quarta-feira, 30 de junho de 2010

Um radialista na revolução de El Salvador

Reproduzo artigo de Nelson Rentería, publicado no sítio Opera Mundi:

"Radio Venceremos, transmitindo seu sinal de liberdade desde Morazán, pela conquista da democracia e da paz para El Salvador. Radio Venceremos, voz operária, camponesa e guerrilheira...". Por meio da voz e sem disparar uma única bala, Santiago obteve sua primeira vitória de guerra. Foi no momento em que ligou o transmissor da Radio Venceremos, emissora clandestina que animou a luta da hoje extinta guerrilha esquerdista da FMLN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional) durante 12 anos, até a assinatura dos Acordos de Paz de 1992.

A guerra civil salvadorenha (1980-1992) foi fomentada por uma série de atos repressivos praticada pelo governo salvadorenho e por grupos paramilitares. A violência atingiu seu ápice com o assassinato do arcebispo de San Salvador, Oscar Arnulfo Romero, por um comando ultradireitista na tarde de 24 de março de 1980. Dos altares, Romero defendia o diálogo de paz e denunciava a injustiça social, os altos níveis de pobreza e os crimes políticos atribuídos aos governos da época.

Dezoito anos depois, Santiago relembra, em seu confortável escritório em San Salvador, aqueles momentos de uma vida intensa na intempérie, em meio a combates e bombas, cheios de transmissões históricas e inúmeras anedotas ao lado de seus companheiros no estúdio instalado no subsolo da selva salvadorenha, no estado de Morazán – um dos territórios mais disputados durante a guerra civil.

O tempo tingiu de branco os cabelos e a barba desse jornalista sexagenário de origem venezuelana. O rosto demonstra cansaço, apesar da distância da intensidade do trabalho de radialista, mas ele garante que ainda presta serviços no "campo da comunicação".

Carlos Henríquez Consalvi nasceu em janeiro de 1947 no estado de Mérida, oeste da Venezuela. Conheceria o exílio ainda na primeira infância, já que seus pais eram opositores ferrenhos do presidente militar, o general Marcos Pérez Jiménez (1952-1958).

Diante das perseguições do regime venezuelano, seus pais, Rigoberto e Cristina, optaram por emigrar para o México e depois, Costa Rica. O destino desse homem viajante e revolucionário estava traçado desde seus primeiros dias de vida. Na década de 1970, ele voltou ao país natal e ingressou na Universidade Central da Venezuela para estudar jornalismo.

"Fomos uma geração que condenou os atentados à liberdade de expressão no continente em nossa época. Não podíamos expressar nossas ideias sem ter um chafarote [militar] ao nosso lado", contou Santiago ao Opera Mundi.

Mas a natureza lhe havia preparado um novo caminho. Em 1972, um terremoto sacudiu a Nicarágua e Carlos sentiu a necessidade de viajar ao empobrecido país centro-americano para registrar o fato. Embarcou em um avião da força militar venezuelana e chegou à Nicarágua. Depois da experiência no país, voltou a Caracas com o objetivo de concluir os estudos de jornalismo, mas seu espírito de viajante o levou a Buenos Aires, Argentina – onde, garante – foi motorista da cantora popular Mercedes Sosa e do fotógrafo de Jorge Luis Borges.

Santiago fez uma última parada de sua peregrinação na Europa, para depois se firmar na América Central, onde conduziu o projeto de uma rádio na costa atlântica depois da revolução sandinista de 1979, que derrubou o ditador Anastasio Somoza (1967-1979). Ele explicou que se interessou por El Salvador quando soube do assassinato do arcebispo Oscar Arnulfo Romero.

Radio Venceremos

Santiago contou que estava na Nicarágua quando membros da FMLN entraram em contato e o convidaram para liderar o projeto da Radio Venceremos. O venezuelano abandonou tudo e juntou-se à guerrilha salvadorenha em dezembro de 1980. Segundo o comando da FMLN, a rádio deveria estar no ar no dia 10 de janeiro de 1981, data em que a guerrilha lançaria a primeira ofensiva militar a fim de tomar o poder em El Salvador. Mas o dia se aproximava e a emissora não funcionava.

