7 de TV. “Agressões, humilhações e mentiras de alguns meios de comunicação nos obrigaram a criar este diário”, justificou Evo Morales no ato de lançamento do periódico [28]. Neste sofrido país, a mídia é controlada por latifundiários e pelo grupo espanhol Prisa, que dirige o segundo maior jornal e a emissora ATB, “a mais abertamente de oposição ao governo” [29]. No Equador, também ocorre a proliferação de rádios comunitárias, em especial nas comunidades indígenas, e o governo iniciou a construçao da sua rede pública [30].

Na Nicarágua, os jornais alternativos já concorrem com os jornalões tradicionais ligados à direita anti-sandinista, apesar das deficiências editoriais [31]. No Paraguai, o presidente Fernando Lugo inaugurou em janeiro de 2009 a primeira agência de notícias do governo, afirmando que nela “os únicos ausentes serão a propaganda simulada e a manipulação midiática para fins sectários, que envenenam o exercício jornalístico”. O diretor da nova agência é Osmar Sostoa, ex-dirigente do Sindicato dos Jornalistas do Paraguai [32]. Já na Argentina, que teve o primeiro boom de rádios comunitárias em meados dos anos 1980, após o fim da ditadura militar, agora vive nova fase de florescimento, com cerca de 500 emissoras “criadas por organizações populares, escolas, grupos temáticos, associações de trabalhadores, movimentos camponeses e indígenas” [33].

Os maiores obstáculos ao avanço dos meios contra-hegemônicos ocorrem exatamente nos países governados por representantes do neoliberalismo, aliados de Washington. No México, em 2006, o parlamento aprovou a Lei de Rádio e Televisão, batizada de Lei Televisa em referência a maior rede de TV privada da América Latina. Ela tornava quase automática a renovação de concessões, ampliava sua validade para 20 anos e proibia “povos indígenas de adquirir, operar e administrar estações de rádio e televisão”. A lei foi aprovada nas vésperas da vitória fraudulenta de Felipe Calderon, com base em chantagem e suspeitas de corrupção [34]. Pouco depois, a Suprema Corte vetou os principais artigos desta vergonhosa lei [35]. Já na Colômbia, impera o terrorismo de Estado, com o assassinato de jornalistas e o desrespeito à verdadeira liberdade de expressão.

Redes públicas e mudanças legais

A realidade mostra que o novo ciclo político aberto na América Latina – com a eleição de vários governantes progressistas, com seus ritmos e visões diferenciadas, com posturas mais ousadas ou moderadas – tem impulsionado a luta pela democratização da comunicação e o florescimento dos meios alternativos. Os reflexos já começam a ser sentidos no reforço das redes pública e estatal e nas próprias legislações sobre o setor, apavorando os donos da mídia. Num livro recém-lançado, indispensável para se entender este novo quadro, o professor Dênis de Moraes faz um minucioso levantamento sobre as mudanças na área nos últimos anos [36]. Os avanços são surpreendentes.

Há um acelerado reforço das redes públicas e estatais de comunicação. A pesquisa confirma que a Venezuela é o país que mais avançou neste setor estratégico. “Chávez criou o mais abrangente esquema de comunicação estatal da região. Pela variedade de órgãos vinculados pode-se medir o volume dos investimentos: quatro canais televisivos (Vive TV, Venezolana de Televisíon-VTV, Ávila TV e Asamblea Nacional), duas cadeias radiofônicas (Nacional e Mundial AM), Agencia Venezolana de Noticias, Imprensa Nacional, Fundación Vicente Emilio Sojo (Instituto de Musicología) e Centro Nacional de Tecnologías de Información”. O governo também firmou um convênio com a China para o lançamento do satélite Simon Bolívar, em 29 de outubro de 2008, “que passou a transmitir os sinais das emissoras públicas e comunitárias venezuelanas”.

O sistema de comunicação da Bolívia também passa por rápidas transformações. Ele inclui hoje a Agência Boliviana de Informação, a cadeia radiofônica Patria Nueva e a televisão estatal Canal 7. No Equador, Rafael Correa obteve apoio do Banco de Desenvolvimento Econômico-Social da Venezuela para implantar o canal Ecuador TV, inaugurado em dezembro de 2007. “É a primeira emissora estatal da história do país”, enfatiza o autor. Já na Argentina, o governo Kirchner aumentou o orçamento do Sistema Nacional de Meios Públicos, que congrega a Rádio Nacional, com quatro emissoras AM e FM, a Agência Telam, o Canal 7 e o Canal Encuentro – que está no ar desde maio de 2007, produz 40% do que veicula e conquistou bons índices de audiência.

Dênis de Moraes também destaca os avanços na cooperação informativa na América Latina. A criação da Telesur, em 2005, com o slogan “Nosso Norte é o Sul”, representou expressivo passo nesta integração. A rede, sediada em Caracas, é financiada pelos governos da Venezuela (51% das cotas), Cuba, Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador e Nicarágua. Em setembro de 2008, o presidente Fernando Lugo assinou a adesão do Paraguai. Mais de 80% da sua programação têm conteúdo informativo; os 20% restantes são ocupados por filmes e documentários independentes produzidos na região. Também aumentaram as permutas de notícias e imagens entre as agências oficiais da Venezuela, Argentina, Bolívia, Brasil e Telesur, o mesmo ocorrendo nas televisões.

Além da criação e fortalecimento das redes públicas, os países da região têm mudado os marcos regulatórios, enfrentando o poder concentrado da mídia privada. “O Equador é um dos países que mais avançou em termos de legislação antimonopólica. Na visão de Rafael Correa, leis severas devem impedir a ‘relação incestuosa’ entre meios de comunicação e poder econômico”. A nova Constituição, aprovada em agosto de 2008, define que os cidadãos têm o direito “à comunicação livre, equitativa, diversificada e includente”. Também determina que “o Estado deve garantir a concessão, através de métodos transparentes e em igualdade de condições, das freqüências do espectro radioelétrico, para a gestao das estações de rádio e televisão públicas, privadas e comunitárias”. Ela fixa que o controle social da imprensa será feito por ouvidorias públicas.

Na Venezuela, a Lei de Responsabilidade Social em Rádio e Televisão, a Lei Resorte, aprovada em dezembro de 2004, estabelece direitos e deveres das empresas concessionárias e do governo; institiu a classificação indicativa de programas; tipifica abusos da liberdade de expressão, proíbe a censura previa; protege a privacidade dos cidadãos e a honra das autoridades; e impõe sanções às violações cometidas. Em maio de 2008, o governo criou os primeiros comitês de usuários para acompanhamento dos canais sob concessão pública. “O objetivo é estimular a visão crítica dos ouvintes e telespectadores, em uma avaliação sistematizada dos conteúdos oferecidos”.

Na Bolívia, a Constituição aprovada em dezembro de 2007 assegura a liberdade de expressão e o direito à comunicação a todos os cidadãos, proíbe monopólios e exige que os veículos respeitem a pluralidade de idéias. O capítulo 7, que trata da comunicação social, prevê a universalização do acesso à informação, inclusive para as comunidades indígenas, e garante o direito à comunicação comunitária. Na Nicarágua, Daniel Ortega sancionou lei que amplia a “comunicação coletiva”. Na Argentina, Cristina Kirchner enviou um projeto de comunicação audiovisual que revoluciona o setor. Um dos artigos determina que “33% das licenças de TV e rádio serão para organizações sem fins lucrativos. Poderão ser licenciados cooperativas, igrejas, fundações e sindicatos”.

Caso surpreendente dos avanços no continente ocorre no Uruguai, com a aprovação de várias leis visando democratizar o acesso à informação e à cultura, como a Lei do Cinema e Audiovisual, de maio de 2008. Já a Lei de Radiodifusão Comunitária, sacionada pelo presidente Tabaré Vázquez em dezembro de 2007, “é considerada uma das mais avançadas do mundo”. O texto enquadra a rádio comunitária como terceiro setor, complementar às rádios privadas e estatais, e reserva-lhe um terço das freqüências disponíveis em AM e FM. Dênis de Moraes registra outras importantes conquistas legais na radiodifusão comunitária na Bolívia, Equador, Venezuela e até mesmo no Chile, onde a presidente Michelle Bachelet adota medidas ambíguas na área da comunicação.

O vibrante livro “A batalha da mídia” confirma, com farta documentação, os históricos avanços neste setor estratégico. “É precipitado asseverar que o atual horizonte de mudanças na América Latina levará a alterações definitivas nos sistemas de comunicação e cultura, até porque o destino dos projetos políticos e econômicos no continente ainda é incerto. Contudo, pela primeira vez na região, divisa-se um elenco de promissoras ações governamentais. As providências indicam ser perfeitamente possível assumir uma direção democratizadora e antimonopólica, a partir de interferências do poder público eleito pelo voto popular”, conclui Dênis de Moraes.


NOTAS

24- João Franzin. Imprensa sindical: comunicação que organiza. Editora Agência Sindical, SP, 2007.

25- Beto Almeida. “Fortalecer el campo público de la comunicación para combatir el terrorismo mediático”. Caracas, 2008.

26- Mônica Simioni. “Comunicação e disputa hegemônica na Venezuela no pós-golpe de abril de 2002”. Tese de mestrado em ciência política apresentada na PUC-SP, em 2007.

27- Yuri Pimentel. “Hay que construir um nuevo orden socialista mundial de la comunicación y la información”. Telesur, 27/05/07.

28- “Comienza a circular em Bolivia el periódico estatal Cambio”. Prensa Latina, 23/01/09.

29- Ricardo Bajo e Pascual Serrano. “Bolívia: quién controla los médios de comunicación?”. Le Monde Diplomatique, 06/01/09.

30- Eduardo Tamayo. “Ecuador: Medios públicos em etapa de construcción”. Alainet, 14/12/08.

31- Karla Jacobs. “Los medios corporativos em Nicaragua y sus contrapartidas del FSLN”. Rebelión, 16/01/09.

32- Oscar Serrat. “El presidente Lugo inauguró la primera agencia paraguaya de noticias”. Rebelión, 21/01/2209.

33- Dafne Sabanes. “Argentina: convergencia tecnologica y participación popular”. Alainet, 13/06/07.

34- Nildo Ouriques. “Hugo Chávez e a ‘liberdade de imprensa’”.

35- Raul Juste Lores. “Justiça do México derruba ‘Lei Televisa’”. Folha de S.Paulo, 07/07/09.

36- Dênis de Moraes. A batalha da mídia. Governos progressistas e políticas de comunicação na América Latina e outros ensaios. Editora Pão e Rosas, RJ, 2009.


- Extraído do segundo capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para adquirir o livro, entrar em contato com Eliana Ada no endereço – livro@vermelho.org.br

sábado, 23 de janeiro de 2010

Golpismo da mídia na América Latina (5)

O papel da mídia hegemônica neste processo aupicioso de mudança é revelador do seu caráter de classe burguês – elitista e autoritário. Ela rasga sua fantasia “democrática” e assume sua clássica postura golpista, fazendo de tudo para evitar a eleição dos candidatos antineoliberais e, quando isso não é possível, para desestabilizar os novos governantes. Diante da grave crise dos partidos burgueses, desgastados pela ressaca neoliberal, a mídia assume o papel do “partido da direita”. O caso mais grotesco ocorreu na Venezuela, em especial na tentativa frustrada de “golpe midiático” de abril de 2002 e no locaute petroleiro de dezembro/janeiro de 2003. Até os dias atuais, a mídia faz de tudo para abortar o processo original e ousado de mudanças da revolução bolivariana [10].

