quinta-feira, 6 de maio de 2010
As peripécias de um Barão vermelho
Reproduzo abaixo a bela biografia do Barão de Itararé escrita pelo historiador e amigo Augusto Buonicore:
Ele se chamava Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly. Um nome pomposo para alguém que havia nascido numa carroça, em Rio Grande, interior do Rio Grande do Sul, filho de uma índia charrua. O próprio Torelly contou, bem humorado: "Viajava com minha mãe numa diligência quando uma roda teve o aro quebrado. Com todo aquele barulho, nada mais natural que eu me apressasse a sair para ver o que se passava". Era 29 de janeiro do ano da graça de 1895.
A triste infância de Torelly, decerto, não anunciava o humorista talentoso que faria rir gerações de brasileiros. Logo cedo perdeu a mãe. O pai era um homem truculento e de poucas palavras. Aos nove anos foi internado num colégio dirigido por austeros jesuítas alemães. Apesar do ambiente repressivo, aos 14 anos elaborou seu primeiro jornalzinho manuscrito, o Capim Seco, no qual já começava a revelar sua veia humorística.
Terminado o colégio, à contra-gosto, foi cursar medicina em Porto Alegre, que acabou abandonando no 4ª ano. Contam que numa prova oral, um dos professores perguntou-lhe "Conhece esse osso?", ele disse ainda não e apertou-lhe dizendo: "Muito prazer em conhecê-lo".
Neste período publicou poemas e artigos em diversas revistas e passou a se dedicar exclusivamente ao jornalismo. Fundou inúmeros e efêmeros jornais entre elas O Chico, dedicado ao humor. Casou-se pela primeira vez com Alzira Alves com quem teve três filhos.
Por indicações médicas, em 1925, partiu para o Rio de Janeiro. Ali procurou a redação de O Globo. "O que o sr. veio fazer?", perguntou-lhe Irineu Marinho. Para o qual respondeu irônico: "Tudo, de varrer a redação a dirigir o jornal. Creio não haver muita diferença". Foi imediatamente contratado. Depois de alguns meses se transferiu para A manhã, no qual passou a publicar uma coluna humorística diária intitulada “A manhã tem mais ...”. Mas, o sonho de Apparício era ter o seu próprio jornal. Em menos de um ano deixou A Manhã para fundar outro periódico intitulado ironicamente A Manha – um órgão de ataque ... de risos. Este vem ao mundo no dia 13 de maio de 1926 – uma forma encontrada de homenagear a abolição da escravidão e a sua própria.
O jornal foi um sucesso e transformou-se numa referência do novo humorismo jornalístico. Ele utilizou, pela primeira vez, da fotomontagem para ridicularizar os governantes de plantão e as elites brasileiras. Apesar da boa repercussão inicial, a situação financeira se agravou rapidamente. Entre os anos de 1929 e 1930 teve que circular como encarte do jornal Diário da Noite, pertencente a Assis Chateaubriand. Naquela conjuntura de crise política, colocou-se então ao lado dos revoltosos da Aliança Liberal, encabeçada por Vargas.
Em homenagem àquela que deveria ter sido, e nunca foi, a maior batalha da “Revolução de 1930” se auto-intitulou Duque de Itararé. Mais tarde, dando prova de extrema modéstia, rebaixou seu título para Barão de Itararé. Nesta região de São Paulo havia se concentrado o grosso das tropas legalistas que deveria deter as forças revolucionárias que vinham do sul. Mas, os generais acabaram destituindo o presidente Washington Luís e não houve batalha alguma. As tropas comandadas Vargas simplesmente contornaram as de São Paulo e seguiram triunfante ao Rio de Janeiro, onde amarraram seus cavalos no Obelisco.
Porém, o namoro com o novo regime durou pouco. Logo Aporelly – agora Barão de Itararé – voltou a suas baterias contra o governo revolucionário de Vargas. Gostava, por exemplo, de chamar o poderoso general Góes Monteiro de general Gás Morteiro. Trocadilhos como estes lhe custou a primeira prisão, ainda em 1932.
