terça-feira, 4 de maio de 2010
Vietnã cresce em ritmo de guerra
Terceiro artigo de Breno Altman sobre o Vietnã, publicado no sítio Opera Mundi:
Bat Trang é um pequeno vilarejo na zona suburbana ao sudeste de Hanói. Lá vivem cerca de mil famílias. Conhecida por muitos turistas e comerciantes, desde o século XIV é um centro de artesanato, especializado em cerâmica. Depois da guerra, como tantas outras cidades e regiões do país, sua vida econômica estava destruída.
Durante dez anos, até 1986, os artesãos eram obrigados a trabalhar em uma cooperativa, rompendo a tradição local da produção familiar. Era a fase que os vietnamitas chamam de “período do subsídio”: a economia funcionava de forma centralizada e a propriedade só podia ser estatal ou coletiva. Todas atividades eram comandadas pelo Estado, com seus planos anuais e quinquenais.
Na prática, não havia qualquer compensação tecnológica, financeira ou comercial para quem fosse cooperativizado. Os trabalhadores de Bat Trang foram perdendo o estímulo para a produção. Muitos voltaram para o campo, ao menos para tentar plantar o que comer. O povoado correu o risco de virar uma cidade fantasma.
Tudo começou a mudar no final dos anos 1980. Com o país vivendo uma profunda crise, incapaz de se reconstruir e afetado pela desagregação da União Soviética, o Vietnã socialista teve que se repensar. Adotou medidas de abertura econômica, permitindo outras formas de propriedade. O velho modelo estava com os dias contados.
As famílias de Bat Trang puderam voltar a produzir e vender com liberdade. Os mais bem-sucedidos foram os Minh Hai. Seu pequeno negócio, no ano 2000, cresceu a ponto de se transformar em uma pequena empresa privada, a Minh Hai Ceramic. “Hoje faturamos 1 milhão de dólares por ano”, conta o gerente Nguyen Mạnh Hung, 34 anos, formado em administração. “Setenta por cento de nossa produção é para exportação. Empregamos 65 trabalhadores. Crescemos 20% ao ano”.
Um desses operários é a jovem Nguyen Thi Thanh, 24 anos. Casada, com uma filha de 10 anos, é a primeira pessoa de sua família a sair do campo. Nas épocas de plantio e colheita do arroz ainda ajuda os pais, mas sua vida começou a mudar. “Estou na fábrica há sete meses”, conta Thanh. “É a primeira vez que trabalho apenas oito horas por dia e tenho um salário”.
Ela estudou até o ensino médio e planeja fazer faculdade de contabilidade. Ganha apenas 1,5 milhão de dongs por mês (algo como 85 dólares). O chefe da fábrica, Hung, salário mais alto da empresa, recebe cinco vezes esse valor. Ambos estão convencidos, porém, de que a vida está melhorando.
A história de Bac Trang, dos Min Hai, de Thanh e Hung é um retrato do Vietnã atual. O país escolheu um modelo para se desenvolver que seus dirigentes chamam de “economia de mercado orientada ao socialismo”. Ao lado de pequenas empresas convivem companhias estatais, propriedades familiares, cooperativas e corporações estrangeiras. O Estado tem um forte papel regulador, mas os velhos métodos aprendidos com os soviéticos estão enterrados.
“A economia de mercado é produto da História, não uma invenção do capitalismo”, afirma Nguyen Viet Thong, secretário-geral do Conselho Teórico do Partido Comunista. “Para nós é um instrumento de desenvolvimento. Não se pode falar a sério em socialismo e igualdade com pobreza e atraso. Não abdicamos das ideias marxistas, ao contrário. Apenas julgamos que o igualitarismo não é o melhor caminho. Já o experimentamos. Foi um fracasso”.
Na primeira década do pós-guerra, o Vietnã quase sucumbiu. Asfixiado pelo bloqueio norte-americano e da maioria dos países europeus, convivia também com o ocaso da União Soviética e seus aliados. O custo da reunificação tinha sido muito elevado. Os empresários do sul, com seu capital, fugiram depois da vitória comunista. A política de coletivização geral da propriedade, abaixo do paralelo 17, repetindo a receita aplicada no norte, não era capaz de impulsionar a economia.
O país cresceu, entre 1976-1986, abaixo de 1% ao ano. Mais de 50% dos vietnamitas viviam na miséria, ganhando menos de 1 dólar ao dia. A produção agrícola, desorganizada, deixou a população de várias regiões sem ter o que comer. Centenas de milhares lançaram-se ao mar em barcos improvisados, desesperados pela sobrevivência. A nação heróica, que tinha vencido inúmeras guerras impossíveis, corria o risco de ser derrotada na paz.