No livro “Midiático poder”, o jornalista Renato Rovai fornece farta documentação que comprova a participação ativa das redes privadas de rádio e TV e dos jornais na oposição a Hugo Chávez. Quando sua candidatura despontou nas pesquisas, a mídia procurou impedir sua eleição; quando percebeu que sua vitória era inevitável, ela tentou chantageá-lo e cooptá-lo; como não conseguiu, ela partiu para o golpismo escancarado. Ela padronizou sua cobertura política numa conspiração batizada de “una sola voz”, com ataques diários e unificados ao governo. A fúria não era exibida apenas nos telejornais, mas também nas novelas, nos programas humorísticos e até de esportes.

A mídia orquestou o golpe de 11 de abril de 2002. As passeatas da oposição foram convocadas e “acompanhadas por um pool de TVs, que trocavam imagens da cobertura. A vinheta usada pelas emissoras para anunciá-las não deixava dúvida sobre o tom editoral: ‘ni um paso atrás’”. O golpe durou pouco; derrotada, a mídia impôs um “apagão informativo”, omitindo a revolta dos morros que forçou o retorno de Chávez. Já nos 64 dias da greve patronal de dezembro/janeiro de 2003, as quatro principais redes de TV alteraram sua programação, cortando até comerciais, novelas e desenhos animados, e exibiram 17.600 anúncios contra o governo e a favor do locaute petroleiro. “O slogan midiático do novo calendário golpista passou a ser ‘Natal sem Chávez’” [11].

A experiência venezuelana é a mais traumática, mas não é única a confirmar o papel nefasto dos meios de comunicação na América Latina. Na Bolívia, a mídia dirigida pela oligarquia de Santa Cruz nunca escondeu seu ódio ao líder indígena e camponês Evo Morales. Nas eleições de 2005, segundo estudos independentes, 83% das notícias dos jornais, rádios e TVs foram desfavoráveis à sua candidatura. Após sua posse, a mídia passou a estimular os piores instintos racistas e jogou na divisão do país, sendo uma das responsáveis pela violência separatista, com as suas suásticas nazistas, em 2008. Sem se intimidar, o presidente Evo Morales desabafou recentemente: “90% da mídia está contra mim, mas dois terços do país aprovam esse processo de mudanças” [12].

Já no Equador, a mídia controlada por banqueiros faz oposição cerrada a Rafael Correa. Poucos dias após sua eleição no final de 2006, a presidente do diário El Comercio de Quito, Gaudalupe Mantilla, convocou os funcionários e afirmou que os simpatizantes do novo governo “deveriam se retirar do jornal, que a partir desse momento assumirá a postura de oposição” [13]. Diante da iniciativa de Rafael Correa de construir uma rede pública de comunicação, que inexistia no país, a oposição dos empresários se acirrou. Jaime Mantilla, proprietário do jornal Hoy e presidente da Associação Equatoriana de Periódicos (Aeped), criticou a “perigosa publicidade oficial” [14].

O terrorismo midiático não se manifesta somente nos países que experimentam processos mais avançados, radicalizados, de mudanças políticas, econômicas e sociais. Mesmo governos menos ousados são alvos desta fúria. Na Argentina, El Clarín fez campanha aberta contra as eleições de Nestor e Cristina Kirchner. Em 2008, o jornal incentivou o boicote do agronegócio, que quase levou ao desabastecimento de alimentos no país. “O chamado ‘conflito no campo’ evidenciou a capacidade do sistema midiático contra-insurgente de atuar sobre uma sociedade fragmentada e passível de ser intoxicada. O país foi colocado a bordo de um ‘golpe suave’”. [15]. No Chile, o El Mercurio não poupou críticas à progressista reforma previdenciária de Michelle Bachelet.

No geral, a região rebelde vive a “era da desinformação”, segundo o escritor Tariq Ali. Os barões da mídia e alguns jornalistas-capachos esperneiam para preservar os privilégios das oligarquias e para abortar as mínimas reformas. “A mais sofisticada tecnologia de comunicação é colocada a serviço das mais primitivas e simplistas necessidades do sistema, fornecendo o que é pedido, inclusive golpes e substituições escabrosas de presidentes eleitos... Não foram poucos os jornalistas e acadêmicos de fala mansa e hipócrita que se transformaram da noite para o dia em guerreiros da causa imperial, desesperados para agradar seus novos mestres” [16].

A SIP e o serviço sujo da CIA

No esforço para conter as mudanças, os barões da mídia das saqueadas nações latino-americanas contam com a ajuda, inclusive financeira, de organismos ligados ao império estadunidense – que sempre encarou a região como seu “quintal”. A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) é a entidade mais ativa na conspiração contra os governos progressistas do continente. Em março de 2009, ela chegou a incluir o presidente Lula na lista dos inimigos da “liberdade de expressão”, ao lado de Hugo Chávez, Evo Morales e outros. “O presidente brasileiro sempre ataca a imprensa e lança críticas desmedidas quando o enfoque do noticiário não lhe agrada”, justificou a entidade.

A SIP foi criada em 1943 numa conferência em Havana, durante a ditadura de Fulgencio Batista, e logo foi tomada de assalto pela CIA. Em 1950, na sua conferência de Quito, dois agentes desta central, Joshua Powers e Jules Dubois, passaram a comandá-la. “A Sociedade Interamericana de Imprensa é um cartel dos donos de meios de comunicação, que nasceu nos marcos da II Guerra e que se moldou no calor da ‘guerra fria’ para protagonizar uma história de defesa dos interesses oligopólicos, de aliança com os poderes imperiais e de atentados contra a soberania dos povos latino-americanos... É um aparato político a serviço dos objetivos internacionais dos EUA” [17].

Para defender os interesses do império, seus estatutos foram adulterados, garantindo maioria aos empresários dos EUA, e sua sede foi transferida para Miami. Nos anos 1950, a SIP fez oposição ao governo nacionalista de Juan Perón e elegeu o ditador nicaragüense Anastácio Somoza como “o anjo tutelar da liberdade de pensamento”. Nos anos 1960, o seu alvo foi a revolução cubana; na década seguinte, atacou Salvador Allende. Na fase recente, ela apoiou o “golpe midiático” na Venezuela. Apavorada com a guinada à esquerda na região, ele crítica os governos progressistas e concentra suas baterias na defesa dos monopólios e contra qualquer regulamentação do setor.

Na prática, a SIP reúne a máfia da mídia privada da América Latina e não tem moral para falar em “liberdade de expressão”, já que apoiou todos os golpes e ditaduras. Ela nunca defendeu os jornalistas perseguidos e assassinados na região [18]. Um de seus presidentes, Danilo Arbilla, foi integrante do regime militar do Uruguai e decretou, em julho de 1973, a censura dos jornais que “pertubem a ordem pública” – 173 veículos foram fechados [19]. Já o atual dirigente é primo do ministro da Defesa e irmão do vice-presidente da Colômbia, país recordista mundial em mortes de jornalistas, governado pelo narco-traficante Álvaro Uribe, aliado preferencial dos EUA [20].

Outra entidade bastante ativa na conspiração contra os governos progressistas do continente é a Repórteres Sem Fronteiras, uma pseudo-organização não-governamental que recebe volumosos recursos dos EUA e é dirigida pelo “anticastrista obssessivo” Robert Ménard [21]. A ingerência do “império do mal” na mídia latino-americana é escancarada. Inúmeras agências ianques, como o NED e a Usaid, financiam sua ação. No livro “El Código Chávez”, a advogada Eva Golinger fornece provas documentais sobre o envio ilegal de dólares para veículos e ONGs que estiveram diretamente envolvidos na tentativa frustrada de golpe na Venezuela em abril de 2002 [22].

Em 2007, o Departamento de Estado dos EUA bancou cerca de US$ 10 milhões para custear um projeto de “intercâmbio”, conhecido como Grant IV, que envolveu 467 jornalistas. Em 2005, o mesmo órgão patrocinou 15 oficinas sobre “liberdade de expressão” na Bolívia. Segundo o seu relatório oficial, “jornalistas e estudantes de comunicação discutiram a ética profissional, as boas práticas da difusão das notícias e o papel da mídia na democracia”. Pouco depois, vários destes “jornalistas” participaram da campanha suja contra Evo Morales. Para Eva Golinger, estas ações fazem parte da “doutrina oficial de guerra do Departamento de Defesa dos EUA, definidas como ‘operações psicológicas’”, e visam desgastar e derrubar governos opostos ao imperialismo [23].

NOTAS

10- Gilberto Maringoni. A Venezuela que se inventa. Editora Fundação Perseu Abramo, SP, 2004. Altamiro Borges. Venezuela: originalidade e ousadia. Editora Anita Garibaldi, SP, 2005.

11- Renato Rovai. Midiático poder. O caso Venezuela e a guerrilha informativa. Editora Publisher, SP, 2007.

12- Leonardo Wexell Severo. Bolívia nas ruas e urnas contra o imperialismo. Editora Limiar, SP, 2008.

13- Andrés Iari. “Chávez, Evo y Correa contra los medios de comunicación”.

14- Eduardo Tamayo. “Ecuador: Medios públicos em etapa de construcción”. Alainet, 14/12/08.

15- Stella Calloni. “Contrainsurgencia informativa en la guerra de baja intensidad”. Cuba Debate, 21/11/08.

16- Tariq Ali. Piratas do Caribe. O eixo da esperança. Editora Record, RJ, 2008.

17- Yaifred Ron. “Los amos de la SIP”. Rebelión.

18- Darvin Romero Montiel. “Sicarios implacables del periodismo”. Rebelión.

19- Antonio Guilhermo Danglades. “La SIP: falta de autoridad moral e interés tergiversado”. Rebelión.

20- Pascual Serrano. “Preguntas de un ciudadano a la Sociedade Interamericana de Prensa”. Rebelión.

21- Mais detalhes sobre a ONG Repórteres Sem Fronteiras.

22- Eva Golinger. El Código Chávez. Decifrando la intervención de los EE.UU en Venezuela. Fondo Editorial Question, Caracas, 2005.

23- Eva Golinger. “El terrorismo midiático y las operaciones psicológicas”. Aporrea.


- Extraído do segundo capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para adquirir o livro, entrar em contato com Eliana Ada no endereço – livro@vermelho.org.br

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Mídia na berlinda na America Latina (4)

“O terrorismo midiático é a primeira expressão e condição necessária do terrorismo militar e econômico que o Norte industrializado emprega para impor à humanidade a sua hegemonia imperial e o seu domínio neocolonial”. Manifesto do 1º Encontro Latino-Americano contra o Terrorismo Midiático (março de 2008).


“As mobilizações populares e a ascensão de governos progressistas realçam a oportunidade de uma América Latina pós-neoliberal [...], que permita maior controle social sobre a mídia”. Dênis de Moraes, autor do livro “As batalhas da mídia”.


