Reproduzo artigo de Antonio Lassance, publicado no sítio Carta Maior:
Certa vez, um ministro resolveu levar ao Presidente da República seu pedido de exoneração. Diante de uma crise aguda, uma verdadeira “blitzkrieg” (guerra-relâmpago) que assolava o Planalto na tentativa de deixar apenas terra arrasada, o ministro explicou a auxiliares por que achava que estava na hora de “pegar o boné”: “os leões precisam de carne”. Os leões eram os veículos de imprensa.
Esta é uma ótima analogia sobre a relação entre a imprensa e o “poder”. Isenta os leões de serem recriminados por sua ferocidade e apetite. É da sua natureza e instinto serem assim. É mais do que uma circunstância. Pelo menos, desde a Revolução Francesa, desde Jean-Paul Marat e seu jornal insurrecional e maledicente, “O amigo do povo” – recheado por política e fofocas, como os atuais.
Por outro lado, se os leões estão isentos de culpa, os políticos e o público, por obrigação, não podem ter com a imprensa uma relação ingênua. Os leões não estão à espreita para promover espetáculo, para fazer bonito e agradar ao público. Mesmo aqueles que lhes dão carne diariamente não podem ser ingênuos e românticos.
“No Planalto, com a imprensa”, livro em dois volumes, de quase mil páginas, produzido pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom), sob o comando do ministro Franklin Martins, reúne entrevistas com antigos domadores - responsáveis pela intermediação das relações dos governos com a imprensa. Alguns o foram na condição de secretários de Imprensa; outros, na de porta vozes.
As entrevistas foram feitas pelo professor, jornalista e assessor da Secom, Jorge Duarte, um dos maiores especialistas do país em jornalismo e comunicação. Duarte faz uma cuidadosa reconstituição histórica do aparecimento da figura do jornalista “do presidente”, desde a I República até o golpe de 64.
Duarte demonstra que a imprensa ancestral, liberal, foi nutrida pela República Velha, como no caso do tradicionalíssimo e importante, à época, Jornal do Comércio (do Rio de Janeiro). Os jornais liberais recebiam encomendas, ou incumbências, principalmente a partir do governo Campos Sales (que governou o País de 1898 a 1902). “Há relatos de que a direção do jornal [do Comércio] recebia regularmente bilhetes de Campos Sales com opiniões, sugestões de reportagens e agradecimentos pela veiculação de informações” (pág. 11).
Um parêntesis: trata-se do mesmo Campos Sales que estava entre os 16
que insuflaram a transformação do velho jornal A Província de São Paulo em um “diário republicano”, passando a denominar-se O Estado de S. Paulo. Assim atesta o próprio veículo, em sua página de histórico
http://www.estadao.com.br/historico/resumo/conti1.htm . O jornal se tornaria intimamente associado aos destinos do Partido Republicano Paulista e da oligarquia (da qual fazia parte) que controlava a “República do Café com Leite”.
É bem provável que o conhecido anticlericalismo de Campos Sales tenha influenciado até num detalhe que normalmente passa desapercebido: na troca do nome, o “São” passou a ser grafado sempre abreviado, e A Província de São Paulo passou a ser O Estado de S. Paulo. Ou seja, o velho diário, com seu liberalismo ainda hoje arraigado, nasceu, cresceu e conformou sua identidade sob as asas do Estado, fazendo jus ao apelido carinhoso que faz questão de empunhar: Estadão.
A função de secretário de Imprensa só se estabeleceu formalmente no Governo João Goulart, com o jornalista Raul Ryff. Ryff e Carlos Castello Branco, o Castelinho, são as grandes lacunas do livro, supridas tanto pela introdução de Duarte quanto pelo depoimento do jornalista Carlos Chagas.
Além de Jorge Duarte, o livro teve a organização do diplomata Carlos Villanova, também da Secom, de Mário Hélio Gomes (responsável por um minucioso trabalho de notas) e de André Singer (que foi porta voz e secretário de imprensa de Lula).
Nenhuma declaração bombástica ou segredo que já não tenha sido revelado. Os presidentes parecem ter a prática de não incluir os secretários de Imprensa entre seus confidentes. Certos depoimentos são primorosos e bastante intensos. Um deles (Cláudio Humberto) é visceral. A maioria é repleta de casos elucidativos e saborosos. Alguns, além de terem sido grandes jornalistas, ainda são bons contadores de história. Por exemplo, Carlos Chagas, que fala do “pijânio” (pág. 49), um misto de pijama e roupa indiana, que o presidente Jânio começou a usar, no lugar do terno. A moda fez sucesso apenas entre os puxa-sacos.
São relembrados momentos históricos. O assassinato de Vladimir Herzog,
a bomba do Riocentro, a morte de Tancredo Neves, a Constituinte, o
impeachment de Collor, a crise política que abalou o Governo Lula em 2005, dentre tantos outros acontecimentos de grande importância, são revistos com o olhar de quem estava dentro do Planalto, ao lado dos presidentes e, muitas vezes, com a ingrata função de ser sua trincheira.
