segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

WikiLeaks e a guerrilha eletrônica

Reproduzo artigo de Antonio Martins, publicado no sítio Outras Palavras:

É possível que o futuro lembre-se de 8 de dezembro de 2010 como o dia em nasceu o hacktivismo, ou hacker-ativismo, global. Pela manhã, centenas de jovens, agindo a partir de vários pontos do planeta e articulados numa rede de nome Anonymous, iniciaram um cerco ao site global da operadora de cartões de crédito Mastercard. Conseguiram mantê-lo fora do ar, ou torná-lo absurdamente lento, ao longo de várias horas — a ponto de obrigar a empresa a reconhecer o colapso.

Nas horas e dias seguintes, foram atacados outras empresas ou instituições que se envolveram na perseguição arbitrária ao Wikileaks, ou defendem formas de controle autoritário da internet. Entre eles, Visa, PayPal e o banco suíço Post Finance (que bloquearam, sem ordem judicial, as doações e contas bancárias do site cujas revelações perturbam os poderes); a procuradoria da Suécia (que lançou contra o jornalistas Julian Assange uma acusação inverossívil de estupro); o senador norte-americano Joe Lieberman (autor de um projeto de lei que autoriza o presidente dos EUA a fechar sites, alegando razões de “emergência”).

Não foi, propriamente, a primeira ação. Há anos, há sinais de hacking coletivo com fins vagamente políticos. Mas o feito da semana passada distingue-se tanto pela envergadura dos alvos atingidos quanto por três novidades essenciais. Lutou-se em favor de uma causa capaz de despertar apoiadores em muitos países: a liberdade de expressão, materializada em especial numa internet livre de censura. Difundiram-se instrumentos de ação que podem ser empregados por qualquer pessoa com acesso à internet, e aperfeiçoados no futuro. Produziram-se fatos cuja relevância e repercussão, já enormes no primeiro ensaio, podem crescer indefinidamente, num mundo em que poder e dinheiro circulam, cada vez mais, na forma de bits.

Surgiu, em suma, o embrião de uma nova forma de ação política. Examinar a história, ideologia de fundo e métodos do Anonymous tornou-se importantíssimo. Conhecer sua evolução – de uma comunidade juvenil para troca de imagens até uma teia capaz de amedrontar instituiçoões financeiras internacionais – é, além disso, fascinante.

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Anonymous, a rede que articulou os ataques recentes tem sua origem remota em 4Chan, um imageboard criado em 2003 nos Estados Unidos, inspirado em um serviço japonês semelhante, o Futaba. Pouco conhecidos dos usuários comuns da internet, imageboards são uma espécie de murais de imagens, onde os usuários compartilham livremente fotos e vídeos. Podem ser muito populares: 4Chan, por exemplo, tem audiência superior a de todas as publicações da Editora Abril somadas, ou à do Le Monde francês.

Caracterizam-se por subdividirem-se em canais, dedicados a temas específicos. Os mais fortes, no 4Chan, servem à troca de desenhos animados e mangás japoneses; mas há outros, para assuntos como pornografia e ativismo. Neste último, criou-se, pouco após o surgimento do imageboard, uma comunidade de hackers, cujos integrantes costumavam omitir seus próprios nomes – uma atitude que vêem como defesa radical da liberdade na internet. São os Anonymous, ou Anons.

Em certa altura, o canal Anonymous do 4Chan passou a fustigar sites de internet – por serem conservadores demais, mercantilizarem o que não deveria envolver dinheiro ou restringirem a livre circulação de ideias e conteúdos na internet. Talvez o primeiro alvo conhecido seja (em 2006) o site do radialista norte-americano Hal Turner, um defensor da “supremacia” branca e anti-semita, que propõe o confinamento e morte dos judeus. Pouco mais tarde, (em 2008), uma nova mobilização do grupo alcançou destaque importante nos Estados Unidos e envolveu, pela primeira vez, a defesa explícita da liberdade na rede. Visou a Igreja da Cientologia.

Conhecida por suas práticas mercantis (e por alguns processos ruidosos, em que seus membros foram acusados de roubar documentos públicos), a seita havia produzido um vídeo promocional, que tinha como estrela principal o ator Tom Cruise e deveria circular apenas mediante pagamento, na internet. A peça vazou e foi publicada no YouTube. A Cientologia processou o site, acusando-o de violar propriedade intelectual.

Anonymous viu na ação uma ameaça de censura à internet. Em represália, fustigou a Cientologia com uma ação semi-ingênua: trotes telefônicos, congestionamento de aparelhos de fax e… derrubada forçada dos sites da igreja. Para tanto, utilizou-se, em micro-escala, a mesma técnica reproduzida agora, com sucesso internacional. Ela é conhecida, em inglês, como o Distributed Denial of Service, ou DDoS.