No final de 1934 fundou o Jornal do Povo – publicação antifascista e com forte influência comunista. Durou apenas 10 dias e foi o centro de um escândalo político. Na suas páginas o Barão publicou uma série de artigos sobre a vida de João Cândido, o Almirante negro que comandou a revolta dos marinheiros em 1910. Isto foi encarado como uma afronta a Marinha de Guerra brasileira.
A sede do jornal foi invadida, o Barão seqüestrado, violentamente espancado e teve seus cabelos cortados por oficiais daquela arma. Isto acarretou protestos por todo o país, inclusive na Câmara dos Deputados. Os agressores jamais foram punidos. Sem perder o humor, o Barão achou aconselhável mudar a tabuleta na entrada de seu escritório. A nova inscrição dizia simplesmente: “entre sem bater!”.
A principal vítima do Barão era os integralistas de Plínio Salgado. Gostava de dizer que, acidentalmente, quase entrou para as hostes dos “camisas verdes”, quando ouviu um deles gritando “Deus, Pátria e Família”, pois havia entendido: “Adeus pátria e família”. Ele era um inimigo do militarismo e do belicismo tão em voga naqueles anos turbulentos, que já anunciavam uma segunda guerra mundial. Gostava de dizer: “Como se chama o assassinato de uma criancinha? Infanticídio. E o assassinato de uma porção de criancinhas? Infantaria”.
Ao lado do perigo de uma guerra iminente, crescia a ameaça do domínio planetário do nazi-fascismo. Por isso mesmo o Barão foi um ativo organizador e militante da Aliança Nacional Libertadora. Após o levante armado, comandado por Prestes, ocorrido em novembro de 1935, foi preso novamente e ficou encarcerado até o final de 1936. Primeiro no navio-presídio Dom Pedro I e depois na Casa de Detenção do Rio de Janeiro, ao lado de nomes como Graciliano Ramos. No Dom Pedro I deixou crescer uma barba a la Dom Pedro II. Esta passaria a ser uma das marcas registradas do Barão.
Dizem que quando o juiz federal lhe perguntou por qual motivo acreditava ter sido preso, ele afirmou que, possivelmente, teria sido graças ao cafezinho. Diante do juiz perplexo explicou: sua falecida mãezinha o havia avisado para tomar cuidado com o excesso de café. Justamente naquele dia ele havia parado num bar e tomado oito xícaras e, assim, a polícia conseguiu prendê-lo. O Barão era um daqueles que perdia um amigo (e a liberdade), mas não perdia uma boa piada.
No seu livro Memórias do Cárcere, o mestre alagoano descreveu o convívio com o velho Barão. Sempre alegre, buscando animar seus companheiros de infortúnio e aparentando um otimismo a toda prova. Mas, nesta mesma obra, podemos notar a amargura sentida por este homem nas noites sombrias da prisão, que mais parecia um campo de concentração. Talvez para ele, mais do que para qualquer outro, a cárcere tenha sido uma experiência atroz. O sentimento de desolação era aumentado pela morte de sua segunda esposa, ocorrida enquanto estava preso, e pela preocupação com seus filhos que estavam entregues a um amigo pouco confiável.
O Barão foi solto em dezembro de 1936 e, imediatamente, reorganizou A manha. Novamente ela se transformou numa trincheira na luta contra o fascismo e seus representantes no país. O golpe do Estado Novo, em dezembro de 1937, impediu a continuação de um jornal tão irreverente. O Barão teve que buscar outro “ganha pão” e foi trabalhar no Diário de Notícias, no qual ficaria por cerca de seis anos. A repressão política continuava seguindo seus passos. Em janeiro de 1939 voltou a fazer uma breve visita à carceragem da polícia política de Vargas. Em 1940 perdeu a sua segunda esposa num parto mal sucedido. Menos de quatro anos depois morreu uma das filhas de seu primeiro casamento, vítima de complicações pós-operatórias. Nuvens sombrias encobriam a vida do humorista.
