Reproduzo artigo de Paulo Kliass, publicado no sítio Carta Maior:
Há quase três anos e meio atrás, escrevi sobre o mesmo tema. Em 07 de fevereiro de 2007, o texto concluía assim:
“E esse é exatamente o nó atual da taxa de juros com a taxa de câmbio. A política monetária de juros elevados tem um segundo efeito negativo sobre a atividade econômica nacional. Ela provoca a sobrevalorização da taxa de câmbio, sob um regime em que a intervenção do Estado para administrá-la é vista com péssimos olhos. Assim, além de desestimular o consumo e a produção em geral, como já vimos, ela não estimula a busca da competitividade de setores exportadores de alta tecnologia e abre uma perigosa janela para a inundação de importações em setores que podem ser estratégicos para nosso parque industrial, principalmente em termos de política de geração de renda e oferta de emprego.
A busca de uma calibragem fina para esse movimento aparentemente contraditório no universo econômico passa pela redução da taxa de juros como instrumento de política monetária e pela introdução de mecanismos de controle e administração da taxa de câmbio, para evitar que as distorções acima descritas possam comprometer a qualidade do desenvolvimento que todos desejamos para o país”.
O intuito aqui não é de botar banca de especialista, para sair no final com o famoso “eu não avisei? ”... Inclusive porque uma série de outros analistas também vem alertando para esse risco. Muito pelo contrário, a intenção é chamar a atenção para a passividade com que essa questão vem sendo tratada pelo governo, em especial pelos responsáveis da área econômica, há muito tempo. É aquele já velho conhecido e sempiterno temor de adotar qualquer tipo de medida que possa ser considerada como prejudicial aos interesses da banca internacional e de seus representantes aqui dentro do país. Uma visão exclusivamente focada com as lentes do setor financeiro, em detrimento do lado real de nossa economia – ali onde são efetivamente gerados renda e empregos associados a atividades produtivas ou serviços importantes para a sociedade.
Recordemos algumas informações. Naquele longínquo dia do início do segundo mandato do presidente Lula, a taxa oficial de câmbio do real brasileiro em relação ao dólar norte-americano era de R$ 2,08 – e diversos analistas já apontavam para os riscos embutidos em tal cotação, considerada como estando sobrevalorizada à época. A taxa de juros Selic, tal como definida pelo Copom do Banco Central, estava na faixa de 13% anuais em fevereiro de 2007.
Passados quase 42 meses, a taxa de câmbio está hoje em R$ 1,76 e a taxa de juros da Selic, recentemente elevada, alcançou 10,75% ao ano. Cabem aqui algumas ponderações a respeito de tal quadro de conjuntura econômica.
Em primeiro lugar, permitam-me fazer um rápido exercício para termos uma noção mais aproximada do significado da atratividade que tais condições oferecem ao recurso financeiro especulativo circulante pelo mundo afora, em busca de porto mais seguro e de elevada rentabilidade. Para efeito de comparação, utilizemos o caso hipotético de um operador do mercado financeiro que tivesse um montante de US$ 1.000 para aplicar, lá naquele dia de fevereiro de 2007. A alternativa considerada mais conservadora de todo o mercado global, de menor risco, seria a compra dos títulos do governo norte-americano. Com as taxas oferecidas pelo mercado dos EUA, tal aplicação chegaria aos dias de hoje com valor aproximado de US$ 1.060 – apenas e tão somente a remuneração da taxa de juros do FED, o Banco Central daquele país. Uma rentabilidade de 6% ao longo de todo o período aqui considerado.
Peguemos, agora, outro caso: o de um jovem operador, com perfil um pouco mais arriscado e mais ligado nas operações financeiras oferecidas pelos governos dos países do Terceiro Mundo. Conhecedor das regras do mercado financeiro brasileiro e das garantias oferecidas pelo ex-presidente mundial do Bank of Boston à frente da condução da política monetária, ele teria optado por aplicar os mesmos US$ 1.000 em títulos do governo brasileiro. Reparem bem se que trata ainda de uma operação de baixo risco – nada de ações na Bolsa de Valores, derivativos, commodities futuras, hedge cambial ou otras cositas más, dentre as inúmeras operações conhecidas por quem domina a terminologia do financês. A rentabilidade dessas é impublicável...
Ao internalizar os dólares, convertendo-os pela taxa de câmbio, ele teria obtido R$ 2.080 em fevereiro de 2007. Com a remuneração oferecida pela SELIC ao longo dos anos, a rentabilidade mínima obtida teria sido de 45%. Ou seja, os R$ 2.080 teriam se elevado a R$ 3.016 no final de julho deste ano. Caso resolvesse recuperar os valores em dólares à taxa de câmbio atual de R$ 1,76 , o nosso jovem anunciaria – entre surpreso e orgulhoso - ao proprietário do recurso: “Sir, we’ve got US$ 1.713 !!!”. Milagre? Talvez a explicação tenha muito pouco a ver com alguma ajuda oferecida pela mãozinha divina. Mas o fato é que a operação rendeu mais de 70% - um retorno muito elevado, quando comparado aos 6% do exemplo anterior. Quem conhece um pouco do funcionamento do mercado financeiro, sabe o que isso significaria em termos de bônus na conta bancária do responsável de uma operação que rende 12 vezes mais do que a outra!
