terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A "batalha final" contra Berlusconi

Reproduzo artigo de Maurizio Matteuzzi, do jornal italiano Il Manifesto, publicado no sítio Carta Maior:

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o confronto político na Itália nunca foi tão áspero e violento. Nem naqueles anos tórridos entre 1945 e 1948, quando a propaganda anticomunista agitava o fantasma dos “cossacos de Stalin acampados na Piazza San Pietro” de Roma e parecia que o que estava em jogo, na reorganização do mundo após a derrota do nazifascismo de Alemanha-Itália-Japão, era a futura posição internacional da Itália: entre os Estados Unidos da América e a Democracia Cristã de um lado e a União Soviética e o Partido Comunista Italiano de outro (mesmo que, na realidade, a decisão já tivesse sido tomada na conferência entre Stalin, Churchill e Roosevelt de fevereiro de 1945).

Silvio Berlusconi, chefe do governo, dono de cadeias televisivas e jornais, homem dos mais ricos da Itália e do mundo, chegou à batalha final (palavras suas) com a Justiça que há 20 anos tenta – até agora inutilmente – chamá-lo prestar a infinidade de contas pendentes – da corrupção à humilhante “instigação à prostituição de menores” de agora.

O “Cavaliere”, como o chamam na Itália (e antes dele já houve um ilustre predecessor assim definido, o “Cavalier Benito Mussolini”) – ou “il Caimano” [“o Caimão” (jacaré)], como o chamam agora, a partir do título de um filme profético de Nanni Moretti de 2006 – levou o confronto político a um nível que muitos definem golpista. Uma espécie de golpe sutil e rasteiro, que ele ameaça e pratica, valendo-se da maioria parlamentar conquistada nas últimas eleições políticas de 2008, mas que agora está em vias de esfacelamento e reduzida a uns poucos votos (o que o obriga a uma campanha extenuante e incessante de captação de deputados na Câmara e no Senado no varejo); e, sobretudo, valendo-se das pesquisas de opinião (cujo prazo de vencimento é quase quotidiano) que, assegura, confirmam o índice de aprovação em torno dos 50% que o torna “o chefe de governo mais popular do Ocidente”.

Ainda que outras pesquisas digam que o índice despencou, nos últimos meses, dos 50 para 30%, é preciso reconhecer que se trata de um dado relevante e inquietante que confirma uma base sólida do “berlusconismo”. E não torna em nada seguro, no desencanto generalizado do país em relação à política e no vazio da proposta apresentada pelo principal partido de oposição – o Partido Democrático (PD), herdeiro cada vez mais pálido do velho PCI [Partido Comunista Italiano] e acrescido de alguns ex-DC [Democracia Cristã], uma formação litigiosa, sempre dividida sobre tudo e guiada por um líder (o ex-ministro Pierluigi Bersani) que não consegue impor a sua liderança –, que nas próximas eleições políticas, com toda probabilidade antecipadas para este ano ao invés do prazo natural de 2013, uma coalizão de centro-esquerda (cada vez mais de centro que de esquerda) com o PD na cabeça possa pôr a palavra fim a Berlusconi e ao “berlusconismo”.

“Il Cavaliere” ou “il Caimano”, inscrito na loja maçônica P-2 do “venerável” Licio Gelli (portador de um projeto subversivo e protofascista na Itália e também na América Latina) começou a sua carreira de empreendedor, cheia de cantos escuros, nos anos 80 graças aos favores de Bettino Craxi, ex-líder do Partido Socialista Italiano e ex-primeiro ministro que acabou mal (morto em 2000 na Tunísia, em Hammamet, onde estava refugiado depois de ser condenado pela Justiça, em última instância, por corrupção e malversação). Se fez conhecer como proprietário do grande Milan, o time de futebol que naqueles anos jogava divinamente e vencia tudo, e depois com as suas televisões, nas quais se fazia largo uso das tetas e das bundas de “garotas” provocantes.

Uma marca de fábrica que hoje, quem sabe, será marca do próprio fim e que o acompanhou por toda a sua carreira política – depois que se decidiu, em 1994, à frente do seu novo partido “Força Itália”, a “ir a campo como se vai a uma guerra”. Contra os “juízes politizados” (as “togas vermelhas”) que começavam a interpelá-lo; contra os comunistas que, ainda que em extinção, ele via por todo lado, prestes a meter as mãos nas suas riquezas e propriedades; contra “le tasse” (quando se tornou primeiro ministro, caso provavelmente único na história, incitou os cidadãos a sonegar os impostos – um esporte, diga-se de passagem, já há muito praticado na Itália) e, naturalmente, para afirmar os “valores liberais” e “a liberdade” tout court.