Incansável, em 1945 encabeçou abaixo-assinado exigindo liberdades democráticas. No mesmo ano voltou a editar A Manha. O clima político marcado pela democratização do país era amplamente favorável a uma publicação daquele tipo. Entrou de cabeça na campanha eleitoral do Partido Comunista do Brasil. A vitória do PCB, que elegeu 14 deputados federais e um senador, encheu-o de alegria.
No início de 1947 seria ele próprio candidato a uma cadeira na Câmara Municipal do Distrito Federal. A cidade vivia uma constante falta de água e nas padarias os proprietários adicionavam água no leite, burlando a lei e prejudicando os pobres fregueses. Por isso, decidiu que seu lema de campanha seria “mais leite, mais água e menos água no leite”. Foi eleito vereador pela chapa comunista e passou a compor a maior bancada do legislativo municipal. Afirmou Prestes: “o Barão com seu espírito não só fez a Câmara rir, como as lavadeiras e os trabalhadores. As favelas suspendiam as novelas para ouvir as sessões da Câmara que eram transmitidas pelo rádio”.
Naqueles dias memoráveis, quando circulava pelos corredores do Senado, encontrou o ex-ditador, Getúlio Vargas. Este, sorridente, se dirigindo a ele exclamou: “Até tu, Barão?”, E ele, sem pestanejar, respondeu irônico: “Tubarão é o senhor, eu sou apenas o Barão de Itararé”. Por outro lado, a oposição liberal-conservadora criticava a constante mudança de posição dos comunistas em relação a Vargas. Sem perder a compostura respondeu aos críticos: “Não é triste mudar de idéias; triste é não ter idéias para mudar”.
O registro do PCB foi cancelado em maio de 1947 e, em janeiro de 1948, os parlamentares comunistas foram cassados. Entre as vítimas deste ato arbitrário estava o Barão. Ele afirmou solene: “saio da vida pública para entrar na privada”. Neste mesmo ano, devido à repressão política e a crise financeira, A Manha deixou de circular. A situação ficou feia para o seu lado. “Devo tanto que, seu chamar alguém de ‘meu bem’ o banco toma”, escreveu.
Na pendura, se uniu ao cartunista Guevara e lançou o Almanhaque – ou Almanaque d’A Manha. O sucesso levou-o e reorganizar o jornal desta vez na capital paulista. Mas, a alegria durou pouco e em 1952 deixou de circular definitivamente. O fim de A manha não significou o fim da carreira do velho Barão. Ele passou a colaborar com o jornal A Última Hora e lançou ainda dois Almanhaques em 1955. Diante da crise que ameaçava derrubar Getúlio em 1954 lançou a frase que fez carreira entre os comentaristas políticos: “Há qualquer coisa no ar, além dos aviões de carreira”.
Em 1955 casou-se pela quarta vez. Pouco depois ocorreu uma nova tragédia. Sua esposa se suicidou. A morte parecia acompanhá-lo, buscando retirar dele toda a alegria. Já cansado e doente voltou para o Rio de Janeiro. Sua última velhice passou sozinho e doente num pequeno apartamento. Estava pobre e quase esquecido. Dedicava-se aos estudos matemáticos e a numerologia. Parecia que tinha dificuldades a se adaptar as rápidas transformações pelas quais passava seu país. Seus olhos, possivelmente, viam com tristeza a constituição uma modernidade capitalista associada à miséria e ao autoritarismo. Vivíamos o auge ditadura militar. A boca pequena se dizia que ele enlouquecia dia-a-dia.
Mais do que nunca uma de suas máximas favoritas traduziria seus sentimentos mais profundos e a trágica situação em vivíamos: “Este mundo é redondo, mas está ficando muito chato”. No dia 27 de novembro de 1971 falecia o Barão de Itararé. Uma amiga afirmou: “Morreu sozinho para que não sofressem por ele”. Poucas pessoas compareceram ao seu enterro e um jornalista apressado afirmou, sem graça, que os tempos do velho Barão já haviam passado. Será mesmo? Eu, ao contrário, diria que talvez os tempos do velho Barão ainda não tenham chegado.