Veio, então, a grande virada de 1986. Os comunistas, no sexto congresso de seu partido, decidiram aplicar uma política chamada dao moi (renovação, em vietnamita). A primeira medida tomada foi uma reforma agrária. Os camponeses, que compunham mais de 90% da população, receberam parcelas de terra em usufruto privado. Ganhavam também liberdade para plantar, vender e aplicar como quisessem o eventual lucro de suas atividades.
Logo essas reformas se difundiram para outros setores, como serviços e certos ramos da indústria. Os pequenos negócios se multiplicaram no país. Dentro de uma mesma família várias atividades passaram a se cruzar. Os camponeses capazes de extrair excedentes de sua produção começaram a construir casas de dois pisos nas cidades que abrigavam suas cotas de terra, quase sempre na margem das estradas. Viviam no segundo andar e abriam lojinhas ou artesanatos no primeiro.
Os filhos das famílias com menor produtividade agrária eram contratados pelas empresas recém-abertas. A indústria, impulsionada também por esse nascente mercado interno, entrou em uma etapa de florescimento. Mas a alavanca primordial veio da abertura de portas para o investimento estrangeiro. As reservas naturais do Vietnã, sua privilegiada posição geográfica e o baixo custo da mão de obra foram atrativos irrecusáveis para vários empresários.
Os resultados da política de dao moi provam que a pátria de Ho Chi Minh foi redesenhada. O produto interno bruto, entre 1990 e 1997, prosperou a uma média anual de 8%, um ritmo que seguiria ao redor de 7% até 2008. O Vietnã, mesmo com a crise mundial, cresceu 5,3% em 2009. Somente a China suplanta esse padrão de expansão econômica.
A pobreza extrema caiu, em 23 anos, para 12,3%. A taxa de desemprego não chega a 3%. A agricultura ainda emprega 51,8% dos vietnamitas, cujo lastro é a pequena propriedade familiar inferior a 3 hectares, mas não representa mais que 20,7% da economia. A fatia industrial é de 40,3%; a de serviços, 39,1%. Mais de 30 mil empresas foram criadas, com diferentes tipos de propriedade.
A queda relativa da produção agrícola deriva da rápida industrialização. O país é hoje o segundo maior exportador mundial de arroz, o maior de caju e pimenta negra, além de desempenho relevante na venda de chá, café, borracha e peixe. A fome rondava o Vietnã nos anos 1980. Hoje o país exporta comida.
Planejamento
O Estado ainda controla 45% da economia, através de empresas próprias ou em sociedades acionárias (nas quais geralmente os trabalhadores de cada companhia detêm 49% das ações, contra 51% que pertencem ao governo). O restante das formas de propriedade se divide entre privada, estrangeira ou cooperativa.
O poder público, além de predominar sobre setores estratégicos como o sistema financeiro, a produção de energia e a indústria militar, exerce a direção prática da economia. Qualquer projeto de investimento privado ou associativo tem que ser negociado com o Ministério do Planejamento, que determina a região e as demais condições de implantação do negócio, incluindo compensações ambientais e sociais.
“Quando ressaltamos nossa orientação ao socialismo, estamos definindo que a lógica de nosso modelo é determinada pelo controle social sobre a acumulação de renda e riqueza”, afirma Thong. “Não somos uma economia de livre mercado. O papel do Estado é colocar os métodos capitalistas a serviço do desenvolvimento, do combate à pobreza e do enriquecimento dos vietnamitas”.
Não é um caminho fácil. O Vietnã sofre das dores de parir um crescimento tão acelerado. Os problemas de corrupção, tráfico de drogas e contaminação ambiental alarmam seus dirigentes. A taxa de inflação, atualmente mais domesticada, chega perto de 8%. A balança comercial registra déficits crescentes, pois o país exporta cerca de 57 bilhões de dólares em produtos agrícolas e de baixo valor agregado, mas importa 70 bilhões de dólares em máquinas e equipamentos para garantir seu desenvolvimento. O rombo só é coberto porque os investimentos internacionais continuam a trazer divisas.
Novos ricos
O desequilíbrio comercial também se explica pelo consumo cada vez maior de bens luxuosos, adquiridos pelos novos ricos vietnamitas, que o governo busca sustar com elevação de taxas e impostos. Mas esse quadro é revelador de que o país, hoje mais desenvolvido que no período anterior, é também mais desigual.
“A desigualdade não nos assusta. É possível atenuá-la com a intervenção do Estado”, diz Thong. “Uma certa diferenciação social é inevitável em nosso modelo, e até positiva. O estímulo material é uma força propulsora do crescimento. Quem produzir mais e melhor, deve ganhar mais e viver melhor”.
Muitos comunistas ortodoxos se assustam com a posição dos vietnamitas. Não são poucos que insinuam um suposto abandono das ideias socialistas. Pode ser. Mas também não faltava quem, durante a guerra contra franceses e americanos, achasse absurda a estratégia de enfrentar exércitos poderosos com armas de caça, emboscadas na selva e deslocamento de tropas debaixo da terra.
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