A América Latina vive um processo inédito e intenso de mudanças políticas, que já se refletem no terreno econômico e social e também nos rumos da integração regional. O continente que foi saqueado pelas nações colonialistas, como tão bem retratou o escritor Eduardo Galeano no livro “As veias abertas da América Latina”, que sofreu com sangrentas ditaduras militares e que foi o principal laboratório das destrutivas políticas neoliberais, atualmente se levanta e tateia caminhos alternativos, que garantam mais democracia, soberania nacional e justiça social. A perspectiva do “socialismo do século 21” volta a se colocar no horizonte na região da heróica revolução cubana.

Nesta América Latina rebelde, a mídia hegemônica está na berlinda. Ela é criticada por seu papel manipulador, pela postura de criminalização dos movimentos sociais e pela ação destabilizadora contra governos democraticamente eleitos. Em todos os países surgem entidades que priorizam a batalha pela democratização dos meios de comunicação. Governantes progressistas, oriundos das lutas contra a regressão neoliberal, também adotam medidas para se contrapor ao terrorismo midiático. Mais ousados ou mais moderados, conforme a correlação de forças de cada país, eles tentam regulamentar o setor, incentivam redes públicas e polemizam com os barões da mídia.

Apoio aos golpes e às ditaduras

A revolta contra a mídia hegemônica é plenamente justificada. Com raras e honrosas exceções, o seu passado a condena! Afinal, ela sempre expressou o que há de mais antidemocrático, antipovo e antinação no sofrido continente latinoamericano. Sempre serviu às elites rascistas e golpistas e reproduziu servilmente os interesses das potências imperialistas, em especial os dos EUA. Num passado mais remoto, a imprensa burguesa, que ainda não havia erguido seus impérios midáticos, satanizou o jovem movimento camponês e operário da região e fez de tudo para sabotar governos burgueses nacional-desenvolvimentistas, como o de Lázaro Cárdenas (México), Jacobo Arbens (Guatemala), Juan Perón (Argentina), Velasco Alvarado (Peru) e Getúlio Vargas (Brasil).

Já no passado mais recente, estimulada pela propaganda estadunidense da “guerra fria”, a mídia hegemônica clamou por golpes militares para evitar o “perigo comunista” e o risco de contágio da revolução cubana. Muitas das atuais corporações midiáticas prosperaram durante as violentas ditaduras e têm as mãos sujas de sangue. Um dos casos mais execráveis foi o do Chile. Agustín Edwards, dono do jornal El Mercurio, foi um dos principais mentores do golpe que derrubou o presidente Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973. Relatórios desclassificados da CIA, a agência terrorista dos EUA, confirmam que o empresário recebeu US$ 1,5 milhão de subsídios para criar o clima favorável à conspiração militar comandada pelo general Augusto Pinochet [1].

Além da ajuda da CIA, o First National Bank anistiou as dívidas do caloteiro Agustín e inúmeras empresas envolvidas na preparação do golpe fizeram depósitos ilegais na sua conta na Suíça. “El Mercurio é importante. É um espinho cravado nas costas de Allende. Ajuda a manter alta a moral das forças opositoras”, explicou, às vésperas do golpe, Willian Jorden, assessor do secretário de Defesa Henry Kissinger. Um memorando da CIA de 1972 enalteceu o jornal, que “publica quase diariamente editoriais com críticas ao governo” e atua “como centro da agrupação da oposição”. Outro relatório afirmou que “a assistência dada a El Mercurio tinha como objetivo que o jornal independente pudesse sobreviver como porta-voz da democracia e contra a Unidade Popular”, a coalisão de esquerda que elegeu e dava sustentava o governo democrático de Salvador Allende.

A retribuição do sanguinário Pinochet foi generosa. Durante a ditadura, a corporação prosperou e hoje possuí quatro jornais nacionais, 21 diários regionais e a rede de rádios FM Digital. Um livro recém-lançado, “El diario de Agustín”, revela que o império cresceu acorbertando as violações de direitos humanos durante os 17 anos do cruel regime militar – que resultaram, segundo dados oficiais, em mais de 3 mil chilenos mortos e cerca de 35 mil torturados. El Mercurio noticiava os assassinatos como se fossem suicídios ou “acidentes de trânsito”, como na morte do diplomata chileno-espanhol Carmelo Soria, em julho de 1974. Quando não dava para ocultar, ele justificava os assassinatos como “conseqüência da guerra civil iniciada em 1973 pelos marxistas” [2].

A mesma postura golpista foi adotada por outros barões da mídia da América Latina [3]. O grupo El Clarín, que hoje compõe o clube dos 50 maiores impérios midiáticos do planeta, articulou a conspiração militar na Argentina. “A economia se encontra numa etapa vizinha ao colapso total. A violência subversiva e sua ação criminosa exigem ordenar medidas adequadas para exterminá-las... Abre-se agora uma nova etapa com renascidas esperanças”, afirmou o editorial do jonal El Clarín de 24 de março de 1976. A sua linha editorial “serviu para justificar os horrendos crimes da ditadura... Só quando os ‘subversivos’ foram virtualmente eliminados pelos militares e estes já não eram mais necessários, El Clarín se transformou num embandeirado da democracia” [4].

Porta-voz da devastação neoliberal

A exemplo da Argentina, quando as crises econômicas e políticas isolaram os regimes militares e a resistência popular avançou no continente, as maiores corporações da mídia se travestiram de democratas e passaram a pregar o receituário neoliberal. Elas substituíram a ditadura militar pela ditadura do mercado. Ajudaram a criar o consenso neoliberal em defesa do desmonte do Estado, da nação e do trabalho. Adoradores do “deus-mercado”, as maiores redes de rádio e televisão e os jornais tradicionais pregaram a privatização criminosa das estatais, o corte dos gastos sociais, a flexiblização dos direitos trabalhistas e a total libertinagem financeira. Os jornalistas críticos do neoliberalismo foram afastados das redações, que foram ocupadas pelos agentes do rentismo [5].

Através de técnicas requintadas de publicidade, a mídia fabricou “candidatos” e ajudou a eleger e reeleger vários presidentes neoliberais, adpetos do “Consenso de Washington”, como Fernando Henrique Cardoso (Brasil), Alberto Fujimore (Peru) e Carlos Menem (Argentina), entre outros. Após a “década perdida”, que fragilizou a economia nos anos 1980, veio a “década maldita” do neoliberalismo, com as suas taxas declinantes de crescimento e a explosão do desemprego e da informalidade. As nações foram escancaradas para os capitais estrangeiros, os Estados foram privatizados, a miséria explodiu e a vida foi mercantilizada. As “relações carnais com os EUA”, pregadas por Menem, tornaram a região ainda mais servil aos desígnios do “império do mal”.

Mas o devastador tsunami neoliberal, que inicialmente seduziu parcelas das camadas médias e dos próprios trabalhadores, como aponta estudo do sociólogo Armando Boito Jr. [6], não durou muito tempo. Aos poucos, a luta contra os seus efeitos destrutivos e regressivos ganhou impulso, desafiando o “pensamento único” emburrecedor da mídia hegemônica. Através de várias formas de rebeldia, dos levantes populares que derrubaram 11 presidentes em curto espaço de tempo aos Fóruns Sociais Mundiais deflagrados no Brasil, a resistência cresceu e ganhou protagonismo. No geral, a crescente revolta contra o neoliberalismo desaguou na vitória das forças progressistas nas eleições presidenciais, que adquiriram centralidade na luta política no continente [7].

O ciclo inédito e impressionante de vitórias de candidatos progressistas na América Latina teve início com a eleição do militar rebelde Hugo Chávez, na Venezuela, em dezembro de 1998. Na seqüência, numa guinada à esquerda, chegam ao governo central um líder operário no Brasil, um peronista antineoliberal na Argentina, um ex-exilado político no Uruguai, um líder indígena na Bolívia, um economista heterodoxo no Equador, um ex-guerrilheiro na Nicarágua, uma mulher vítima da ditadura no Chile, um teólogo da libertação no Paraguai – no início de 2009, um jovem candidato da FMLN, a guerrilha que depôs suas armas, é eleito em El Salvador. De laboratório do neoliberalismo, a América Latina despontou como vanguarda mundial da luta por mudanças.

Com ritmos e visões diferenciadas, cada um destes novos governantes procura avançar nas novas “vias abertas na América Latina”, visando superar a destruição neoliberal e construir nações mais democráticas, soberanas e justas. Eles também apostam na integração regional como contraponto à desintegração imposta pelos EUA. Com todas as suas contradições, este novo ciclo tem sentido progressista (8). Para o sociólogo Emir Sader, “o continente onde o neoliberalismo nasceu – no Chile e na Bolívia –, ainda mais se estendeu e encontrou um território privilegiado, tornou-se, em pouco tempo, o espaço de maior resistência e construção de alternativas... São duas faces da mesma moeda: justamente por ter sido laboratório das experiências neoliberais, a América Latina viveu a ressaca dessas experiências, tornando-se o elo mais fraco da cadeia neoliberal” [9].

NOTAS

1- Mário Augusto Jakobskind. “Reações à democratização da informação”. Observatório da Imprensa, 07/11/06.

2- Daniela Estrada. “El Mercurio y la dictadura. Historia de una colusión". Rebelión, 26/05/09.

3- A postura da mídia brasileira no golpe e na ditadura militar é descrita no Capítulo IV.

4- Andrés Iari. “Chávez, Evo y Correa contra los medios de comunicación”. Rebelión, 12/05/09.

5- Pascual Serrano. “Los medios e la crisis mundial”. Exposição apresentada no Fórum Mundial de Mídia Livre em Belém do Pará, em janeiro de 2009.

6- Armando Boito Jr. Política neoliberal e sindicalismo no Brasil. Editora Xamã, SP, 1999.

7- Roberto Regalado. América Latina entre siglos. Dominación, crisis, lucha social e alternativas politicas de la izquierda. Editora Ocian Press, Cuba, 2006.

8- Altamiro Borges. “As vias abertas da América Latina”.

9- Emir Sader. A nova toupeira. Os caminhos da esquerda latino-americana. Boitempo Editorial, SP, 2009.

- Extraído do segundo capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para adquirir o livro, entrar em contato com Eliana Ada no endereço – livro@vermelho.org.br

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Sinais de vulnerabilidade da mídia (3)

Apesar do enorme poder de manipular “corações e mentes”, a mídia vem sofrendo abalos na fase recente. Pesquisas apontam o aumento da vulnerabilidade das corporações midiáticas. “Durante os últimos quatro anos, a audiência dos telejornais das três principais cadeias norte-americanas teve queda de 60% a 38% do total de telespectadores. 72% dos temas tratados têm caráter local ou se referem à violência, drogas, agressões e delitos” [26]. Parcela crescente dos estadunidenses já passa mais tempo em frente à tela do computador do que assistindo, como receptor passivo, aos programas de baixa qualidade e à overdose de publicidade das emissoras de televisão.