Escreveu ele: “Nunca desista de seu sonho. Se acabou numa padaria, procure em outra”. É isso aí, Torelly. As padarias do mundo ainda parecem infinitas.
A foto acima mostra o Barão de Itararé ao lado do dirigente comunista Maurício Grabois
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As greves por melhores salários no Vietnã
Sétimo artigo de Breno Altman, publicado no sítio Opera Mundi:
Quase vinte mil empregados da fábrica de sapatos Pouchen, de capital taiwanês, localizada na província de Dong Nai, cruzaram os braços e pararam as máquinas no início de abril. A lei vietnamita determina que as empresas concedam aumento salarial anualmente. Mas os donos dessa companhia, desde 2008, desobedecem a regra.
“Depois de tantas promessas não cumpridas e de tanto desrespeito aos direitos dos trabalhadores, a greve foi nossa última alternativa”, conta o operário Quan, um dos que participaram do movimento e que prefere não dar o nome completo por medo de demissão. “O que recebemos não é suficiente para acompanhar a alta dos alimentos”.
A legislação restritiva não foi um obstáculo para a paralisação. Apesar de uma greve ser considerada legal apenas se for chancelada pelo sindicato da fábrica ou da categoria, os contratados da Pouchen atropelaram a norma. “Não confiamos no sindicato”, afirma Quan. “Na nossa fábrica seus representantes estão mais próximos da administração da empresa do que dos trabalhadores”.
O protesto na Pouchen não foi um caso isolado nos últimos meses. Nos primeiros quatro meses do ano ocorreram 95 greves "fora-da-lei" no país. No ano passado, foram 216 paralisações desse tipo. Mais de 70% delas aconteceram em empresas de capital estrangeiro, segundo dado da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) do Vietnã.
Os ramos afetados são variados, do setor têxtil ao siderúrgico, da fabricação de calçados aos serviços. Até em uma companhia de táxis da Cidade de Ho Chi Minh houve ação paredista sem pedir licença. A razão mais constante para essas demonstrações são baixos salários que não acompanham a inflação. Mas também as fraudes aparecem como motivos para as reclamações.
Há diversos registros de empresas privadas que sonegam pagamento de previdência social e seguros de saúde. Outra manobra é vender seus produtos a preço irrisório para um distribuidor no exterior, que por sua vez os revende por quantia cinco ou dez vezes superior. Trabalhadores vietnamitas, que têm direito à participação nos lucros, acabam vendo seu quinhão burlado, porque a participação é calculada com base na comercialização original.
Maus patrões
No início do período de renovação econômica, a atitude do governo e do Partido Comunista em relação a essas situações era rígida. O objetivo de atrair capitais exigia, pela visão oficial, um quadro de estabilidade a qualquer custo nos ambientes de produção. O crescimento da economia era prioritário em relação aos direitos individuais ou de classe dos trabalhadores.
Mas esse comportamento parece estar se modificando. A imprensa nacional, mesmo as edições em língua estrangeira, dispara matérias contra os maus patrões e em defesa da mobilização operária. A central sindical e o parlamento discutem uma novo código do trabalho, com mais direitos e maior facilidade para os protestos sindicais.
“Podem existir greves legais, em teoria”, declarou Dang Nhu Loi, vice-presidente da Comissão de Assuntos Sociais da Assembleia Nacional, ao jornal Than Nien. “Mas são tantos os obstáculos e formalidades que as empresas acabam protegidas das pressões e praticamente todas as greves podem ser consideradas irregulares”.
Algumas medidas governamentais também são propostas. “Os parques industriais, quando negociam os contratos de investimento, deveriam determinar sálarios, benefícios e condições de trabalho nas empresas que se estabelecerem, sob o risco de cassar licenças”, sugere Le Thi My Phuong, diretora do Departamento de Trabalho da província de Dong Nai.
