Esta opção de classe, neoliberal, vingou na primeira eleição direta para presidente pós-ditadura, em novembro de 1989. Temendo a vitória de Lula, o operário que se projetou nas greves contra o regime militar, a mídia cumpriu o papel de unificadora das elites, até então divididas entre vários postulantes. Ela fabricou a candidatura do “caçador de marajás”, Fernando Collor. A revista Veja e os jornalões deram várias capas ao inexpressivo oligarca nordestino e os meios de comunicação de massas trataram de difundir a sua imagem. Como dono da afiliada da TV Globo em Alagoas, Collor teve tratamento privilegiado na emissora, que massificou o mito do “caçador de marajás”.
Apesar de todo o marketing, Lula ainda chegou ao segundo turno, o que causou pânico na mídia. “As rotinas de fechamento nos jornais foram modificadas, assim como suas cadeias de comando. Os quadros de confiança afastaram jornalistas com alguma espinha dorsal e passaram a dirigir e fechar as páginas políticas como questão estratégica” [15]. A mídia inclusive divulgou grosseiras provocações, como a do seqüestro do empresário Abílio Dinis na véspera do segundo turno. Um seqüestrador surgiu nos telejornais com a camiseta do PT e depois foi comprovado que a polícia o forçou a colocar a roupa. O golpe fatal, porém, foi dado pelo Jornal Nacional da TV Globo, que fraudou a edição do último debate da televisão e reverteu a tendência de vitória de Lula.
Pouco tempo depois, quando Fernando Collor afundou na lama e colocou em perigo a aplicação do receituário neoliberal, a mídia não vacilou em descartá-lo, engrossando o coro das ruas pelo seu impeachment. Habilidosa, ela tratou de ofuscar os efeitos destrutivos do neoliberalismo e de limitar a campanha ao slogan da “ética na política” – logo ela que sempre se aliou aos políticos patrimonialistas. Na eleição seguinte, em 1994, novamente a mídia estava unida na campanha do “príncipe de Sorbonne”, o ex-ministro FHC. Segundo denúncia de Bernardo Kucinski, houve um “alinhamento natural dos proprietários dos grandes jornais com Fernando Henrique, tornando desnecessária a compra direta de jornalistas, como havia ocorrido na campanha de Collor”.
Sua campanha foi planejada com base nas técnicas publicitárias mais modernas, com a assessoria de James Carville, marqueteiro de Bill Clinton. Tudo foi feito para desqualificar o operário Lula, “analfabeto e despreparado”, e para fixar a imagem de FHC como “o pai do Real”, o responsável pelo fim da inflação. A imprensa sequer repercutiu as confissões do ministro Rubens Ricupero ao repórter da TV Globo, Carlos Monforte, que foram captadas por antenas parabólicas: “Eu não tenho escrúpulo. O que é bom a gente fatura, o que é ruim, a gente esconde”. A mídia também não teve qualquer escrúpulo para pavimentar as duas vitórias eleitorais do neoliberal FHC.
Durante seus dois mandatos, a mídia defendeu militantemente todas as medidas de desmonte do Estado, da nação e do trabalho. Ela apoiou as privatizações criminosas, a libertinagem financeira, a desnacionalização da economia e a flexibilização das leis trabalhistas. Demonstrando seu total oportunismo no tratamento da “ética na política”, ela não deu qualquer destaque às denúncias de corrupção contra o governo FHC, como na compra de votos para a sua reeleição ou no bilionário socorro aos banqueiros. Todas estas manipulações, porém, não evitaram o crescente desgaste do seu serviçal, que deixou o governo como um dos presidentes mais detestados da história do país.
Governo Lula e o ódio de classe
Diante da fadiga do “pensamento único” neoliberal e da iminente vitória de Lula, a mídia refinou sua tática. Na campanha presidencial de 2002, ela criou um clima de terrorismo para enquadrar o futuro governante. O “risco-Lula”, o retorno da inflação e a explosão do dólar foram manchetes nos jornais, revistas e emissoras de TV. Somente quando o candidato assinou a famosa “carta ao povo brasileiro”, comprometendo-se a não “romper contratos” e a não alterar a ortodoxa política macroeconômica, é que o terrorismo midiático foi abrandado. No seu livro autobiográfico, o ex-ministro Antonio Palocci confessa que consultou João Roberto Marinho, um dos herdeiros do império, para redigir a versão final da carta e para “tranqüilizar o mercado financeiro” [16].