Berlusconi foi chefe de governo por quatro vezes: de 1994 a 1995, de 2001 a 2005, de 2005 a 2006 e de 2008 até hoje. E até quando? “O Caimão” é um animal duro de matar e capaz de tudo. Porque, na verdade, ele “foi a campo” para salvar a própria cabeça. A sua carreira política como chefe de governo guiou-se sempre por um único objetivo de fundo: salvar-se. Salvar-se, graças a um exército de advogados e a um rio de dinheiro, dos juízes que, no decorrer dos anos, acumulavam provas sobre provas dos seus malfeitos. Por isto que como “premier”, além das tantas “reformas liberais” prometidas, promoveu e impôs quase exclusivamente uma infinidade de leis “ad personam”. A sua.

Leis que conseguiram ou tentaram limitar os poderes dos juízes, submeter o Ministério Público ao controle do governo, eliminar o instrumento das interceptações telefônicas (aquelas pelas quais agora ele se vê encurralado) determinadas pela magistratura (e que se mostraram essenciais, por exemplo, na luta contra a Máfia, à qual se descobriu que eram muito ligados alguns dos homens mais próximos a ele...). Leis que lhe devolviam a imunidade e o colocavam a salvo da “perseguição judiciária” das “togas vermelhas”. Até hoje, sempre se deu bem. Processos prescritos por decurso de prazo, algumas absolvições, uma sequela sem fim de recursos, reenvios, exceções, falácias apresentados pelos seus advogados.

Desta vez parece mais difícil. É simbólico que o tropeço tenha relação com as mulheres, cruz e delícia da sua vida desde quando dava uma de “entertainer” e cantor em navios de cruzeiro.

Quando os seus shows eróticos já eram de domínio público, mas ainda não oficiais, a carta da sua esposa (agora ex) a um jornal, no fim de 2007, e uma outra em 2009, precipitaram os acontecimentos. “Meu marido me deve desculpas”, escreveu Veronica Lario, “é uma pessoa doente”. Doente de sexo. Não apenas belas garotas que depois recompensava com dinheiro e presentes, mas também com cargos no parlamento ou mesmo no governo (a ex-show girl Mara Carfagna, estrela de calendários sexy, ministra da igualdade de oportunidades; Maristela Gelmini, ministra da instrução...), mas também, dava a entender a senhora, garotinhas menores de 18 anos.

Desde então, depois da separação (cara em termos econômicos, mas o dinheiro para ele não é problema), o velho sexômano –com quase 75 anos de mau comportamento – não conheceu mais limites de decência ou discrição, ostentando, ao invés disto, em qualquer ocasião, uma “virilidade” em contraste cada vez mais gritante com uma decadência física irrefreável, tornada ainda mais patética pelos contínuos recursos à cirurgia plástica (implante de cabelos, lifting do rosto...) e temperada por gafes aparentemente impensáveis para uma pessoa que é chefe de governo de um país ocidental e europeu de primeiro escalão. Como quando diz: melhor ir atrás de mulheres do que “ser gay”. Exibição, ostentação de riqueza, de poder, de mulheres que evidentemente pensa que agradam – infelizmente com certa razão – àquela parte da Itália que se reconhece nele e o inveja. Ele fala às tripas do país.

O segundo golpe veio em 2009, quando Patrizia D’Addario, uma garota de programa (ou “escort”, como agora se chamam na Itália as prostitutas de luxo), contou das festinhas e orgias às quais ela e outras garotas eram convidadas – mediante pagamento – inclusive na residência romana de Berlusconi, no Palácio Grazioli, a dois passos da sede do governo e do parlamento. Garotas carregadas em aviões oficiais para participar de encontros em uma das “vilas” de Berlusconi na Sardenha, garotas recrutadas para as festas na sua “vila” di Arcore, às portas de Milão. “Il Cavaliere” agora era também “il Sultano”, a cujo harém os seus tantos vizires levavam carne fresca, frequentemente arregimentada entre as “girls” dos shows de TV de “Sua Emitência”.