Renovação
Não é apenas a administração pública que está buscando uma nova abordagem das relações de trabalho. Também o sindicalismo enfrenta os novos tempos. “Antes da economia de mercado, nosso papel principal era colaborar na gestão da economia e na educação política dos trabalhadores”, diz o vice-presidente da CGT, Hoang Ngoc Thanh. “Agora temos de assumir a vanguarda na defesa de remuneração digna, respeito aos direitos e melhoria das condições de trabalho”.
A central, criada em julho de 1929, conta com 6,7 milhões de filiados. Está presente nas 63 províncias e aglutina 20 sindicatos por ramo de atividade. As empresas com mais de 50 trabalhadores possuem seu próprio comitê sindical, uma espécie de sindicato por empresa. A entidade é financiada por verbas do orçamento estatal e pela contribuição de seus integrantes. Conta com um diário nacional, seis revistas e cinco jornais regionais, além de páginas na internet.
Mas Thanh reconhece que a CGT precisa se renovar. “Nossa palavra de ordem é ir para as bases”, afirma. “Precisamos ajudar nossos núcleos de fábrica a serem mais ativos, a representarem efetivamente os filiados, a mobilizá-los por suas reivindicações”.
Muitas das empresas privadas tentam proibir a organização sindical e partidária dentro de suas instalações, a revelia da lei. Mesmo grandes grupos, como a Samsung, arriscaram-se a adotar medidas nesse sentido, que violam a Constituição vietnamita. Esses arroubos, no entanto, podem estar com seus dias de impunidade contados.
Opção calculada
A mudança de linha da CGT, expressando possivelmente orientação mais agressiva do Partido Comunista, tem criado um novo cenário trabalhista. Apenas 104 greves ocorreram em 2007. No ano seguinte, foram 750. Caíram para 314 em 2009. “Companhias que estavam descumprindo leis e acordos coletivos estão percebendo que precisam rever seu comportamento”, analisa Thanh.
O espírito renovador do sindicalismo, pressionado pelo chão da fábrica, também parece ser movido pelo gradual reequilíbrio dos fatores de desenvolvimento. O aumento do poder aquisitivo interno, a melhoria da qualidade de vida e a proteção ambiental passam a contar mais na balança. O crescimento, antes necessidade desesperada, atualmente se apresenta como opção calculada.
O socialismo vietnamita, por outro lado, está descobrindo que a economia de mercado não vem desacompanhada. Traz consigo o conflito entre salário e lucro. Se os trabalhadores não se organizarem para defender a parte que lhes cabe, podem ficar a ver navios.
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Vietnã projeta-se como potência industrial
Sexto artigo de Breno Altman, publicado no sítio Opera Mundi:
A empresa May 10, estabelecida em Hanói, tem uma longa história. Fundada em 1946 com o nome de EX 10, pertencia às forças armadas e fabricava uniformes militares. A produção era determinada pelos planos do governo, que também era o único comprador. Tudo começou a mudar com o novo curso da economia, decidido em 1986.
Parte de uma corporação chamada Garco 10, que controla 15 plantas industriais e emprega oito mil trabalhadores, a May passou a produzir camisas, calças, abrigos e costumes. Noventa por cento de suas vendas, situadas em 40 milhões de dólares anuais, destinam-se à exportação. E abastece o mercado interno através de sua rede varejista.
Outra alteração importante: seu funcionamento hoje é determinado por regras de mercado. Investe, produz e comercializa conforme as tendências de oferta e procura. Ao menor custo possível, sempre em busca da maior taxa de lucro. "Tomamos nossas próprias decisões", explica a jovem gerente de vendas, Cao Thi Kim Danh. "O objetivo da fábrica é garantir divisas para o país e ganhos sólidos para seus acionistas."
O sócio majoritário continua a ser o Estado, com 51% de participação. Além dos eventuais dividendos, recebe 10% sobre a receita a título de imposto sobre valor agregado e 25% sobre os lucros. O outro parceiro são os trabalhadores, que controlam 49% da companhia.