Mais dramática é a situação da mídia impressa. Nos EUA, somente 19% da população entre 18 e 34 anos se declara leitora de jornais. Vários periódicos decretaram falência e alguns migraram para a internet. Um caso emblemático ocorreu no final de 2008. Um dos mais tradicionais jornais dos EUA, o centenário The Christian Science Monitor, anunciou que seria veiculado apenas pela internet. Sua circulação diária caiu de 220 mil exemplares, em 1970, para 52 mil em 2008, o que fez despencar a publicidade deste periódico editado pela igreja First Church of Christ. O jornal já havia recebido sete prêmios Pulitzer e exercia certa influência na formação da opinião pública.

“Pouca gente acredita que os jornais, na forma impressa de hoje, tenham chance de sobreviver. Eles estão perdendo anunciantes, leitores, valor de mercado e, em alguns casos, o próprio senso de missão... Nos últimos três anos, os jornais americanos perderam 42% do valor de mercado. Poucas companhias foram tão punidas em Wall Street quanto aquelas que ousaram investir no ramo jornalístico... O New York Times Company viu as suas ações caírem 54% desde 2004. A Washington Post Company só evitou o mesmo destino ao se apresentar como ‘empresa de educação e comunicação’; seu braço didático, a Kaplan, agora responde por pelo menos metade do faturamento total... A maioria dos executivos reagiu ao colapso de seu modelo de negócios com uma espiral de cortes orçamentários, sucursais fechadas, fusões, demissões e reduções de formato. De 1990 para cá, um quarto dos empregos no ramo jornalístico desapareceu”, aponta o jornalista Eric Alterman [27].

Principais fatores do declínio

Vários fatores explicam o declínio relativo da mídia hegemônica. O principal deles, segundo boa parte dos especialistas, é o fator tecnológico. A internet e o acelerado processo de convergência digital possibilitam novas opções de informação, cultura e entretenimento, mais democráticas e interativas. São uma brecha, mesmo que parcial e temporária, ao poder da ditadura midiática. As corporações, porém, já perceberam este vasto potencial, impõem legislações restritivas em vários países e integram a internet aos seus domínios. O ranking mundial revela que os sítios mais freqüentados em qualquer país já pertencem aos mesmos conglomerados. No futuro, prognostica Ignacio Ramonet, a internet poderá até servir para reforçar ainda mais o poder das corporações.

A mídia hegemônica também é vítima da própria crise capitalista que ajudou a criar. Apostou na orgia financeira e agora afunda com os títulos tóxicos. Além disso, ela sofre com a multiplicação de emissoras abertas e de jornais gratuitos. Por último, vale destacar a perda de credibilidade dos veículos tradicionais. Pesquisa da Universidade do Sagrado Coração revelou que menos de 20% dos estadunidenses acreditam no noticiário jornalístico – número que despencou 27% em cinco anos. “Menos de uma em cada cinco pessoas acredita no que lê na imprensa”, apontou o relatório “O estado da mídia”, de 2007. O descrédito cresceu devido às mentiras veiculadas após a invasão do Iraque e deu espaço para o crescimento de sítios e blogs progressistas nos EUA e na Europa.

Um caso exemplar é o da página eletrônica Huffington Post, fundada em maio de 2005 e que se projetou ao desmascarar os impérios midiáticos que aderiram à política de Bush. Já na campanha de Barack Obama, ela registrou visitas diárias de 11 milhões de pessoas. A sua equipe é reduzida e o noticiário é compartilhado por milhares de voluntários, entre eles, mais de 1.800 blogueiros. O fenômeno da blogosfera progressista já preocupa os barões da mídia. Numa palestra recente, o editor-executivo do New York Times, Bill Keller, atacou os que “mastigam e reciclam notícias”. Após afirmar que “a grande imprensa perdeu seu verniz de confiabilidade absoluta”, Arianna Huffington disparou: “Os blogueiros não mastigam notícias, eles cospem notícias”.

A ditadura da mídia, como se nota, não é inabalável. A sua perda de credibilidade tende a crescer com o acirramento da luta de classes no mundo. Como aponta Pascual Serrano, no texto citado, o declínio atual decorre, entre outros fatores, da “crise de identidade” (o público já não confia nos veículos, tendo provado várias vezes como eles mentem e ocultam os elementos fundamentais da realidade); “crise de objetividade” (o mito da neutralidade sucumbe e a confiança no jornalismo despenca com ele); “crise de autoridade” (a internet e as novas tecnologias revelam a capacidade das organizações sociais e dos jornalistas alternativos para enfrentar o poder das corporações midiáticas); e da “crise de informação” (a dinâmica mercantilista e a necessidade de aumentar a produtividade e a rentabilidade provocam a perda de qualidade da atividade jornalística).

NOTAS

26- Ryszard Kapuscinski. “Reflejan los medios la realidade del mundo?”. Le Monde Diplomatique, 24/02/2001.

27- Eric Alterman. “O futuro dos jornais”. Folha de S.Paulo, “Caderno Mais!”, 08/06/08.

- Extraído do primeiro capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado em julho passado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Os interessados em adquirir o livro podem entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico – livro@vermelho.org.br

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A máquina de propaganda das guerras (3)

A ligação umbilical entre as potências imperiais e as corporações midiáticas ajuda a explicar a cobertura amplamente favorável dada a todas as guerras de rapina. No caso das recentes invasões do Iraque e do Afeganistão, a manipulação atingiu seu ápice e confirmou uma antiga máxima do senador ianque Hiram Johnson: “A primeira vítima, quando começa a guerra, é a verdade”. Para o jornalista José Arbex Jr., as emissoras de TV ocupam papel destacado nesta farsa. “A televisão adquiriu enorme poder de transformar quase tudo em show, espetáculo, diversão... Em nossas casas, vemos tudo pela TV e temos a impressão de estar testemunhando ‘a’ verdade dos fatos, e não apenas ‘uma’ verdade, isto é, uma simples versão que alguém filmou, editou e veiculou” [15].

A Fox, do direitista Rupert Murdoch, foi a mais agressiva no apoio ao genocídio no Iraque e até chegou fazer campanha de boicote aos produtos franceses em repúdio ao governo deste país que criticou a “guerra”. Já a CNN abandonou o seu falso ecletismo. No primeiro dia da ocupação, ela introduziu a vinheta “começou a libertação” e criou um sistema de script approval (aprovação do original), forçando seus repórteres a enviarem as matérias a Atlanta antes de serem transmitidas ao mundo. Oficiais militares, muitos deles ligados às empresas contratadas pelo governo do EUA – como a firma de mercenários Blackwater – foram usados como “articulistas” pelas TVs [16].

Nas rádios, a retórica belicista foi descarada. A principal emissora comercial dos EUA, a Clear Channel Wordwide, convocou manifestações favoráveis à invasão e orientou suas 1.200 estações filiadas em 50 estados a não transmitir música de protesto e a atacar os ativistas da paz, tachados de “comunistas e antiamericanos”. Em Atlanta, um radialista esbravejou: “Estamos rodeados de loucos, de mulheres que não raspam as axilas e de lésbicas” [17]. Já na mídia impressa, caiu a máscara de muitos jornais e jornalistas “independentes”. Não foram apenas os veículos ligados aos neocons, como o Washington Times, da seita Moon, ou o New York Post, de Murdoch, que reforçaram a onda belicista. O Washington Post e o New York Times também verteram sangue.

Da mesma forma como já ocultara os efeitos das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, a mídia silenciou sobre o genocídio de um milhão de iraquianos, num dos piores capítulos de sua história. Para o jornalista Argemiro Ferreira, “ela desistiu de qualquer resistência, ainda que tímida, à histeria belicista do governo Bush”. Antes mesmo da invasão, “a grande maioria da mídia, liderada pelos excessos patrioteiros do magnata Rupert Murdoch, já estava quase totalmente dedicada ao papel de veiculadora passiva da propaganda bélica... Nenhum dos grandes veículos achou que deveria cumprir o dever primário de checar as supostas provas levadas à ONU – fantasiosas e fraudadas. Foi, enfim, um capítulo à altura da nossa mídia tupiniquim ao tempo da ditadura” [18].

A promíscua relação com o poder

No auge da histeria estadunidense, a mídia chegou a justificar as piores atrocidades do governo – o que também lembra o Brasil. Num artigo intitulado “É hora de pensar a tortura”, o articulista Jonathan Alter, da revista semanal Newsweek, escreveu: “É um mundo novo e a sobrevivência pode muito bem requerer velhas técnicas que estavam fora de questão”. O jornal The Wall Street publicou o editorial “A segurança vem antes da liberdade”. Já na revista eletrônica Slate, Dahlia Lithwick escreveu que “torturar terroristas e os seus asseclas para obter informações é algo que funciona”. Na CNN, o comentarista Tucker Carlson afirmou que “a tortura é ruim. Mas algumas coisas são piores. E, em determinadas circunstancias, ela pode ser o menor dos dois males”.

As mentiras plantadas pelo presidente-terrorista George Bush – segundo recente estudo, um total de 935 [19] – foram difundidas no mundo como verdades absolutas pela mídia. Entre outras, a de que o Iraque teria armas de destruição em massa (ADM), de que Saddam Hussein seria aliado da Al-Qaeda e que teria planejado os atentados de 11 de setembro. Poucos veículos ou jornalistas se indignaram diante destes absurdos repetidos à exaustão. Robert Fisk, veterano correspondente de guerra, foi rotulado de “inocente útil de Saddam” pelo secretário britânico de Defesa, Geoff Honn, após mostrar que as “bombas inteligentes” atingiram um mercado em Bagdá, matando 62 civis.

A censura imperou nos EUA sem que nenhum veículo defendesse a “liberdade de imprensa”. A MSNBC cancelou o programa de Phil Donahue, acusando-o de entrevistar ‘pessoas que estão contra a guerra e o presidente Bush’. O jornalista Brent Flynn, do Lewisville Leader, foi proibido de redigir sua coluna. Já o repórter Kurt Kauglie, do Michigan’Hurón Daily Tribune, pediu demissão após seu editor vetar um artigo crítico. A página eletrônica Yellow Times foi retirada da internet após exibir imagens de prisioneiros de guerra e de vítimas civis iraquianas. O servidor que hospedava o sítio alegou que “nenhum canal de TV dos EUA permite a emissão dessas imagens”. O famoso correspondente de guerra Peter Arnett foi demitido da emissora NBC depois de conceder uma entrevista à televisão iraquiana, criticando a estratégia militar dos EUA [20].

A manipulação midiática, que iludiu milhões de pessoas no planeta, foi monitorada diretamente pelo Pentágono, como atesta o documento “Mapa do caminho sobre operações de informação”, assinado pelo secretário de Defesa Donald Rumsfeld. Ele deixa explícito que não haveria limites na guerra de propaganda e que seriam lançadas inúmeras “operações psicológicas” (psy-ops, em inglês). Entre outras medidas, o plano previa “a manipulação do pensamento do adversário” e “o ataque às redes de comunicação do inimigo”. “Devemos melhorar a nossa capacidade de ataque eletromagnético... As mensagens das psy-ops serão difundidas com freqüência pelos meios de comunicação para as maiores audiências, incluindo o público norte-americano” [21].