Correndo contra o tempo ao longo de vários dias de trabalho árduo, Santiago finalmente ativou "El Vikingo", como era chamado o radiotransmissor da marca Valiant Viking, adquirido a milhares de quilômetros dali, em um barco pesqueiro mexicano. "Foi um sucesso da equipe técnica, que fez funcionar a usina elétrica danificada", disse Santiago.

Segundo ele, a clandestina Radio Venceremos se transformou em referência noticiosa para as dezenas de agências internacionais que cobriam o conflito e em uma arma eficaz de propaganda. Era a voz da revolução salvadorenha. "As transmissões com mais calor, com mais emoção, aconteciam durante os bombardeios, especialmente porque driblávamos as operações militares. Nesses momentos, continuávamos transmitindo com mais adrenalina e paixão", contou.

Ante a incapacidade do exército salvadorenho de encontrar a cabine de transmissão subterrânea, surgiram vários mitos sobre a Venceremos. Alguns afirmando, por exemplo, que a rádio operava a partir da Nicarágua, governada pelos sandinistas.

Santiago se lembra de duas transmissões em especial: a primeira, assim que ativou o transmissor, e a última, realizada a partir do campanário da Catedral de San Salvador, depois da assinatura dos Acordos de Paz, em 16 de janeiro de 1992, pondo fim a 12 anos de conflito. Um relatório de 1993 da Comissão da Verdade de El Salvador disse que a guerra deixou 75 mil mortos – a maioria civis – e oito mil desaparecidos.

O projeto da Radio Venceremos naufragou depois dos acordos, em meio a divergências sobre o objetivo da emissora. "Havia duas visões contrárias, uma visão meramente mercantilista, que ao fim fracassou. Tiveram de fechar. E eu não quis participar de um projeto que não fosse um projeto sério de comunicação", explicou.

Pós-guerra

O Santiago antes barbado, descabelado e maltrapilho que sobrevivia sob a terra, em uma cabine de rádio, em nada se parece com o hoje elegante diretor do Museu da Palavra e Imagem (Mupi) de El Salvador, que em alguns momentos mostra-se receoso de lembrar o passado.

Ele abandonou a vida de viajante, se instalou em El Salvador em 1980 e se casou com a salvadorenha Georgina Hernández, com quem teve um filho, Camilo. "Dediquei-me a levantar a história dessas lutas sociais e me comprometi com o resgate da memória oral e das identidades culturais salvadorenhas", contou.

No Mupi, Santiago resgata a história ancestral e contemporânea do país. O museu guarda cerca de quatro mil vídeos da guerra, 50 mil fotos e todas as transmissões da rádio. Até desenhos animados são produzidos pela instituição.

O jornalista publicou os livros de memórias La terquedad del Izote (1992, México) e Luciérnagas en el Mozote (1996, El Salvador). Seu trabalho lhe rendeu em janeiro de 2009 o Prêmio Internacional de Cultura Príncipe Claus, da Holanda.

Ao contrário dos detratores da esquerda radical salvadorenha, Santiago vê com bons olhos o processo conduzido pelo governo da FMLN, com Mauricio Funes à frente, pois o considera uma das tantas vitórias da agremiação política, criada há três décadas. "É um processo muito interessante, muito complexo, mas que faz parte dessa construção coletiva que precisa seguir em frente, precisa continuar nos aperfeiçoando e avançar rumo às mudanças sociais pelas quais milhares e milhares pegaram em armas", afirmou.

Santiago prefere olhar para o futuro. Para ele, as lembranças dos dias na Radio Venceremos foram reduzidos a uma pequena exposição no museu, onde um aparelho de som recorda ininterruptamente uma de suas longínquas transmissões: "Radio Venceremos, transmitindo seu sinal de liberdade desde Morazán, pela conquista da democracia e da paz para El Salvador. Radio Venceremos, voz operária, camponesa e guerrilheira..."

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