O modo de operação da May é a regra predominante entre empresas estatais do Vietnã, ainda o núcleo forte de sua economia. A maioria dessas companhias são ou estão se transformando em sociedades por ações. Às vezes os sócios minoritários são capitalistas vietnamitas ou até investidores estrangeiros, formando as chamadas empresas mistas. O que caiu por terra, entretanto, foi o planejamento centralizado.
"Abandonamos a economia de comando", afirma o professor Vo Dai Luoc, 65 anos, presidente do Centro de Economia Vietnã, Ásia e Pacífico. "Nosso planos são indutores, de metas, com fortes mecanismos de regulação. Mas deixamos de funcionar com cotas de produção e vendas estabelecidas pelo Estado. Mesmo as empresas públicas trabalham pela lógica de mercado."
A entidade presidida por Luoc é um sinal dos novos tempos. "Somos a primeira organização não governamental criada no país", diz com um sorriso largo. Mas seu principal cliente é o governo. Um dos principais intelectuais vietnamitas e tido como um dos formuladores estratégicos da política de renovação, Luoc está encarregado de elaborar ambicioso plano para o futuro.
"Queremos ser um país plenamente industrializado até 2020", ressalta o economista. "Para atingirmos esse objetivo, porém, novas mudanças terão que ser realizadas. Precisamos de uma revolução tecnológica que nos permita ter indústria de ponta, agricultura mais produtiva, melhores empregos e qualidade ambiental."
O padrão que impera no país, de fato, ainda é o da produção de baixo valor agregado. Além dos bens agrícolas e do setor de serviços, seus principais ramos são a fabricação de têxteis e calçados, a extração de petróleo cru, o processamento de alimentos e a construção civil.
Esses segmentos estão diretamente associados com as riquezas naturais vietnamitas e a utilização extensiva de abundante mão de obra com baixa qualificação. Com essa matriz, nos últimos 25 anos, foi possível garantir expressivas taxas de crescimento e elevação do nível de vida. Mas os
dirigentes avaliam que há perigo de fadiga.
Um novo patamar de desenvolvimento permitiria enfrentar mais adequadamente o gargalo da balança comercial, através da substituição de importações em eletroeletrônica, máquinas e equipamentos, química fina e derivados do petróleo. A criação de uma indústria mais limpa também ajudaria na preservação ambiental. A alteração do perfil tecnológico, por fim, propiciaria uma requalificação mais sadia e bem paga do trabalho.
Também está em debate a forma de condução da política industrial. Atualmente o governo e as administrações de província criam parques produtivos. Há cerca de 150 em funcionamento e outros 230 com licença concedida, em 56 cidades. Para esses parques, geralmente organizados por ramo de atividade, são discutidos projetos de investimento, que devem ser aprovados pelo Ministério do Planejamento. Tanto o Estado quanto empresários participam de seu financiamento.
A febre da industrialização fez com que todas as cidades mais populosas desejem ter seus distritos fabris. Também é um jeito de solicitarem acesso aos fundos nacionais de desenvolvimento e para infraestrutura. Muitas dessas áreas, no entanto, estão com baixa ocupação, abaixo de 60%, como reconhecem funcionários do próprio governo.
Impacto sobre o campo
Um dos problemas mais graves desse mecanismo é o sacrifício eventualmente inútil de terras agrícolas para sua implementação. Aproximadamente 75 mil hectares ao ano são perdidos pelas zonas rurais em favor dos projetos industriais. No delta do rio Mekong, a área mais cultivada do país, até 2020 serão transferidos 8,5 mil hectares.
O impacto sobre os camponeses é forte. "Não podemos investir porque não sabemos até quando ficaremos em nossas terras", afirma Nguyen Van An, do município sulista de Can Tho. Ele e outros produtores de frutas estão temerosos pelo futuro desde que foi anunciado, em 2005, a construção de um novo parque industrial em sua província. "Os residentes ficam aguardando que apareçam os investidores para o parque e façam propostas de compensação financeira", reclama An.
