Reproduzo artigo de Breno Altman, publicado no sítio Opera Mundi:
A Festa Literária Internacional de Paraty, que realiza sua oitava edição entre 4 e 8 de agosto, transformou-se em acontecimento marcante da vida cultural brasileira. Considerada um dos principais festivais mundiais do gênero, atrai milhares de participantes, atenção da imprensa e convidados ilustres. Nas devidas proporções, é um pequeno Woodstock das letras, que anualmente toma de assalto a aprazível cidade fluminense.
Apesar dos perrengues, pois a infraestrutura do município-sede costuma sucumbir ao excesso de visitantes, a diversão é garantida. Quem gosta de livros e ideias tem a chance de conviver com uma penca de bons autores e usufruir de opiniões sobre os mais diversos assuntos. Não é todo dia, afinal, que intelectuais renomados descem à planície e transitam entre o distinto público.
Mas há outras abordagens possíveis sobre a FLIP, além do entretenimento. Uma delas, quase irresistível, é comparar atividades nas quais essa intelectualidade antes se envolvia com seu papel atual, na era do avassalador predomínio da indústria cultural. A acareação talvez seja ilustrativa da reviravolta de sua função social após a crise dos projetos-mundo, no poente da Guerra Fria.
Escritores e artistas normalmente se reuniam, até então, para se posicionar diante de situações que alarmavam a sociedade e afetavam o mundo da cultura. Suas ferramentas eram congressos, simpósios e conferências que articulavam os intelectuais como agente coletivo. Os produtos dessas iniciativas - resoluções, manifestos ou declarações - buscavam a comunicação com outros setores sociais. O objetivo era utilizar talento e prestígio para construir vontades públicas.
Os exemplos brasileiros mais conhecidos, nesta lógica, foram o I Congresso Brasileiro de Escritores (1945) e as diversas reuniões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência durante os anos 70. Mas são inúmeros os eventos que, durante décadas, expressavam o esforço autônomo da intelectualidade para forjar conexões com a sociedade, vertebrados por entidades representativas.
Marketing como ciência
Mesmo movimentos de ordem estética, como a Semana de Arte Moderna (1922), cuja estrutura era semelhante a um festival, faziam parte do reposicionamento político-cultural e procuravam um discurso criativo que se fundisse a determinados programas de país. Esse também foi o caso dos Centros Populares de Cultura, do Cinema Novo e do Tropicalismo, para falarmos de outras experiências notórias.
A intelectualidade e os artistas eram, como hoje, produtores de bens culturais, inseridos no mercado e concentrados em conseguir o ganha-pão através da comercialização de suas obras. Mas a esfera de cidadania, política ou estética, era razoavelmente protegida contra o assédio das razões mercantis, graças a uma rede de instituições estatais, partidárias e associativas que respaldava a cultura orgânica.
No entanto, o predomínio das ideias liberais, chancelado com o colapso do socialismo no Leste Europeu, foi limando essa blindagem e criando as condições para que o mercado estendesse seus tentáculos sobre espaços outrora salvaguardados. Apenas deveriam sobreviver criações que pudessem ser transformadas em mercadoria rentável, submetidas à lógica do espetáculo e regidas pelas normas do marketing, a principal ciência social dos novos tempos.
Darwinismo cultural
Ainda que diversas organizações, ligadas à arte e à ciência, continuem a promover encontros relevantes, essas realizações são cada vez menos divulgadas pela imprensa. O jornalismo cultural, aos poucos, também terminou capturado pelos interesses empresariais, que demandam aval midiático para acelerar a rotação de seus estoques.
O ímpeto dessa mudança mergulhou artistas e intelectuais em uma espécie de darwinismo cultural, marcado pelo medo de sucumbir em um ambiente no qual somente os escolhidos pelo mercado poderiam sobreviver. A competição e o individualismo derivados desse temor acomodatício acabaram por minar formas coletivas de organização e a própria integração da intelectualidade ao processo histórico.
Assim chegamos à FLIP. No lugar de entidades do ramo, o comando cabe a uma organização não-governamental alimentada com recursos de editoras e seus patrocinadores. Os escritores, de protagonistas, viraram atração. Cada autor ou cada patota em seu quadrado, opiniões e inspirações são exibidas à assistência, e acaba por aí a sinergia com os plebeus.
Casamata do liberalismo
Tudo é bem pensado. Não há estandes emporcalhando as ruas de Paraty. O festival é como um showroom a céu aberto: os produtores e suas obras podem ser vistos, ouvidos e tocados, mas não comprados. O mercado toma conta da cultura, porém preserva seu verniz de forma elegante, de tal sorte que os diletos visitantes não se sintam consumidores, mas personagens.
O simbólico dessa edição da FLIP talvez esteja no convite a Fernando Henrique Cardoso para fazer a palestra de abertura. Um dos maiores intelectuais da história brasileira, antigo cardeal do pensamento crítico, havia antes se convertido em presidente da República para fazer reformas pleiteadas por forças de mercado. Na feira de Paraty, colocou sua biografia e inteligência a serviço da indústria cultural.
O país vive mudanças econômicas, sociais e até políticas de relevância. A duras penas, a soberania pública tenta recuperar o terreno perdido ao espaço privado nos anos 90. Mas o mundo da cultura, cujo centro de gravidade deslocou-se para o eixo formado por empresas e mídia, aparece ironicamente como casamata de um liberalismo agonizante. Ainda que, nas calçadas paratienses, esse conservadorismo moderno transborde de charme, beleza e erudição.
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