Reproduzo artigo de Muniz Sodré, publicado no Observatório da Imprensa:
Em sua coluna semanal do Globo (20/6/2010), Caetano Veloso comentava sobre um amigo jornalista para quem o convite feito a celebridades para escrever em jornais é uma tentativa furada de enfrentar a crise da palavra impressa no mercado. O jornalista estaria "sentindo saudades de um suposto tempo em que jornais eram feitos por jornalistas".
Assim, de um jeito muito casual, o ator-compositor-escritor – personagem ativo na vida pública brasileira e agora colunista de jornal – pôs em poucas palavras um aspecto candente da crise do jornalismo. Mas seu adjetivo "suposto" vai ainda mais além, ao insinuar que apenas teria havido um tempo em que jornais eram feitos por jornalistas.
Na realidade, há muito tempo os jornais são feitos por um tipo de profissional a que se convencionou chamar de jornalista. Não que outro tipo de identidade autoral não pudesse ser reivindicada na produção do conteúdo jornalístico (cronistas e articulistas, principalmente), mas a modernização da velha "publicística" consolidou-se como "jornalismo", com um agente de produção específico, embora ficando sempre claro que essa profissionalização era tão só uma das várias atividades no interior da esfera pública.
Liberdade de expressão
Nunca foi pacífica a consolidação dessa atividade, assim como nunca foi homogêneo o seu percurso prestigioso do jornalismo na Europa: houve períodos em que o jornal diário não gozava da boa consideração que mais tarde lhe veio atribuir o espírito liberal. Enquanto Friedrich Hegel (1770-1831) pôde ver na leitura matinal dos jornais "a prece do homem moderno", Honoré de Balzac (1799-1850) mostrou-se abertamente cáustico para com essa ela – "se a imprensa não existisse, seria preciso não inventá-la" –, embora assumisse paradoxalmente a condição de panfletário: "O verdadeiro panfleto é obra do mais alto talento, se todavia não for o grito do gênio."
Mas as contradições e os confrontos se davam sempre no interior de um movimento histórico de esclarecimento da cidadania e de luta pela liberdade de expressão. Num livro recente (A Narração do Fato, Editora Vozes), reiteramos longamente que até mesmo em seus instantes panfletários ou em seus manifestos típicos do publicismo (o jornal artesanalmente produzido, mas politicamente definido como tribune aggrandie, na formulação de Benjamin Constant), a imprensa queria de algum modo esclarecer um público, ora trazendo à luz o que se ocultava nos desvãos do poder como "segredos de Estado", ora tentando fazer passar uma ideia ou uma causa como indutoras de modernização e progresso.
Jornais e jornalistas não são meras e episódicas categorias editoriais, mas instrumentos ideológicos na luta pela consolidação ideológica de uma classe social em sua definitiva emergência histórica, a classe burguesa. Emergindo na passagem do Estado absoluto ao Estado de direito, como porta-voz dos direitos (civis) que inauguram a modernidade da cidadania, a imprensa traz consigo a novidade da liberdade de expressão e mais, toda uma retórica a serviço da legitimação ideológica de si mesma e, numa dimensão prático-profissional, a serviço da narração fragmentária da atualidade.
Apuradores de fatos e ficcionistas
Assim, perpassada pelo compromisso histórico para com a ética do liberalismo, a ideologia jornalística nos repete há dois séculos, por um lado, que cabe à imprensa assegurar ao cidadão a representatividade de sua palavra, de seus pensamentos particulares, garantindo a sua liberdade civil de exprimir-se publicamente. Esta função, que é a virtude intrínseca do jornalismo, lastreia eticamente o pacto comercial implícito na relação entre os meios de comunicação e a sua comunidade receptora. Seja no suporte escrito ou eletrônico, o dever do jornalista para com o público-leitor é noticiar uma verdade, reconhecida como tal pelo senso comum, desde que o enunciado corresponda a um fato, selecionado por regras hierárquicas de importância. A profissionalização específica consolidou-se dentro desse contexto.
Mas as coisas vêm mudando, e aceleradamente. Já não é nenhuma novidade dizer que a era eletrônica, com a internet à frente, pôs em crise a identidade corporativa do profissional de imprensa. Blogs e twitters estão aí para demonstrar que qualquer indivíduo, munido de computador e devidamente "antenado", é, no mínimo, um "protojornalista", isto é, uma fonte de informação ou de opinião conversível em discurso social. O jornalismo sempre implicou essa condição: uma voz reconhecida como discurso social por se investir da autoridade de um testemunho (histor, em grego) quanto ao fato social, ainda que o testemunho fosse indireto.
Sabemos dos percalços históricos para o reconhecimento social desse discurso – a longa transformação do publicismo opinativo e panfletário em jornalismo como comunicação supostamente objetiva e imparcial dos fatos. E como essa função social sempre conviveu com o espírito literário (escritores-jornalistas, cronistas etc.), os jornais abrigavam tradicionalmente intelectuais oriundos do mundo das Letras ou da Academia stricto sensu. Nas redações, os apuradores de fatos sempre estiveram lado a lado com ficcionistas e cultores do encantamento retórico. O termo "jornalismo" recobre semanticamente essa cumplicidade.
A migração do besteirol
Algo mudou, entretanto, como já salientamos, e o mal-estar de agora não é apenas semântico. É isso o que deixa transparecer, quase como um sintoma, a frase do compositor-colunista sobre o "tempo em que jornal era feito por jornalista". Então não é mais? Ainda é, sim, basta fazer o cômputo corporativo. Mas o sensível compositor intui que tempo é algo que também se compõe, como as notas na partitura. Isto é, há um tempo que se inventa ou que se constrói socialmente.
A frase caetana sinaliza um tempo em gestação, em que a identidade corporativa do profissional de imprensa vem sendo fortemente abalada por uma série de fatores. Há o fator tecnológico, a internet. Mas há também, especialmente aqui entre nós, um novo tipo de reconhecimento do entertainer (músico, ator, compositor, cantor etc.) como intelectual com voz socialmente autorizada como pública. É esta, muito provavelmente, a razão para o recrutamento desses entertainers como colunistas em jornais do Rio e São Paulo.
Ainda é cedo para saber se o leitor vai sair ganhando alguma coisa com isso, algo intelectualmente mais elevado ou mais tocado por discursos de alta comunicabilidade. Os resultados de uma primeira avaliação não se mostram ainda muito promissores. Quanto maior o grau de celebrização do entertainer, menor, ao que tudo indica, seu compromisso com a clareza ou com a determinação objetiva de alguma coisa. É possível que isso não tenha mais nenhuma importância ou que importe mais a imagem valorizada do que a validade histórica dos enunciados.
Colada à celebridade midiática, a imagem é viral e, em sua progressão metastática, relativiza a semântica e o sentido. No contexto de massa (sim, massa ainda é conceito operativo, com interatividade cibernética e tudo), vale pouco o que se diz, vale muito quem diz.
A censura implícita nas ações de danos morais – estas mesmas que fazem o modismo judiciário do final do último século para cá e que perturbam o trânsito da expressão pública – nos impede de dar nome aos bois.
Charme pessoal à parte, multiplicam-se os indícios de que o besteirol possa estar migrando das ribaltas para o jornal.
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