Antes mesmo da invasão, o New York Times informou que o Escritório de Influência Estratégica (OSI) do Pentágono desenvolvera “planos para fornecer informações, possivelmente até algumas falsas, para meios de comunicação estrangeiros no esforço para influenciar o sentimento público e os formuladores de políticas tanto em países aliados como inimigos”. Oficiais do 4º Esquadrão de Fort Bragg, especializados em operações psicológicas, trabalharam diretamente nas sedes da CNN e da AOL, adestrando inúmeros jornalistas. O coronel Christopher John, comandante do 4º Esquadrão, defendeu “a maior cooperação entre as Forças Armadas e os gigantes da mídia”. A mídia participou, “de maneira orgânica”, na campanha de informação e contra-informação [22].

Cúmplice da crise capitalista mundial

Mas não é somente nas guerras que a mídia cumpre papel nefasto. Ela também foi culpada pela ampla difusão dos valores destrutivos do neoliberalismo, que devastou o mundo a partir dos anos oitenta, jogando milhões de seres humanos no desemprego e na barbárie, e que acelerou a grave crise atual do capitalismo. Os aparatos de comunicação foram os responsáveis pela fabricação de consensos sobre a pretensa superioridade do mercado, pregando a desregulamentação financeira, as privatizações, a redução do papel do Estado nas áreas sociais e como indutor da economia, a “reengenharia” das empresas, com seus programas de demissões e precarizaçao do trabalho, etc.

As vozes críticas à ofensiva neoliberal simplesmente foram excluídas ou neutralizadas nos meios de comunicação. Conforme aponta o jornalista Pascual Serrano, com base em estudos realizados na Europa, a mídia “silenciou os especialistas críticos. Cada cidadão pôde comprovar como, em seu país, os analistas que alertaram sobre o risco das políticas de especulação e descontrole financeiro foram ignorados nos grandes meios... Muitos especialistas advertiram, mas foram impedidos de acessar a opinião pública. Também as organizações sociais que criticaram a deriva financeira foram ignoradas pelos meios de comunicação” [23].

Economistas heterodoxos, keynesianos ou marxistas, foram banidos da televisão, rádios, revistas e jornais. Agentes do “mercado”, especuladores convictos, passaram a dar a tônica no noticiário econômico, reforçando o “pensamento único neoliberal”. As corporações midiáticas, várias delas associadas ao capital financeiro, aproveitaram-se do boom especulativo para iludir os incautos e auferir altos rendimentos. As vozes críticas ao “deus-mercado” foram censuradas, inclusive no cinema. O premiado filme “Tiros em Columbine”, de Michael Moore, que denunciou o mercado de armas nos EUA, foi sabotado pela cadeia Blockbuster, pertencente ao conglomerado Viacom, que não comercializou o vídeo e o DVD em suas 8.500 lojas espalhadas em 29 países.

Para difundir seus dogmas, a mídia inclusive adulterou o sentido de certas palavras. Como afirma o sociólogo Atílio Boron, “em vastos territórios do globo a palavra ‘reforma’ foi exitosamente usada para designar o que qualquer análise minimamente rigorosa não vacilaria em qualificar de ‘contra-reforma’. As propaladas ‘reformas’ se materializaram em políticas tão pouco reformistas como o do desmantelamento da seguridade social, a redução dos investimentos sociais, o corte de verbas para saúde, educação e habitação, a legalização do controle oligopólico da economia” [24].

Agora, diante da crise mundial detonada pelo neoliberalismo, ela esconde a sua culpa e ainda faz terrorismo midiático para justificar novos ataques aos direitos dos trabalhadores, o que confirma a tese da escritora Naomi Klein de que o capitalismo encara os “acontecimentos catastróficos como estimulantes oportunidades de mercado”. Foi o próprio Milton Friedman, mentor das idéias neoliberais, que argumentou que as crises seriam propícias ao “tratamento de choque econômico. Desde então, sempre que os governos decidem impor programas radicais de livre mercado, o tratamento de choque imediato, ou a ‘terapia de choque’, tem sido o seu método preferido” [25].

NOTAS

15- José Arbex Jr. O jornalismo canalha. Editora Casa Amarela, RJ, 2003.

16- Jeremy Scahill. Blackwater. A ascensão do exército mercenário mais poderoso do mundo. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2008.

17- David Brooks e Jim Cason. “Medios eletctrónicos estadunidenses, outra columna bélica”. Jornal La Jornada, abril de 2003.

18- Argemiro Ferreira. “Outra vergonha: a mídia sobre Powell”. Maiores detalhes sobre os crimes dos EUA estão no livro O império contra-ataca. Editora Paz e Terra, São Paulo, 2004.

19- Em janeiro de 2008, a ONG “Integridade Pública” divulgou levantamento com 935 mentiras alardeadas por George Bush e outros sete altos funcionários de seu governo.

20- “Guerra ao Iraque: manipulação e censura de informações”. Sítio Oficina Informa, 07/04/03.

21- “Les plans du Pentagone pour contrôler l’information”. Sítio Voltairenet, 02/02/06.

22- Roberto Della Santa Barros. “Informação e contra-informação”. Sítio do PSTU, 09/02/06.

23- Pascual Serrano. “Los medios e la crisis mundial”. Exposição apresentada no Fórum Mundial de Mídia Livre em Belém do Pará, em janeiro de 2009.

24- Atílio Boron. Império e imperialismo. Uma leitura crítica de Michael Hardt e Antonio Negri. Clacso, Buenos Aires, 2002.

25- Naomi Klein. A doutrina do choque. A ascensão do capitalismo de desastre. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2008.


- Extraído do primeiro capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado em julho passado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Os interessados em adquirir o livro podem entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico – livro@vermelho.org.br

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Mídia e lógica destrutiva do capital (2)

Mas, apesar da violenta concorrência, os impérios midiáticos se unem na defesa dos interesses de classe da burguesia. Como empresas capitalistas, elas defendem o destrutivo padrão de produção e consumo do capitalismo. Através das sofisticadas técnicas publicitárias, que seduzem e forjam comportamentos, elas estimulam o consumismo e procuram fixar a supremacia do “deus-mercado”, visando aumentar os lucros e superar os concorrentes. As estratégias de marketing, inclusive, já agregam valor à cadeia produtiva. “O público, além de introjetar valores dessa indústria, assiste à contaminação da cultura do espírito e da cultura popular pela anódina cultura de massas” [8].

Como alerta Frank Mazoyer, as modernas técnicas publicitárias estimulam o consumo doentio e são culpadas por várias anomalias e tragédias humanas. “Trata-se de um assédio ao pensamento para introduzir uma lista ‘ideal’ de reflexos condicionados. O prazer, daqui para frente, terá de passar pelo consumo”. Os produtos são embalados pela mídia visando “satisfazer o narcisismo do consumidor”, trazer-lhe segurança emocional, dar-lhe um sentimento de poder, imortalidade, autenticidade e de criatividade. Tudo é feito para atrair o potencial consumidor, principalmente para atingir o público infanto-juvenil. “Fala-se mesmo em psico-sedução infantil” [9].

“Graças a isso, crianças pobres bebem cada vez mais Coca-Cola e cada vez menos leite; o tempo de lazer vai se tornando o tempo de consumo obrigatório. Tempo livre; tempo prisioneiro: casas muito pobres não têm cama, mas têm televisão, e a TV está com a palavra... As mercadorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos. A cultura do consumo, a cultura do efêmero, condena tudo à descartabilidade midiática. Tudo muda no ritmo vertiginoso da moda, colocada a serviço da necessidade de vender... As mercadorias, fabricadas para não durar, são tão voláteis quanto o capital que as financia e o trabalho que as gera”, alerta o escritor Eduardo Galeano [10].

A mídia tem papel na própria mobilidade do capital. A agência Reuters, com seus escritórios em 94 países, envia informações atualizadas oito mil vez por segundo para 511 mil usuários. O seu acervo digital inclui três bilhões de dados sobre mais de 40 mil empresas, 244 bolsas de valores e 960 mil ações e títulos. Na fase do tsunami neoliberal, a defesa do “deus-mercado” ficou mais depravada e a mídia foi fundamental para legitimar os dogmas do desmonte do Estado, da nação e do trabalho, transformando-os no discurso hegemônico. Não há qualquer preocupação com o conteúdo da mensagem, com sua qualidade. A única obsessão é com a lucratividade.

Por isso, a mídia dá absoluta prioridade à informação-espetáculo, à informação-entretenimento – à “informação-lixo”, segundo Ramonet. Ela não está preocupada com a cultura ou a informação para os cidadãos, mas em vender cidadãos aos anunciantes. Ou, nas palavras de Osvaldo León, o que prevalece é uma mídia “concentrada e regida por critérios exclusivamente comerciais. Os critérios são da rentabilidade acima do interesse público e do paradigma do consumidor acima do cidadão. Neste contexto, o risco de que a ‘ditadura do mercado’ se consolide a partir deste enorme poder, para ganhar ‘corações e mentes’ das pessoas, não é uma mera fantasia” [11].

Instrumento da expansão imperialista

Além disso, as corporações midiáticas representam os interesses das suas burguesias de origem. Apesar da retórica publicitária sobre o “mundo sem fronteiras”, elas lutam pela expansão de seus impérios e, como efeito, de seus negócios. Relatório recente de uma Comissão Especial da ONU revelou que 85% das notícias que circulam pelo planeta são geradas nos EUA [12]. A CNN, por exemplo, transmite por satélites e cabos, a partir da sua matriz em Atlanta, notícias 24 horas por dia para 240 milhões de residências em 200 países e mais 86 milhões de lares nos EUA, e nunca escondeu que sua orientação editorial serve aos interesses estratégicos do “império do mal”.

As potências capitalistas têm plena noção do enorme poder da mídia. Os EUA aplicam no setor de 3,5% a 5,2% do seu Produto Interno Bruto (PIB). Como confessou David Rothkopf, diretor-geral da Kissinger Associates, “o objetivo central da política externa na era da informação deve ser o de ganhar a batalha dos fluxos de informação mundial, dominando suas ondas, da mesma forma como a Grã-Bretanha reinava antigamente sobre os mares”. Várias instâncias do império, como o Departamento de Estado, Departamento de Defesa, Fundo Nacional para a Democracia (NED), Agência Internacional para o Desenvolvimento (Usaid) e o Conselho de Radiodifusão (BBG), bancam programas de financiamento para jornalistas e veículos em mais de 70 nações.

“Estes programas mantêm centenas de ONGs, jornalistas, veículos e faculdades de jornalismo. O tamanho do aporte se estende a bilhões de dólares... Em dezembro de 2007, o Centro para Ajuda Internacional dos Meios (Cima), repartição do Departamento de Estado financiada pelo NED, informou que em 2006 a Usaid distribuiu US$ 53 milhões em atividades de desenvolvimento da mídia estrangeira... O governo dos EUA é o maior provedor de fundos para estes veículos no mundo inteiro, havendo destinado mais de US$ 82 milhões em 2006, sem incluir o dinheiro do Pentágono, da CIA e das embaixadas dos EUA. Para complicar o quadro, ONGs estrangeiras e jornalistas recebem fundos por outras fontes de financiamento do governo dos EUA” [13].