É algo como a requisição maciça e coordenada dos serviços de um servidor, até colocá-lo em colapso temporária ou permanentemente. Simples nas palavras, a técnica envolve uma miríade de métodos e táticas de ataque, defesa e contra-ataque. Vem sendo empregada há pelo menos dez anos, por atores e em situações muito diversas. Hackers solitários desejosos de exibir sua habilidade pessoal. Grupos de nerds interessados em derrubar sites de jogos via internet, demonstrando assim sua “superioridade” sobre os próprios criadores dos games. Os militares russos, prováveis responsáveis pelo travamento total dos sites do governo da Geórgia, depois que este tentou invadir a Ossétia do Sul, em 2008.

Mas a iniciativa do Anonymous foi, provavelmente, a primeira a utilizar o DDoS como forma de ação política de massas. O ataque à Cientologia foi deflagrado em 21 de janeiro, com a publicação, no próprio YouTube, de um vídeo-manifesto. Locução metálica sobre imagens de nuvens em movimento acelerado, a peça sugeria ficção científica e paródia de vídeos religiosos. Alertava: “Somos Anonymous. Vocês não terão como se esconder, porque estamos em toda a parte. Para cada um de nós que caia, dez outros se erguerão”. O caráter de campanha nerd foi rapidamente superado. A ação passou às ruas. Sempre impulsionada pela comunicação livre via internet, desdobrou-se (10 de fevereiro) em manifestações diante das sedes da igreja, em 73 cidades espalhadas pelo mundo. Muitos dos participantes usaram, nestes atos, máscaras idênticas às de V, o herói anarquista do filme V de Vingança.

Em seguida a esta notável demonstração de força, o ímpeto de Anonymous reflui por algum motivo, durante cerca de dois anos. No período, há episódios menores: disputas cibernéticas com outros grupos que habitam o 4Chan, um dia de postagem maciça de vídeos pornográficos no YouTube (para protestar contra a política de excluí-los); e duas ações políticas menos vistosas. Em junho de 2009, deu-se apoio técnico a militantes da oposição iraniana, que alegou fraude nas eleições presidenciais, desencadeou uma grande onda de manifestações de rua e vive num país onde a liberdade de expressão é fortemente restringida. Três meses mais tarde, novas ações de DDoS derrubaram, por alguns dias, os sites do governo e Parlamento australianos, responsáveis por diversas formas de censura à internet.

A retomada, em grande estilo, ocorre a partir de setembro de 2010. Chama-se Operation Payback, algo como Operação Contra-ataque. Anonymous reage à indústria cinematográfica indiana, que havia, ela própria, recorrido ao DDoS para tirar do ar sites acusados de infringir propriedade intelectual. A ação ganha súbita popularidade, talvez pelo repúdio que despertam, entre os mais jovens, as tentativas de criminalizar o compartilhamento de música e vídeo. Além de diversas empresas de Bollywood e da Aiplex Software (que lhes ofereceu suporte tecnológico), foram derrubados sucessivamente, numa campanha de semanas, os sites dos grandes cartéis da indústria cultural norte-americana e internacionais: RIAA, MPAA, IFPI, British Phonographic Industry e o escritório de propriedade intelectual do Reino Unido.

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Decretadas em dezembro, a prisão de Julian Assange e as medidas autoritárias contra o site de que ele é referência desenharam, para um Anonymous remobilizado, um conjunto de alvos óbvios. A Operation Payback voltou-se com velocidade de enxame contra as corporações financeiras e instituições envolvidas na perseguição ao Wikileaks. E cresceu muito, nesta ação. Gregg Housh, um membro veterano, contou ao jornalista John Markoff, do New York Times, que nunca vira tanta gente, nos fóruns eletrônicos do Anonymous. Segundo suas contas, havia 1500 pessoas, em todo o mundo, prontas para agir. O motivo era simples. “Para todos nós, ele [Assange] é um prisioneiro político”, afirmou Housh. Alguém a quem não se podia negar solidariedade imediata. “Lutamos pelas mesmas razões. Queremos transparência e enfrentamos a censura”, disse a Markoff outro participante do contra-ataque.

As façanhas do Anonymous despertaram uma onda natural de curiosidade a respeito da rede. Houve quem buscasse respostas fáceis: na matéria de capa desta semana, Veja retrata Assange como “o homem-bomba”, insinuando que ele comandou a derrubada dos mega-sites financeiros. Um exame menos superficial e ideologizado mostrará que o fenômeno Anonymous é complexo e não pode ser compreendido com os olhos do passado.

Ele acalenta, ao menos nos momentos de grande mobilização, uma disposição de combate e desprezo pelos poderes vigentes que ecoam os dos militantes revolucionários dos séculos 19 e 20. “Sabemos que nossa ação é ilegal, mas sentimos que a causa é justa e jugamos que o possível resultado vale o risco. Se deixarmos o Wikileaks cair sem luta, os governos pensarão que podem derrubar qualquer site que discordar”, explicou, numa entrevista ao The Guardian londrino, um integrante do Anonymous que se identificou com seu codinome na rede, Coldblood (Sanguefrio).