O professor Luoc é outro crítico dessa política. "O governo tem que parar de dar licença para áreas incompatíveis e voltadas à indústria tradicional", afirma. "Apenas espaços com mais de mil hectares devem ser autorizados, com o objetivo de desenvolver prioritariamente a indústria de software, o ramo eletrônico e outros setores avançados. A expansão descontrolada significa baixos salários, camponeses sem terra e dano ambiental."
A estratégia que propõe também atingiria a agricultura. Os limites para concentração da propriedade - por exemplo, nos deltas dos rios Mekong e Vermelho, os mais importantes do Vietnã, ninguém pode ter mais que três hectares de terra - seriam cautelosamente eliminados. Os camponeses receberiam incentivos para fundir suas terras em empresas agrícolas ou os mais pobres a vender seu direito de usufruto aos mais ricos.
"Não é possível aumentar a produtividade no campo com pouco espaço", defende Luoc. "A pequena propriedade foi importante para a produção de alimentos e a estabilidade social, mas 80% da renda das famílias camponeses já são provenientes de atividades não-agrícolas. A indústria, o setor de serviços e o empreendedorismo urbano absorvem os filhos dos camponeses que vivem da autossubsistência."
São ideias que escandalizariam o país até o final dos anos 1980. "O velho socialismo morreu", afirma Dai Luoc. "Não existe mais nenhum país socialista no mundo. Apenas nações que estão em transição para esse sistema. O Vietnã é uma delas. Mas esse objetivo só é possível com desenvolvimento, riqueza e prosperidade. A garantia de que seguiremos nesse caminho é o poder politico dos trabalhadores, aliado ao papel regulador do Estado na economia."
Mas ninguém parece perder muito tempo com essa discussão ideológica. A palavra mágica no país é prosperidade, associada à compreensão de que apenas a industrialização pode assegurar bem-estar. Para conquistar esse nirvana, os vietnamitas se somam à máxima do líder chinês Deng Xiaoping: não importa a cor dos gatos, desde que cacem ratos.
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Os efeitos do agente laranja no Vietnã
Quinto artigo de Breno Altman sobre o Vietnã, publicado no sítio Opera Mundi:
Durante a Guerra do Vietnã (1964-1975), Washington e seus aliados despejaram 83 milhões de litros de herbicidas altamente tóxicos sobre centenas de milhares de hectares do Sudeste Asiático, a maioria no Vietnã, mas também no Laos e no Camboja. Os aviões norte-americanos arrasaram até 25% das florestas do país com um desfolhante herbicida conhecido como agente laranja.
Este produto, que contém grandes quantidades de dioxina, uma substância cancerígena, causou doenças e incapacidades tanto em soldados quanto em civis. Hoje, dois milhões de vietnamitas e dezenas de milhares de norte-americanos veteranos da guerra do Vietnã sofrem seus efeitos no organismo.
Filhos e netos das vítimas diretas do bombardeio químico estão afetados por mutações genéticas. Além dos danos causados aos seres humanos, o agente laranja devastou o meio ambiente vietnamita. Os mangues desapareceram totalmente. O solo e as colheitas sofreram envenenamento a longo prazo.
O Vietnã insistentemente cobra dos Estados Unidos uma reparação de guerra. A Casa Branca nega responsabilidade no caso e atribui eventuais malefícios aos fabricantes do produto. Associações de vítimas vietnamitas e norte-americanas entraram, em 2004, com um processo na Justiça Federal de Nova York contra 36 empresas que forneceram o desfolhante. A petição foi negada, em primeira instância, pelo juiz Jack Weinstein.
Indenização
Também o Tribunal de Apelações julgou a causa improcedente, alegando que o agente laranja não foi usado como arma de guerra contra a população, mas para proteger as tropas norte-americanas. A Corte Suprema, em março de 2009, indeferiu recurso das vítimas sem proferir comentários.
As mesmas companhias denunciadas concordaram em pagar, através de acordo extrajudicial assinado em 1984, 180 milhões de dólares a 291 mil veteranos norte-americanos afetados pelo herbicida. Mas contestam que a ciência tenha provado que o agente laranja provoque os horrores médicos atribuídos.
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