No caso do Departamento de Estado, ele financia a mídia estrangeira através de várias oficinas, incluindo a de Assuntos Educacionais e Culturais (BECA), de Inteligência e Investigação (INR), de Direitos Humanos e Trabalho (DRL) e de Diplomacia Pública e Assuntos Públicos (OPDPA). Em 2006, o DRL recebeu quase US$ 12 milhões para o “desenvolvimento do jornalismo”. Em 1999, o Conselho de Radiodifusão (BBG) se converteu numa agência federal independente. Até 2006, ele recebeu US$ 650 milhões em subsídios carimbados do orçamento federal.

Jornalistas ou mercenários da CIA?

Além do programa Voz da América, o BBG opera várias outras estações de rádio e televisão. A Alhurra, com sede na Virginia, “é uma rede comercial livre de televisão via satélite em língua árabe para o Oriente Médio”, segundo o seu sítio. Ela já foi descrita pelo Washington Post como “o maior esforço do governo dos EUA para sacudir a opinião estrangeira desde a criação da Voz da América em 1942”. O BBG banca ainda a Rádio Sawa, dedicada à juventude árabe; a Rádio Farda, transmitida ilegalmente no Irã; e a Rádio Ásia Livre, com programação para toda a Ásia. O BBG ficou famoso por financiar a Rádio e TV Martí, com custos de US$ 39 milhões em 2008, segundo a Justificativa do Orçamento para as Operações Estrangeiras do Congresso dos EUA.

Já a Usaid banca o programa Investigação Internacional e Sustentação de Intercâmbios (Irex) e a rede Internews Network. Segundo seu sítio, o Irex é um organismo mundial que “trabalha com sócios locais para melhorar o profissionalismo e a sustentação econômica de jornais, rádios, estações de TV e redes da internet”. Seu balanço revela que ele promoveu em 2006 cursos “para mais de 100 jornalistas” e que seus 400 funcionários dão consultas e despacham programas para mais de 50 países. Já a rede Internews, criada em 1982, concentra suas atividades em países do ex-bloco soviético e já foi acusada de desestabilizar governos locais. Em maio de 2003, Andrew Natsions, ex-chefão da Usaid, descreveu a Internews como “um braço do governo dos EUA”.

Neste sentido, não surpreende que várias corporações midiáticas mantenham históricos vínculos com a CIA, a central de espionagem e terrorismo dos EUA. Em meados dos anos 1970, no rastro da investigação do escândalo de Watergate, duas comissões parlamentares, encabeçadas pelo senador Frank Church e pelo deputado Otis Pike, revelaram que ela financiava jornais, revistas, rádios e emissoras de TV, além de corromper jornalistas. Vários destes veículos, como o chileno El Mercurio, tiveram participação ativa em golpes sangrentos. Em junho de 2007, a própria CIA foi obrigada a divulgar documentos até então classificados de ultra-secretos e apelidados de “jóias da família”. O arquivo, com 11 mil páginas, revelou algumas destas relações promíscuas.

Muitas destas ações são detalhadas no livro recém-lançado “Um legado de cinzas”, do jornalista Tim Weiner. Desde a sua criação, em 1947, a CIA sempre priorizou a mídia, “cultivando os mais poderosos editores e homens de TVs e rádios e cortejando colunistas de jornais”. Allen Dulles, o mentor da agência, “mantinha contato estreito com os homens que dirigiam o New York Times, o Washington Post e as principais revistas semanais da nação. Podia pegar o telefone e editar um furo de reportagem, assegurar-se de que um correspondente estrangeiro irritante fosse afastado, ou contratar serviços de homens como o chefe do escritório da Time em Berlim e da Newsweek em Tóquio... Allen Dulles construiu uma máquina de relações públicas e propaganda que chegou a incluir mais de cinqüenta organizações de notícias e uma dúzia de editoras” [14].

NOTAS

8- Alcione Araújo. “Esquizofrenia na educação e cultura”. Folha de S.Paulo, 04/08/2006.

9- Frank Mazoyer. “A irresistível perversão da compra”. Le Monde Diplomatique, dezembro de 2000.

10- Eduardo Galeano. “O império do consumo”. Agência Carta Maior, 17/01/2007.

11- Osvaldo León. “Democratização das comunicações e da mídia”. Alainet, janeiro de 2002.

12- Pedro de Oliveira, “A propaganda como fenômeno sociológico. Portal Vermelho, fevereiro de 2003.

13- Jeremy Bigwood. “Periodismo en EEUU: financiar prensa para comprar influencia”. Portal Aporrea, junho de 2008.

14- Tim Weiner. Legado de cinzas. Uma história da CIA. Editora Record, RJ, 2008.


• Extraído do primeiro capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado em julho passado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Os interessados em adquirir o livro podem entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico – livro@vermelho.org.br

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

“Ditadura da mídia” no Brasil e no mundo

Estarei em férias até final de janeiro. Neste período, para manter atualizada esta “trincheira de luta”, reproduzirei os capítulos do livro “A ditadura da mídia”. Publicado em julho passado pela Associação Vermelho e pela Editora Anita Garibaldi, o livro alcançou 10 mil exemplares de tiragem e obteve comentários e resenhas dos professores Venício A. de Lima e Laurindo Lalo Leal Filho, dos jornalistas Renato Rovai (Revista Fórum), Flávio Aguiar (Agência Carta Maior) e Maurício Dias (revista CartaCapital) e do ex-ministro José Dirceu, entre outros.


Poder mundial a serviço do capital e das guerras


“Não se preocupem. Não queremos controlar o mundo. Só queremos um pedaço dele”.
Rupert Murdoch, dono do império midiático News Corporation, presente em 133 países.


“A CIA tem o direito legítimo de se infiltrar na imprensa estrangeira. Ela tem a missão de influir, através dos meios de comunicação, no desenlace dos fatos políticos em outros países”. Willian Colby, ex-diretor geral da agência de inteligência dos EUA.


Os “donos da mídia” detêm hoje um poder descomunal, sem precedentes na história. Passou-se o tempo das ilusões sobre este setor, que no passado chegou a ser batizado de “quarto poder” pelo papel desempenhado na fiscalização dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Atualmente, os impérios midiáticos, que unem informação, entretenimento e cultura, e concentram inúmeros veículos – jornais, revistas, emissoras de televisão, rádios, internet, etc. –, colocam-se acima de leis e constituições, atacam os movimentos sociais e os governos progressistas e tentam sabotar a democracia. Na prática, desempenham o papel de uma verdadeira ditadura midiática, sendo um entrave a qualquer projeto de emancipação da humanidade, de superação da barbárie capitalista.

A mídia hegemônica – outrora chamada de imprensa burguesa na justa crítica dos marxistas [1] – sempre foi um obstáculo à luta dos trabalhadores. Mas, na fase mais recente, com o aumento da concentração no setor, as mutações tecnológicas e a desregulamentação da comunicação imposta pelo neoliberalismo, ela reforçou o seu papel de “partido do capital”, conforme a clássica síntese de Antonio Gramsci. Para o diretor do jornal Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet, “nos últimos quinze anos, à medida que se acelerava a globalização neoliberal, esse ‘quarto poder’ se viu esvaziado de sentido, perdendo, pouco a pouco, sua função fundamental de contrapoder [2]”.

Como afirma o professor Dênis de Moraes, a mídia tem hoje um duplo papel. Como instrumento ideológico, que nada tem de neutra ou imparcial, ela é a principal apologista do “deus-mercado”. Como poderosa empresa capitalista, ela busca apenas elevar os lucros. “As corporações da mídia projetam-se, a um só tempo, como agentes discursivos, com uma proposta de coesão ideológica em torno da globalização, e como agentes econômicos proeminentes nos mercados mundiais, vendendo os próprios produtos e intensificando a visibilidade dos seus anunciantes. Evidenciar esse duplo papel parece-me decisivo para entender a sua forte incidência na atualidade” [3].

A brutal concentração no setor

O processo de concentração na mídia, intrínseco à lógica monopolista do capital, atinge hoje seu ápice. Segundo o professor Robert McChesney, “o mercado global é dominado por uma primeira camada de cerca de dez imensos conglomerados... Eles têm ações em diversos setores da mídia e operam em todos os lugares do mundo. Existe uma segunda camada onde estão cerca de quarenta empresas que giram em torno deste sistema global. A maioria provém da Europa Ocidental ou da América do Norte, mas algumas são da Ásia e América Latina”. Elas estão entre as 300 maiores empresas não-financeiras do mundo e tiveram um crescimento recorde na década passada [4].

Dênis de Moraes, no texto citado, é mais direto: “A mídia global está nas mãos de duas dezenas de conglomerados, com receitas entre US$ 8 bilhões e US$ 40 bilhões. Eles veiculam dois terços das informações e dos conteúdos culturais disponíveis no planeta. São proprietários de estúdios, produtoras, distribuidoras e exibidoras de filmes, gravadoras de discos, editoras, parques de diversões, TVs abertas e pagas, emissoras de rádio, revistas, jornais, serviços online, portais e provedores de internet... AOL-Time Warner, Viacom, Disney, News, Bertelsmann, NBC-Universal, Comcast e Sony, as oito principais no ranking da mídia e do entretenimento, têm idênticas pretensões de domínio: estar em toda parte, a qualquer preço, para exercer hegemonia”.

Nos EUA, principal potência imperialista do capitalismo contemporâneo, sempre predominou o monopólio privado neste setor. Até os anos 1980, cerca de 70% da audiência da televisão era dominada por três redes nacionais – NBC, CBS e ABC; já as telecomunicações eram controladas pela AT&T. Como afirma o jornalista Carlos Lopes, esta nação inaugurou o processo de fusão da mídia com os conglomerados financeiros e indústrias. “O secretário do interior de Roosevelt, Harold Ickes – por sinal, um republicano – acrescentou, em 1934, um dado significativo: 82% dos jornais dos EUA eram monopólios, com um ínfimo número de proprietários. Ele poderia ter acrescentado que as ligações desse punhado de monopolistas da imprensa (Hearst, Luce e assemelhados) com seus colegas de bancos e grandes empresas (Morgan, Rockfeller, Dupont, etc.) eram mais do que estreitas. Na verdade, elas eram a mesma coisa” [5].

A partir de 2002, com a extinção das regras contrárias à propriedade cruzada e à cartelização do setor, esse processo monopolista foi agravado e a situação atual da mídia nos EUA enterra de vez o mito da “pátria da democracia”. A AOL abocanhou a Netscape, a revista Time, a produtora Warner e a rede CNN. A GE, após engolir a NBC, garfou a Universal, dona da maior gravadora de disco e do segundo maior estúdio de cinema do mundo. A Microsoft, de Bill Gates, impera no setor de software. A News Corporation, de Rupert Murdoch, devorou inúmeros jornais (The Times, The New York Post, The Wall Street Journal), a emissora Fox, além de uma gigante produtora de seriados e filmes, a Twenty Century Fox. Somente em 2003, ocorreram mais de 460 fusões e aquisições de empresas da mídia nos EUA, movimentando cerca de US$ 36 bilhões.