Em contrapartida, as relações que o grupo cultiva entre si mesmo são a antítese do comando centralizado e hierarquia característicos da antiga tradição marxista. Não há chefes, ou estrutura. A rigor, o Anonymous não pode ser sequer chamado de grupo, porque não é composto de membros. Sua única materialidade são, paradoxalmente… as ideias.

As ações, potência do Anonymous, são decidas em fóruns eletrônicos: messageboards (sistemas de chats que arquivam as mensagens trocadas), IRCs (canais de chat flexíveis e não-subordinados a portais) e, mais recentemente, o Twitter e o Facebook (em 10/12, os controladores destas redes sociais baniram os canais de comunicação lá abertos pelo Anonymous, mas eles parecem ter sido rapidamente recriados). Para não serem identificados, os participantes servem-se, além de codinomes, de um programa de computador intensamente usado pela Anistia Internacional: o Tor, que impede identificar o IP, ponto exato da internet de onde parte cada comunicação. Na semana passada, um repórter da revista Economist entrou, identificado, num destes messageboards. Impressionou-se com a extensão da rede: nos minutos em que permaneceu, teve a companhia de gente da Noruega, Nepal, Leste da Rússia, Nova Zelândia (na foto que ilustra este texto, participantes da Operation Payback posam em Valadollid, Espanha).

Mais importante, constatou que as decisões são tomadas, sempre, por adesão individual voluntária. Alguém propõe um alvo. Dá-se rápida discussão: apoios, ressalvas. Mas não há votações, escolhas excludentes: o sentido da discussão é seduzir o maior número possível de apoiadores para uma determinada missão. “Anonymous é uma democracia ateniense 24 horas”, sintetizou, entre admirado e irônico, o autor do texto. Alguém cunhou, há mais tempo, uma imagem mais rica. A rede seria como uma “nuvem de pássaros” inteligentes, onde, embora haja ampla autonomia individual, “só é possível identificar os membros pelo que estão fazendo juntos”.

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Para derrubar, por DDoS, um megasite, é preciso ativistas e tecnologia. Anonymous articula ambos por meio uma “arma” virtual conhecida por LOIC. É um programa, escrito em código livre, que, uma vez instalado num computador (há versões para Linux e Windows), conecta-o a uma rede mobilizada para sobrecarregar e derrubar determinado site. Permite, portanto, integrar à nuvem pessoas comuns, que não têm nem habilidade técnica, nem tempo, para frequentar os messageboards e articular ciberbatalhas. Uma busca rápida no Google permite saber onde baixá-lo (aqui, por exemplo). Seu nome é revelador: um acrônimo de Low Orbit Ion Cannon (Canhão de Ions de Órbita Baixa). Não tem nada a ver com o que denomina: alude a uma arma usada na série de videogames Command&Conquer.

Baixar um LOIC expressa uma óbvia decisão política – e implica riscos: em 9/12, a polícia holandesa prendeu um garoto de 16 anos acusado de participar dos ataques. Não revelou nem seu nome, nem seu suposto papel no Anonymous. Agiu para intimidar.

Talvez não seja uma postura eficaz. A Imperva, uma empresa internacional de segurança na net, estima que mil LOICs eram baixados por dia, até o emblemático 8 de dezembro. Em seguida, a taxa saltou para 10 mil downloads diários. É sintomático que a maior parte deles parta de internautas norte-americanos.

Qual o sentido e as perspectivas políticas do fenômeno Anonymous? O jornalista e sociólogo Sérgio Amadeu, um dos ativistas mais constantes e criativos na luta pela liberdade na internet no Brasil, enxerga antes de tudo, nos contra-ataques dos últimos dias, uma ação antiautoritária. “Mastercard e Visa, que intermidiam relações humanas essenciais, feriram a ética e a lei. Sem respaldo de nenhum processo legal, bloqueram o direito de milhares de cidadãos a contribuir com o Wikileaks. A resposta adotada é nova – mas tem o mesmo sentido humanizador exercido pelas greves, no alvorecer do capitalismo. E indica, mais uma vez, a importância, para certos temas, de mobilizações que ultrapassem as fronteiras nacionais”.

Amadeu enxerga um vasto futuro para tais iniciativas. “E se a agilidade da Operation Payback for empregada para combinar, em paralelo às ações virtuais, grandes protestos de rua? Ou semanas de boicote contra empresas que agem contra a democracia”?

Crescerá ainda mais, por fim, a batalha para manter a internet como território aberto, democrático, livre para circulação de conhecimentos e cultura. Amadeu arremata: “Os conservadores estão mostrando as garras. Mas os novos vazamentos do Wikileaks e a mobilização internacional do Anonymous mostram que eles podem não ter a última palavra”.

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