Com esse tipo de benesse de remuneração oferecida pelo governo brasileiro ao capital especulativo, o interesse declarado é promover um fluxo crescente de atração de recursos externos para fechar as nossas contas externas. Assim, sempre fico meio com pé atrás quando ouço as bravatas do tipo: “agora não somos mais devedores, e sim credores, do FMI!”. É claro é que foi importante a eliminação da dívida brasileira junto ao Fundo. Porém, o custo atual de rolar o nosso modelo com base no capital financeiro de curto prazo obtido junto ao mercado internacional é tão ou mais elevado do que antes.
O fato é que está cada vez mais apertado o nó entre a política de juros e a política de câmbio. O grande argumento utilizado pelos que não têm interesse em alterar o estado de coisas é a propalada “tranqüilidade” oferecida pelo nível de reservas internacionais acumuladas pelo Brasil. Realmente, os valores impressionam. Naquele fevereiro de 2007, o estoque dessa conta era de US$ 100 bilhões. Hoje elas estão no patamar de US$ 253 bilhões – um crescimento superior a 150%.
Porém, o comportamento exibido por outras variáveis deveria recomendar, aos formuladores de política econômica, muita cautela no tratamento da questão externa. O saldo anual da Balança Comercial lá em fevereiro de 2007 era um superávit de US$ 46 bi. Com a valorização da taxa de câmbio, as exportações foram desestimuladas e as importações ficaram incentivadas. O resultado foi uma redução do saldo comercial, que atinge hoje a marca superavitária de US$ 19 bi.
Por outro lado, as informações relativas às remessas para exterior também devem servir como sinal de alerta. Em 2007, o valor anual de divisas remetidas ao exterior por conta de pagamento de juros, lucros e similares era de US$ 65 bi. Agora, passado esse período todo aqui analisado, esses valores subiram para US$ 100 bi anuais. Um crescimento superior a 50%.
Por isso se faz importante destravar essa verdadeira bomba de efeito retardado que está montada em nossa estratégia de condução da economia. Imagino que a investigação e a pesquisa a respeito desses anos todos de obstinação tresloucada em manter a pole position na corrida de países por juros mais altos vai render muitas dissertações de mestrado e teses de doutorado. O Brasil não precisa fazer esse enorme sobre-esforço de alimentar a gulodice parasitária do capital financeiro especulativo para manter sua estabilidade macroeconômica interna e seu necessário desenvolvimento.
Ao manter os juros da Selic elevados, o Banco Central perpetua o ingresso desses recursos externos, que nada mais fazem senão inflar artificialmente os indicadores do “bom mocismo”. E como a massa desses valores continua a ingressar em nosso território sob o sacrossanto e imexível regime da assim chamada “liberdade cambial”, o real continua a se valorizar frente às outras moedas do mundo. E para evitar que outra praia se apresente mais atrativa do que a nossa e desvie a atração do capital que para cá se dirigiu, dá-lhe manutenção da taxa oficial de juros em patamares injustificadamente levados. Conclusão: é a clássica situação do cachorro correndo atrás do próprio rabo. Ilude-se ao achar que está avançando, pois apenas corre em círculos sem sair do lugar.
Um dos maiores riscos da opção até aqui adotada é a conduta a ser adotada face a uma debandada de recursos externos. Por isso, a menção a brincar com fogo aqui no título. Apesar da dimensão do estoque de reservas internacionais, o chamado “efeito de manada” do capital especulativo não costuma perdoar os países que, até à véspera, os hospedavam de forma tão generosa. Uma das alternativas é reduzir a dependência desse tipo de risco, por meio de uma taxação do recurso externo de curto prazo. Tal medida tenderá a reduzir o ingresso dos mesmos e permitirá uma reversão da valorização cambial. E as razões para a definição da taxa de juros serão menos influenciadas pela atratividade do recurso externo, com folga para redução. E o alívio nas despesas orçamentárias - atualmente comprometidas com o pagamento de centenas de bilhões de reais com juros da dívida - propiciaria o direcionamento para gastos nas áreas do social e da infra-estrutura.
E já que eu iniciei este artigo com uma “auto-citação”, termino com outra do mesmo artigo de fevereiro de 2007:
“A prudência recomenda algum grau de intervenção da autoridade econômica na fixação de seu ‘preço’, a taxa de câmbio. Aliás, é exatamente o que faz a grande maioria dos países industrializados. Porém, um dos efeitos da sobrecarga ideológica do neoliberalismo em nossas praias foi a fé cega de que a solução de mercado é sempre a mais eficiente.”
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