“Nas mãos dos mercadores de canhões”

O mesmo fenômeno monopolista vitimou a Europa, sabotando sua rede pública e outros avanços democráticos conquistados com derrota do nazi-fascismo. Na Itália, a mídia hoje é dominada por dois conglomerados. O fascista Silvio Berlusconi controla as três principais redes privadas de TV e, como primeiro-ministro, manipula os três canais públicos da RAI. Já a corporação da família Agnelli, dona da montadora Fiat, domina o maior grupo editorial do país, Rizzoli-Corriere della Sera (RCS), que publica uma centena de jornais e revistas. Na Espanha, o grupo Prisa comanda o jornal El País, uma poderosa cadeia de rádios (SER), uma emissora de TV e a principal rede de editoras do país. No Reino Unido, a quebra do monopólio público da BBC permitiu a formação de um consórcio de quatro canais privados, a ITV.

O caso mais assustador é o da França, onde os donos da mídia estão ligados à indústria bélica. O grupo Dassault, do direitista Serge Dassault, dirige o jornal Le Fígaro, o semanário L’Express e outros 14 títulos; já o grupo Lagardère domina a maior editora, o setor de revistas e a distribuição de jornais. “Esses dois grupos apresentam em comum a inquietante particularidade de se terem constituído em torno de uma empresa-mãe cuja principal atividade é militar (aviões de combate, helicópteros, mísseis e satélites). Realiza-se, portanto, a velha e temida profecia: alguns dos maiores veículos de comunicação estão, atualmente, nas mãos de mercadores de canhões” [6].

Na disputa pelo mercado, estas corporações se digladiam e têm as suas contradições. O magnata Rupert Murdoch avança na região asiática, produzindo programas de televisão para 240 milhões de pessoas. Temendo o avanço da produção européia, a Disney se associou à alemã Bertelsmann. Já o grupo Prisa cobiça a América Latina. Segundo seu executivo, Juan Cebrián, a mesma língua é “um instrumento fantástico na hora de atingir o mercado de 400 milhões de pessoas”. A guerra entre as empresas de radiodifusão e as operadoras de telecomunicações, decorrente do acelerado processo de convergência digital, torna esta disputa de mercado ainda mais encarniçada.

Há uma forte tendência para a fusão entre comunicações, telecomunicações e entretenimento. A Telefônica da Espanha já investe na mídia e na internet, a Sony produz música online e a Disney atua na telefonia celular em parceria com a operadora japonesa NTT. “Se pensarmos em música digital, televisão interativa, serviço de banda larga e redes domiciliares, veremos que estamos no centro de tudo”, gaba-se Gerald Levin, executivo da AOL-Time Warner. Jean-Marie Messier, da Vivendi-Universal, defende que “é essencial agregar os conteúdos baseados em alta tecnologia, sobretudo os da internet, aos nossos serviços e produtos. A combinação de conteúdos, de meios de difusão e de produtos afins nos dá uma vantagem considerável perante os concorrentes” [7].

NOTAS

1- Ver o artigo “Marx, Lênin, Gramsci e a imprensa” na página ??? deste livro.

2- Ignácio Ramonet. “O quinto poder”. Caminhos para uma comunicação democrática. Le Monde Diplomatique, São Paulo, 2007.

3- Dênis de Moraes. “A lógica da mídia no sistema de poder mundial”. Revista de Economia Politica de las Tecnologias de la Información y Comunicación. Maio/agosto de 2004.

4- Robert W. McChesney. “Mídia global, neoliberalismo e imperialismo”. Por uma outra comunicação. Dênis de Moraes (org.). Editora Record, Rio de Janeiro, 2005.

5- Carlos Lopes. “O caso Hiss e o macartismo: o golpismo fascista nos EUA”. Jornal Hora do Povo, 15/03/07.

6- Ignacio Ramonet. “Os novos imperadores da mídia”. Caminhos para uma comunicação democrática.

7- Dênis de Moraes. “O capital da mídia na lógica da globalização”. Por uma outra comunicação.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Direitos humanos não aparecem na TV

Na sua virulenta cruzada contra o Programa Nacional de Direitos Humanos, a mídia hegemônica utiliza novamente os batidos padrões de manipulação para salientar e omitir o que lhe interessa. Notórios direitistas, vinculados a torturadores, latifundiários e outras escórias da sociedade, são exibidos como “especialistas” em direitos humanos. Muitos não têm qualquer representatividade, mas ganham os holofotes nos telejornais, rádios e jornalões. Já os representantes dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais, vítimas da opressão, não são aparecem nas telinhas da TV.

Reproduzo abaixo três manifestações de apoio ao PNDH que simplesmente foram ignoradas pela mídia venal. A primeira é assinada pelas entidades populares mais expressivas do país, sediadas em São Paulo, como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Já a segunda é subscrita pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), um dos principais alvos da crueldade da ditadura militar. A última aborda a relação entre meios de comunicação e os direitos humanos e é firmada pelo respeitado Coletivo Intervozes.



“Em defesa da democracia e da verdade”

As entidades e militantes dos direitos humanos e da democracia de São Paulo juntam-se ao Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), rede que reúne cerca de 400 organizações de direitos humanos de todo o Brasil, para manifestar publicamente seu repúdio às muitas inverdades e posições contrárias ao III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), e seu apoio integral a este programa lançado pelo governo federal no dia 21 de dezembro de 2009.

Como o MNDH, entendemos que o PNDH 3, aprovado durante a 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos (2008), é um importante passo no sentido de o Estado brasileiro assumir a bandeira dos direitos humanos em sua universalidade, interdependência e indivisibilidade como política pública; expressa avanços na efetivação dos compromissos constitucionais e internacionais com direitos humanos; e resultou de amplo debate na sociedade e no Governo.

Por isto, nenhuma instância do governo federal pode alegar ter conhecido esse programa somente depois do ato do seu lançamento público no dia 21 de dezembro e, menos ainda, afirmar que o assinou sem haver lido, sob pena de mentir no primeiro caso e, no segundo, de acrescentar à mentira um atestado de irresponsabilidade.

As reações contra o PNDH 3 estão cheias de conhecidas motivações conservadoras, além de outras que, pela sua própria natureza, são inconfessáveis em público pelos seus defensores. Estas resistências, claramente explicitadas ou não ao PNDH 3, provam que vários setores da sociedade brasileira ainda se recusam a tomar os direitos humanos como compromissos efetivos tanto do Estado, quanto da sociedade e de cada pessoa.

É falso o antagonismo que se tenta propor ao dizer que o programa atenta contra direitos fundamentais, visto que o que propõe tem guarida constitucional, além de assentar seus alicerces no que é básico para uma democracia, e que quer a vida como um valor social e político para todas as pessoas, até porque, a dignidade da pessoa humana é um dos princípios fundamentais de nossa Constituição e a promoção de uma sociedade livre, justa e solidária é o objetivo de nossa Carta Política.

Há setores que estranham que o programa seja tão abrangente, trate de temas tão diversos. Ignoram que, desde há muito, pelo menos desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, direitos humanos são muito mais do que direitos civis e políticos. Vários tratados, pactos e convenções internacionais articulam o que é hoje conhecido como o Direito Internacional dos Direitos Humanos, que protege direitos de várias dimensões: civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, ambientais, de solidariedade, dos povos, entre outras.

Desconhecem também que o Brasil, por ter ratificado a maior parte destes instrumentos, é obrigado a cumpri-los, inclusive por força constitucional, e que está sob avaliação dos organismos internacionais da ONU e da OEA que, por reiteradas vezes, através de seus órgãos especializados, emitem recomendações para o Estado brasileiro – entre as quais, as mais recentes são de maio de 2009 e foram emitidas pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU.

Aliás, não é novidade esta ampliação, visto que o II Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 2, de 2002) já previa inclusive vários dos temas que agora são reeditados, e a primeira versão do PNDH (1996) fora criticada e revisada exatamente por não contemplar a amplitude e complexidade que o tema dos direitos humanos exige. Por isso, além de conhecimento, um pouco de memória histórica é necessária a quem pretende informar de forma consistente a sociedade.

Em várias das manifestações e inclusive das abordagens publicadas, há claro desconhecimento (além dos que apenas fingem desconhecer) do que significa falar de direitos humanos. Talvez seja por isso que, entre as recomendações dos organismos internacionais, está a necessidade de o Brasil investir em programas de educação em direitos humanos, para que o conhecimento sobre eles seja ampliado pelos vários agentes sociais. Um dos temas que é abordado no PNDH 3, e que poderia merecer mais atenção dos críticos e demais cidadãos.

O PNDH 3 resulta de amplo debate na sociedade brasileira e no governo. Fatos atestam isso! Durante o ano de 2008, foram realizadas 27 conferências estaduais que constituíram amplo processo coletivo e democrático, coroado pela realização da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, em dezembro daquele ano. Durante 2009, um grupo de trabalho coordenado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) procurou traduzir as propostas aprovadas pela Conferência no texto do PNDH 3. O MNDH e suas entidades filiadas, além de outras centenas de organizações, participaram ativamente de todo o processo.

Há outros seis meses, desde julho do ano passado, o texto preliminar está disponível na internet para consulta e opinião. Internamente no governo, o fato de ter sido assinado pela maioria dos Ministérios – inclusive o Ministério da Agricultura – é expressão inequívoca da amplitude do debate e da participação coletiva que presidiu sua construção. É claro que, salvas as consultas, o texto publicado expressa a posição que foi pactuada pelo governo. Nem tudo o que está no PNDH 3 é o que as exigências mais avançadas da agenda popular de luta por direitos humanos esperam. Contém, sim, propostas polêmicas e, em alguns casos, não bem formuladas.

Todavia, considerando que é um documento programático, ou seja, que expressa a vontade de realizar ações em várias dimensões, tem força de orientação da atuação nos limites constitucionais e da lei, mesmo quando propõe a necessidade de revisão ou de alterações de algumas legislações. A título de esclarecimento, é prerrogativa da sociedade e do poder público propor ações e modificações, tanto de ordem programática quanto legal. Por isso, não deveria ser estranho que contenha propostas de modificação de algumas legislações. Assim que, alegar desconhecimento do texto ou mesmo que não foi discutido, é uma postura que ignora ou finge ignorar o processo realizado. É diferente dizer que se tem divergências em relação a um ou outro ponto do texto, de se dizer que o texto não foi discutido, ou que não esteve disponível para conhecimento público.

Juntamente ao MNDH, ainda que explicitando alguns outros detalhes que envolvem a integralidade do PNDH 3, nós, organizações, movimentos e militantes de São Paulo, entendemos que as reações veiculadas pela grande mídia comercial, com origem, em sua maioria, nos mesmos setores conservadores de sempre, devem ser tomadas como expressão de que o programa tocou em temas fundamentais e substantivos, que fazem com que caia a máscara anti-democrática destes setores.