Autran Dourado conta da famosa foto de Juscelino, estendendo a mão e fazendo um gesto vago ao secretário de Estado Americano, Foster Dulles, mas estampado nos jornais como um pedido de dinheiro (de fato, o Brasil estava atrás de empréstimo do FMI). “Aquilo foi uma maldade” (pág. 34). A imagem mendicante quase gerou um processo do presidente JK contra o Jornal do Brasil. Carlos Chagas fez um relato detalhado sobre o AI-5, de 1968 (págs. 67-73). Carlos Fehlberg atribuiu ao jornal “O Globo” ter lançado ao estrelato a frase entusiástica de Médici, “ninguém segura este país”, que virou bordão da ditadura (pág. 119).
Humberto Barreto, do período Geisel, lembra que alguns jornalistas “se tornaram meus comensais; notadamente o Merval Pereira” (pág. 135). Alexandre Garcia, secretário de imprensa do período Figueiredo, conta porque escreveu o livro “João Presidente” - num período em que se tentava “humanizar” o general que teria dito preferir o cheiro de cavalo ao cheiro do povo. Garcia diz que sua demissão (pág. 241) teve a ver com o título de uma entrevista concedida: “o porta-voz da abertura”. Na verdade, é notório que a demissão foi motivada, de fato, não pela entrevista, na revista Ele&Ela, mas pela foto que a acompanhava: o jornalista foi fotografado na cama, nu, coberto apenas por uma toalha sobre o corpo (a mesma informação consta do Memória Globo, do portal da própria Rede Globo
http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYP0-5271-259099,00.html). A Ele&Ela era uma revista “masculina”, como se dizia no século passado, e a foto deixava em má situação o presidente que antes havia feito declarações moralistas contundentes, imagine, sobre a nudez... no Carnaval do Rio de Janeiro.
Os únicos que não aceitaram ser entrevistados foram o general José Maria de Toledo Camargo (que serviu ao governo Geisel, de 1977 a 1978), e a secretária de imprensa de FHC, Ana Tavares. Toledo Camargo foi da época de Armando Falcão e do "nada a declarar", mas tem a seu favor o fato de ter escrito um livro, “A espada virgem”. Ele alega já ter dito, neste livro, tudo o que teria a pronunciar. Ana Tavares, secretária de Imprensa de FHC, apenas justificou que não se considera notícia. Nada a declarar mesmo.
Todos os secretários são chapa branca, até hoje. Todos, sem exceção –
com o perdão da ênfase, para destacar que comunicação chapa branca existe e independe de ditadura ou democracia. Fica patente – de novo,
independentemente de regime – que, de todos aqueles que um presidente
pode nomear, os secretários de Imprensa são os que mais valem a pena,
do ponto de vista da imagem: é incrível como continuam atuando como se
ainda fossem secretários de Imprensa, mesmo sem receber o salário a
que fizeram jus. Defendem seus antigos chefes com unhas e dentes.
Mesmo os que não merecem são retratados como mocinhos e vítimas de
injustiças, armações ilimitadas ou de erros cometidos no esforço de
acertar (só não se diz em quem). Vários consideram que a imprensa foi
deliberadamente malvada e até ingrata.
Há quem não se furtou a expor ódios particulares ou rancores especiais aos que lhes proporcionaram percalços e saias justas, ou que disputavam a mesma atenção do presidente. Os ex-secretários descrevem muito bem o jogo bruto a favor e contra o
Planalto, que aí sim variava conforme os interesses em questão e as
relações dos veículos com os regimes.
Ricardo Kotscho proporciona um ótimo relato sobre a relação do presidente Lula com a imprensa, reproduzindo avaliações presentes em seu livro (“Do golpe ao Planalto: uma vida de repórter”). O depoimento de André Singer ficou em parte prejudicado por ter sido feito à época em que estava no cargo de secretário de Imprensa, razão pela qual se deve ler também a entrevista de Fábio Kerche.
Kotscho revela um traço que está presente em muitos dos depoimentos: os secretários de Imprensa em geral são jornalistas bem conhecidos pelos profissionais das redações e editores; costumam ter uma relação direta com os presidentes, ou pelo menos com alguém que seja de sua absoluta confiança e faça a “ponte”. Mas a grande lacuna, o que eles mais sentiram falta, o flanco pelo qual mais apanharam é o da experiência política, algo que normalmente chamam de “Brasília”. Há uma diferença razoável entre a lógica da imprensa e a lógica da política, embora ambas estejam entrelaçadas.
“No Planalto, com a imprensa” é um belo legado do Governo Lula, além
de ser um manual completo para a área de comunicação dos governos e
também aos profissionais da comunicação contra os governos.
O livro é oportuno e esclarecedor. Por exemplo, num momento em que se ouve falar, em editoriais, sobre supostos riscos do Estado à liberdade da imprensa, “No Planalto, com a imprensa” ilustra vivamente como certos interlocutores, editorialistas, comentaristas, articulistas e âncoras de veículos de comunicação de massa foram íntimos e aguerridos defensores do Estado em seus piores momentos. Um tempo quando o Estado estalava o chicote para mostrar quem é que manda, e uns abanavam o rabo atrás de um pedaço de carne.
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