Apesar do pacto firmado com o capital financeiro, que frustrou muitas expectativas de mudança, a mídia não deu folga ao governo Lula. Prevaleceu seu crônico ódio de classe. Ela nunca tolerou um operário no Palácio do Planalto; um novo bloco de forças políticas, oriundo das lutas sociais, no poder. “Esses veículos e seus homens de confiança nas redações simplesmente não aceitavam a idéia de que Lula vencera as eleições. Qualquer motivo servia não apenas para criticá-lo, mas para tentar desqualificá-lo, numa escalada que independia dos fatos, tratamento bem diferente da cordialidade que a maior parte da imprensa revelara para com o governo anterior” [17].
Quando surgiu a primeira brecha, a mídia partiu para o ataque. Em maio de 2005, Veja mostrou Maurício Marinho, chefe de um departamento da Empresa Brasileira de Correios, recebendo R$ 3 mil de suborno. A partir daí, iniciou-se a onda de denúncias contra o governo. A revista editou 15 capas sucessivas sobre corrupção. A maioria das denúncias não foi comprovada, como a que envolveu o filho do presidente em irregularidades ou as capas sobre os dólares provenientes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e de Cuba para as campanhas do PT. No seu ódio visceral, ela acusou “a quadrilha que avançou sobre o dinheiro público no governo Lula, naquele que vem se revelando o maior e mais audacioso esquema de corrupção da história”.
Durante longos 17 meses, a mídia “sangrou” o presidente Lula, visando desgastá-lo com vistas à sucessão em outubro de 2006. Alguns veículos mais afoitos, como a Veja e o Estadão, chegaram a sugerir o seu impeachment e depois recuaram temendo a revolta das ruas. Tudo foi usado para debilitar o governo. O colunista Clóvis Rossi, da Folha, jogou seu passado no lixo e encontrou “as digitais do PT” no assassinato do brasileiro Jean Charles em Londres, em setembro de 2005. Até mesmo uma manifestação estudantil contra o golpismo das elites, em Porto Alegre (RS), foi transmitida nas TVs como “protesto de neocaras-pintadas de verde-e-amarelo” contra o governo.
A imprensa explorou ao máximo o chamado “escândalo político midiático” (EPM), fenômeno estudado pelo sociólogo estadunidense John Thompson [18]. “Muitas das mais importantes crises políticas do mundo contemporâneo, desde a metade do século passado, têm como origem um escândalo político midiático. Isso é verdade no Japão, na Itália, na Inglaterra, Estados Unidos, Argentina e também no Brasil. Nosso exemplo mais significativo, embora pouco estudado e lembrado como tal, talvez seja o EPM que levou Getúlio Vargas ao suicídio em 1954... A crise política que o país viveu desde maio de 2005 certamente se enquadra nas características de um EPM” [19].
Para Venício de Lima, antes mesmo das denúncias dos Correios, “o enquadramento da cobertura que a grande mídia fez, tanto do governo Lula como do PT, expressava a ‘presunção de culpa’, que, ao longo dos meses seguintes, foi se consolidando por meio de uma narrativa própria e pela omissão e/ou saliência de fatos importantes”. A presunção da inocência está inscrita no artigo 5º da Constituição: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A obediência a esse princípio, dever de qualquer veículo, nunca foi respeitada. A mídia abusou do poder de “fazer e desfazer reputações” e de ditar a agenda política. Desprezando a Constituição e a ética jornalística, ela exacerbou no seu papel golpista de “partido da direita”.