Os problemas começaram quando se deixou escapar que esta carne fresca tinha, frequentemente, menos de 18 anos. Primeiro, em 2009, uma garotinha muito despachada de Napoli, Noemi Letizia, que chamava Berlusconi de “papi”; depois, em 2010, a provocante marroquina (agora) de 17 anos Ruby, nome de guerra “Ruby Rubacuori” [“Ruby Roubacorações”], em meio a uma caterva multinacional de “escorts” ou “starlets” (inclusive uma menor ítalo-brasileira) jovens, belas, dispostas a tudo para “estourar”.

Com Ruby, Berlusconi não recuou – no seu delírio senil de onipotência – nem mesmo diante de um possível caso internacional. Quando a garota foi detida em maio de 2010 em Milão por um pequeno furto, telefonou pessoalmente ao dirigentes da polícia milanesa para fazer com que a liberassem porque, disse, “era a sobrinha de Mubarak”, presidente do Egito, e exigiu que fosse libertada e confiada a uma das suas garotas de confiança, a sua ex-“higienista dentária”, protagonista e organizadora de festinhas à luz vermelha e depois recompensada com a eleição para deputada regional da Lombardia (a região de Milão).

Dali começaram os seus problemas que, nestes meses, têm incendiado o clima político italiano e levado o país à beira de uma crise institucional sem precedentes. Os juízes de Milão o acusaram e querem processá-lo rapidamente – o anúncio foi feito em 15 de fevereiro e o processo é anunciado para abril – por “concussão” (o delito que comete um agente público ao exigir favores ou serviços valendo-se do seu status) e, ainda mais inflamante, por “indução à prostituição” de menores.

Ele já disse que o processo é um “atentado à democracia”, à “autonomia do parlamento” e uma “violação da soberania popular” que o elegeu, chegou a falar de um “golpe moral” e, salvo alguma reflexão, disse se recusará a apresentar-se diante dos “juízes politizados de esquerda”, detonando um conflito perigosíssimo entre os poderes do Estado. O governo, sacudido pela crise econômica que em 2008 golpeou pesadamente também a Itália (onde todos os índices estão no vermelho e o desemprego dos jovens é de quase 30%), está empenhado apenas em salvar o primeiro ministro.

O parlamento está paralisado porque o Partido da Liberdade (PDL) do “premier” perde os pedaços e, mesmo que em 14 de dezembro tenha conseguido sobreviver – com uma custosa “campagna acquisti” [campagna de aquisições] como quando era presidente do Milan – a uma moção de desconfiança depois da clamorosa ruptura com Ginafranco Fini, líder do partido pós-fascista Aliança Nacional (AN) e presidente da Câmara baixa, na prática já não tem mais maioria e depende cada vez mais do abraço mortal da Liga Norte – partido racista e xenófobo – de Umberto Bossi. O presidente da República, o ex-comunista (mas da ala social-democrata) Giorgio Napolitano, adverte que poderia dissolver o parlamento e convocar eleições antecipadas. O que ninguém – nem da direita de Berlusconi, nem da direita de Fini (que recentemente fundou um novo partido que gostaria de resgatar para si a posição de uma direita civilizada, à européia), nem do centro-esquerda do PD – demonstra apreciar neste momento. Nem falemos daquela que era chamada de “a esquerda radical”, que as eleições de 2008 expulsaram do parlamento pela primeira vez desde o fim da guerra, ainda que Nichi Vendola – governador da Região da Puglia, que já lançou a sua candidatura a “premier” em vista das próximas eleições gerais – represente, a seu modo, uma novidade e busque apresentar-se como uma alternativa credível em relação à velha política politiqueira (com efeito, constitui uma certa anomalia, na sua veste de “comunista, católico e gay”).

Este vazio constitui um caldo de cultura favorável à anti-política (“são todos iguais”) e à direita, a Berlusconi (amigo de Bush e de Putin, de Mubarak e de Kadafi) com as suas pulsões subversivas e golpistas.

Neste 17 de março, serão celebrados os 150 anos da proclamação da unidade da Itália, em 17 de março de 1861. Se, desta vez, “il Cavaliere”, “il Caimano”, “il Sultano” finalmente caísse, seria em certa medida uma espécie de refundação ou renascimento do país. Mas não será fácil, nem pela via política, nem pela via judiciária. E, mesmo livrando-se de Berlusconi, será muito difícil, depois de 20 anos, livrar-se do berlusconismo.

* Tradução: Rodrigo Torres Guedes.

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