Estas posições põem em evidência para toda a sociedade as posturas refratárias aos direitos humanos, ainda lamentavelmente tão disseminadas, e que se manifestam no patrimonialismo – que quer o Estado exclusivamente a serviço de interesses dos setores privados; no apego à propriedade privada – sem que seja cumprida a exigência constitucional de que ela cumpra sua função social; no revanchismo de setores civis e militares – que insistem em ocultar a verdade sobre o período da ditadura militar e em inviabilizar a memória como bem público e direito individual e coletivo; na permanência da tortura – mesmo que condenada pela lei; na impunidade – que livra “colarinhos brancos” e condena “ladrões de margarina”; no patriarcalismo – que violenta crianças e adolescentes, e serve de alicerce para o machismo – que mantém a violência contra a mulher e sua submissão a uma ordem que lhes subtrai o direito de decisão sobre seu próprio corpo (como o direito ao aborto), lhes impõe salários sempre menores que os dos homens, ou a situações de violência em sua própria casa; no racismo – que discrimina negros, indígenas, ciganos e outros grupos sociais; nas discriminações contra outras orientações sexuais que não sejam apenas a heterossexualidade (considerada o único padrão de “normalidade” em termos sexuais) – estigmatizando a homossexualidade (masculina ou feminina), a bissexualidade, os travestis ou transexuais, e todas as demais manifestações de homoafetividade – o que impede o reconhecimento dos casamentos, ligações e constituição de famílias fora das “normas” (atualizadas ou não) do velho patriarcado supostamente sempre heterossexual, monogâmico e monândrico; na falta de abertura para a liberdade e diversidade religiosa – que impede o cumprimento do preceito constitucional da laicidade do Estado; no elitismo – que se traduz na persistência da desigualdade em nosso País como uma das piores do mundo e, enfim, na criminalização da juventude e da pobreza, e na desmoralização e criminalização de movimentos sociais e de defensores de direitos humanos.

Como o MNDH, repudiamos também a tentativa de partidarização e eleitoralização do PNDH 3. O programa pretende ser uma política pública (e pelo público foi gerado) de Estado, e não de candidato; não pertence a um partido, mas à sociedade brasileira e, portanto, não cabe torná-lo instrumento de posicionamentos maniqueístas. Não faz qualquer sentido pretender que o PNDH 3 tenha pretensões eleitorais ou mesmo que pretenda orientar o próximo governo. Quem dera que direitos humanos tivessem chegado a tamanha importância política e fossem capazes de, efetivamente, ser o centro dos compromissos de qualquer candidato e de qualquer governo. Mas compromisso para valer, e não apenas um amontoado de frases demagogicamente esgrimidas nos palanques eleitorais.

Assim, nós – de São Paulo, do mesmo modo que o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), reiteramos a manifestação, publicada em nota no último 31/12/2009, na qual se afirma que cobramos “uma posição do governo brasileiro, que seja coerente com os compromissos constitucionais e com os compromissos internacionais de promoção e proteção dos direitos humanos. O momento é decisivo para que o país avance em direção de uma institucionalidade democrática mais profunda, que reconheça e torne os direitos humanos, de fato, conteúdo substantivo da vida cotidiana de cada um/a dos/as brasileiros e brasileiras”.

Manifestamos nosso apoio integral APOIO ao PNDH 3, pois entendemos que o debate democrático é sempre o melhor remédio para que a sociedade possa produzir posicionamentos que sejam sempre mais coerentes e consistentes com os direitos humanos. Ao mesmo tempo, rejeitamos posições e atitudes oportunistas que, desde seu descompromisso histórico com os direitos humanos, tentam inviabilizar avanços concretos na agenda, que. quer a realização dos direitos humanos na vida de todas e de cada uma das brasileiras e dos brasileiros.

Juntamente com o MNDH, também manifestamos nosso apoio integral ao ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, e entendemos que sua permanência à frente da SEDH neste momento só contribui para reforçar o entendimento de que o PNDH 3 veio para valer. Entendemos ainda que, se alguém tem que sair do governo, são aqueles ministros – entre os quais o da Defesa, senhor Jobim, e o da Agricultura, senhor Stephanes) – ou quaisquer outros prepostos que, de forma oportunista e anti-democrática, vêm contribuindo para gerar as reações negativas e conservadoras ao que está proposto no PNDH 3.

Em suma, como organizações da sociedade civil, o MNDH e nós, que vivemos e militamos em São Paulo, estamos atentos e envidaremos todos os esforços para que as conquistas democráticas avancem sem qualquer passo atrás.

PNDH e o avanço democrático


O Partido Comunista do Brasil manifesta seu apoio ao Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), do governo federal, por entender que ele representa uma sistematização de importantes anseios democráticos que o país ainda necessita conquistar.

Tal Programa incorporou resoluções da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em Brasília, e de mais de 50 conferências temáticas realizadas desde 2003. A grande maioria de suas propostas deverá ser objeto de projetos de lei a serem amplamente discutidos no Congresso Nacional e por toda a sociedade. Mesmo assim ele tem sido objeto de críticas da grande imprensa e de certos setores da sociedade.

O ponto mais polêmico tem sido a proposta de criação de uma Comissão da Verdade. Tal Comissão terá dentre outros os objetivos de apurar a violação dos direitos humanos no período da ditadura militar; reconstituir a verdade histórica sobre este período; localizar e identificar os restos mortais dos desaparecidos políticos; revogar leis remanescentes do período 1964-1985 que sejam contrárias à garantia dos direitos humanos ou tenham dado sustentação a graves violações.

O Partido Comunista do Brasil defende um Projeto Nacional de Desenvolvimento com a afirmação da soberania nacional, da democracia, dos direitos sociais, da valorização do trabalho e da integração latino-americana. Neste projeto o Partido tem claro e valoriza o papel das Forças Armadas na Segurança Nacional, em particular em relação ao pré-sal e à Amazônia.

O destaque central que o Partido dá à questão nacional não significa, no entanto, deixar de lado as demais questões que compõem um Projeto Nacional de Desenvolvimento e que atenda à grande maioria da nação, em particular a questão democrática.

A nação brasileira tem o direito de conhecer a verdadeira história do país e não somente uma parte dela. Necessita conhecer melhor o golpe proferido contra as instituições democráticas no país em 1964, instituindo uma ditadura militar e rasgando a Constituição brasileira. Este regime foi responsável por graves atentados aos direitos humanos. Não há como avançar no terreno democrático sem que estas questões sejam suficientemente esclarecidas.

Várias nações latino-americanas já constituíram Comissões da Verdade, como na Argentina, Chile, El Salvador, Guatemala e Peru, numa demonstração evidente da importância que este tema passou a ter em nosso continente, como decorrência do período ditatorial vivido por quase todos os países latino-americanos.

O argumento daqueles que se manifestam contra a criação da Comissão da Verdade é de que em havendo julgamento dos torturadores, deveria haver também julgamento daqueles que cometeram atos de violência na luta contra a ditadura. Trata-se de um argumento absurdo e inconsistente de quem quer encobrir a verdade dos fatos. É tentar igualar o agressor ao agredido. Uma situação diz respeito aos torturadores que se utilizaram do aparelho de Estado para matar, torturar e praticar os mais hediondos crimes contra os direitos humanos. Outra diz respeito àqueles que se levantaram contra esta situação e que foram vítimas das prisões ilegais, tortura, sendo que muitos foram mortos, viveram anos na clandestinidade ou no exílio. Estes já foram julgados.

Além do mais, a Constituição brasileira considera que a tortura é um crime inafiançável e insusceptível de graça ou anistia. A Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. Várias convenções internacionais consideram a tortura como um crime de lesa humanidade e, como tal, imprescritível.

O Partido Comunista do Brasil defende esta posição não como uma atitude revanchista, mas como a alternativa de uma verdadeira reconciliação nacional e como efetivo caminho de superação desta mancha que ficou na história do Brasil. Tentar ocultar os crimes contra os direitos humanos praticados no período da ditadura militar é um desserviço à democracia e à união do povo brasileiro para transformar este país numa nação forte, justa e democrática.

O direito humano à comunicação


O Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social manifesta o seu apoio ao III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), resultado de processo que contou com a participação de milhares de militantes, organizações da sociedade civil e instituições do poder público, em diálogo intenso que durou mais de dois anos e teve seu ápice na XI Conferência Nacional dos Direitos Humanos, realizada em Brasília (DF), em dezembro de 2008.

No tocante à comunicação, o Intervozes afirma o seu apoio às medidas previstas na diretriz 22, relativas ao tema, que visam à ampliação da garantia do direito à informação e à comunicação e à defesa dos direitos da população. Tais medidas não podem ser entendidas como ameaças à liberdade de expressão, como querem fazer entender recentes críticas públicas que buscam desqualificar as propostas.

A defesa da democracia e dos direitos humanos deve incluir, de um lado, a afirmação veemente do direito de todos e todas à liberdade de expressão e, de outro, a criação de mecanismos de responsabilidades ulteriores para aqueles veículos que praticarem violações a direitos humanos por meio de sua programação, especialmente os concessionários de serviços públicos de rádio e televisão. Liberdade de expressão não pode se confundir com carta branca para violações de direitos humanos. Assim como qualquer cidadão está sujeito a punições a posteriori caso pratique ou estimule violações de direitos humanos (por meio de manifestações racistas, por exemplo), os meios de comunicação estão sujeitos aos mesmos princípios.

Esse tipo de medida está em consonância com o que prevêem pactos e acordos internacionais ratificados pelo Brasil, tais como a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose, 1969), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Belém, 1994) e a Convenção Internacional para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (Durban, 2001). Está de acordo também com a Constituição Federal brasileira e a legislação do setor (em especial o artigo 52 do Código Brasileiro de Telecomunicações), além de já ser prevista desde a primeira versão do PNDH, publicada durante o governo FHC.

Diferentemente da grande maioria dos países de democracia avançada, o Brasil não tem hoje um órgão regulador que tenha incidência sobre o sistema de radiodifusão (rádio e televisão) e segue com frágeis e insuficientes mecanismos de monitoramento sobre a programação veiculada, com total dependência de ações do Ministério Público Federal. O aprimoramento desses mecanismos passa, necessariamente, pelo estabelecimento de critérios democráticos de análise, construídos em diálogo com todos os setores, seguindo o exemplo do processo realizado para definição de critérios de classificação indicativa.

Sem prejuízo de possíveis ajustes nos mecanismos específicos previstos, o que o PNDH-3 pauta acertadamente – e em consonância com o que aprovou a recém-realizada I Conferência Nacional de Comunicação – é a necessidade de estabelecer garantias para que o serviço público de radiodifusão cumpra, de fato, o interesse público. O Brasil não pode mais admitir a ocorrência de sistemáticas violações de direitos humanos no conteúdo exibido por emissoras que recebem concessões públicas, fato ainda hoje bastante comum.

Entendemos que as divergências sobre as proposições elencadas no PNDH-3 são naturais e o debate acerca das mesmas é extremamente necessário e saudável. Entretanto, não nos parece cabível que o Programa seja rotulado de peça autoritária e que represente um suposto sentimento de revanchismo ou uma forma de cerceamento de direitos de quem quer que seja. Estranhamos, sobretudo, que as críticas ao PNDH-3 estejam sendo vocalizadas justamente por atores políticos cujo histórico inclui a participação, a colaboração ou o apoio ao regime ditatorial vivenciado pela sociedade brasileira entre 1964 e 1985, e que agora se apresentam como defensores da democracia e do Estado de Direito.

Reafirmamos ainda o apoio aos processos participativos de construção de políticas públicas, como os que resultaram no PNDH-3. Por todo o exposto, esperamos que as medidas previstas no programa sejam efetivamente implementadas.