A manipulação atingiu o seu ápice na campanha sucessória de 2006. Estudos independentes, do Observatório Brasileiro de Mídia e do Laboratório de Pesquisas do Iuperj, comprovaram que a cobertura eleitoral foi totalmente distorcida. “O presidente Lula teve os maiores percentuais de reportagens negativas, sempre superiores a 50%... Mesmo com a indicação de derrota apontada nas pesquisas, o candidato do PSDB teve mais matérias positivas do que negativas” [20]. Apesar do bombardeio midiático, o carismático Lula manteve altos índices de popularidade e, segundo todas as sondagens, venceria com folga já no primeiro turno. Novamente, a TV Globo entrou em cena para forçar o segundo turno, num dos golpes mais rasteiros da história do jornalismo.
Às vésperas do pleito, Edmilson Bruno, delegado da Polícia Federal, vazou ilegalmente fotos do dinheiro apreendido para a compra de dossiê que incriminava o PSDB na aquisição fraudulenta de ambulâncias na gestão FHC. Em conversa gravada, ele ordenou que as fotos fossem exibidas no Jornal Nacional de 29 de setembro. A TV Globo não só omitiu a gravação como escondeu a queda do avião da Gol, no mesmo dia, para não ofuscar seu factóide. Duas reportagens da Carta Capital, redigidas pelo experiente jornalista Raimundo Rodrigues Pereira, desvendaram “a trama que levou ao segundo turno” [21]. Apesar deste golpe sujo, os eleitores garantiram a reeleição do presidente Lula, numa histórica e desnorteante derrota da mídia manipuladora e prepotente [22].
Ilusão e pragmatismo diante da mídia
O comportamento da mídia diante do governo Lula, principalmente no processo eleitoral, serviu ao menos para alertar os atuais ocupantes do Palácio do Planalto sobre o nocivo papel dos meios de comunicação, concentrados e com forte poder de manipulação. Durante o primeiro mandato, o governo adotou uma postura acovardada diante dos donos da mídia. Além do pacto com o capital financeiro, Lula parece ter firmado outro com a ditadura midiática. Houve um misto de ilusão e pragmatismo. Um influente ministro do presidente Lula chegou a afirmar que tinha a “TV Globo nas mãos” – pouco depois foi defenestrado pela família Marinho. O Palácio do Planalto procurou cultivar relações amigáveis com a mídia, apostando na sua neutralidade. Pura ilusão!
Numa ação pragmática, o governo cedeu em quase tudo aos barões da mídia. Seus três ministros das Comunicações, em especial Hélio Costa, tiveram a benção dos empresários. Nenhuma medida efetiva de democratização do setor foi implantada. O projeto de classificação indicativa para menores foi abortado após milionária campanha contra a “censura” das empresas. “As emissoras de televisão no Brasil, concessionárias de um serviço público (é sempre bom lembrar), não admitem qualquer tipo de regras. Trabalham no vácuo legal e pretendem continuar assim... É inadmissível que algo tão delicado, como a exposição de crianças e jovens a cenas incompatíveis com os respectivos desenvolvimentos físico e mental, fique a critério exclusivo dos empresários da mídia” [23].
Outro projeto fritado foi o da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual, que visava retirar das mãos do deus-mercado a exclusividade na produção cultural. “A Ancinav deveria abranger toda a cadeia produtiva do audiovisual, inclusive as intocáveis redes de TV. A Globo, que iniciou o atual milênio atingindo 98% dos municípios brasileiros e recebendo sozinha verba publicitária maior do que todas as outras emissoras juntas – chegou a abocanhar 68% das verbas –, comandou a reação ao projeto, movendo campanha nacional. Em emissoras de rádio, jornais e na TV, seus astros de novela protestaram contra o ‘absurdo intervencionismo’” [24]. O governo Lula também recuou na criação do Conselho Federal de Jornalismo, antiga proposta da Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj), que foi “massacrada pela mídia antes mesmo de entrar em pauta” [25].
A cedência maior, porém, ocorreu com a adoção do modelo japonês de televisão digital (ISDB), anunciada três meses antes da eleição de 2006. Foi um baita presente para a TV Globo e que não teve qualquer retribuição na cobertura eleitoral. Outra prova do misto de ilusão e pragmatismo. O governo simplesmente rifou seu projeto do Sistema Brasileiro de TV Digital, que se baseava nos princípios da democratização da comunicação, diversidade e inclusão cultural e desenvolvimento da indústria nacional, e que implicou em investimentos de R$ 50 milhões e na montagem de 22 consórcios de universidades, envolvendo 1.500 pesquisadores. Ao optar pelo ISDB, o governo Lula adotou um padrão digital caro e excludente, que serve principalmente à Rede Globo [26].
O jornalista Bernardo Kucinski, que trabalhou no Palácio do Planalto naquele período, faz um balanço bastante ácido das relações estabelecidas com a mídia. Para ele, o governo Lula não entendeu o papel deste poderoso setor na atualidade. Apesar do governo manter “religiosamente seu acordo estratégico com o capital financeiro, que é o setor dominante hoje do capitalismo”, a imprensa nunca perdoou sua origem social. Diante desta hostilidade, foi “equivocada a política do governo Lula, a começar por não atribuir à comunicação e às relações com a mídia o mesmo peso estratégico que atribuiu às suas relações com a banca internacional” [27]. Kucinski critica, inclusive, a corrosão do sistema estatal de comunicação, através da Radiobrás.
No segundo mandato, talvez incomodado com as manipulações, o governo Lula passou a adotar algumas medidas, ainda que tímidas, para encarar esta questão estratégica. A criação da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), que gerencia a TV Brasil, representa um importante passo na construção de uma rede pública no país, superando a exclusividade do modelo privado importado dos EUA. O presidente também tem encarado as polêmicas com a mídia, como quando afirmou à revista Piauí que a leitura dos jornais lhe dá “azia”. A decisão de convocar a Conferência Nacional de Comunicação, desafiando os poderosos do setor, caminha neste rumo. Pela primeira vez na história, a sociedade será chamada a discutir a concentração e manipulação da mídia.
NOTAS
15- Bernardo Kucinski. A síndrome da antena parabólica. Editora Perseu Abramo, SP, 1998.
16- Antonio Palocci. Sobre formigas e cigarras. Editora Objetiva, SP, 2007.
17- Ricardo Kotscho. Do golpe ao Planalto. Editora Companhia das Letras, SP, 2006.
18- J. B. Thompson. O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia. Editora Vozes, RJ, 2002.
19- Venício A. de Lima. Mídia: crise política e poder no Brasil. Editora Perseu Abramo, SP, 2006.
20- Kjeld Jakobsen. “A cobertura da mídia imprensa aos candidatos nas eleições presidenciais de 2006”. Venício A. de Lima (org.). A mídia nas eleições de 2006. Editora Perseu Abramo, SP, 2006.
21- Raimundo Rodrigues Pereira. “A trama que levou ao segundo turno”. Revista Carta Capital, 18/10/06; “Contribuições ao dossiê da mídia”, Carta Capital, 25/10/06.
22- Renato Rovai. “As muitas derrotas da mídia comercial tradicional”. Venício A. de Lima (org.). A mídia nas eleições de 2006. Editora Perseu Abramo, SP, 2006.
23- Laurindo Lalo Leal Filho. “O poder da TV”. Agência Carta Maior, 24/11/08.
24- “Mídia poderosa”. Retrato do Brasil, Editora Manifesto, MG, 2006.
25- Raquel Paulino, Pedro Venceslau e James Cimino. “Crônica de (mais) uma derrota anunciada”. Revista Imprensa, agosto de 2006.
26- Mais detalhes no artigo “TV digital: dormindo com o inimigo”, na página ?????
27- Bernardo Kucinski. “Por que o governo Lula perdeu a batalha da comunicação”. Agência Carta Maior, 24/06/08.
- Extraído do quarto capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para adquirir seu exemplar, entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico – livro@vermelho.org.br
Nossa, quanta bobagem!
ResponderExcluirA mídia primeiro é culpada porque a polícia forçou um sequestrador a usar camisa do PT, mas quem noticiou que ele foi obrigado a vestí-la?
A mídia é culpada porque Lula foi mal no debate com Collor.
A mídia é culpada pela eleição de Collor, mas foi da mídia que começaram as denúncias que levaram sua queda...
Enfim, isso de dizer que a Globo manipula pessoas como massinha não cola mais, meu.
O Brasil de 89 não era o mundinho de "1984" do Orwel, parem de repetir essa bobagem.