sábado, 16 de abril de 2011

Tragédia de Realengo e mídia macabra

Reproduzo artigo de Washington Araújo, intitulado "Perguntas, mortos e feridos", publicado no Observatório da Imprensa:

Manhã do dia 7 de abril de 2011, uma quinta-feira como outra qualquer na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, Zona Oeste do Rio. Passos apressados levam Wellington Menezes de Oliveira, um ex-aluno de 24 anos, a entrar por volta das 8h20m na sala de aula nº 4 do 2º andar dizendo que vai fazer uma palestra. Coloca a bolsa em cima da mesa da professora, saca dois revólveres e dá início a um massacre em escola sem precedentes na História do Brasil. Nos minutos seguintes, a atrocidade deixa 12 adolescentes mortos e 12 feridos.

As 96 palavras que escrevi no parágrafo acima fazem uso de 444 caracteres sem espaço para contar que foram assassinados 12 jovens em Realengo e feridos 190 milhões de brasileiros. O resto da história ficará estampado nos telejornais e nos programas de auditório da televisão. Continuará pendurado nos portais noticiosos e também nos blogues da internet. E será recitado por apresentadores e comentaristas de rádio do Brasil.

Saímos da tragédia para investir com armamento pesado na repercussão. Em um primeiro momento a corrida pela emoção nublava de vez qualquer iniciativa de investigação jornalística. Não importa sabermos que a “objetividade” deve ser perseguida a todo custo, em casos como o de Realengo a própria objetividade se encontra presa de pesares e aflições indizíveis. Havia 10 caminhos a percorrer:

1. Testemunhos dos alunos sobreviventes;

2. Testemunhos do policial militar que cumpriu a missão de sua vida: interromper o massacre matando o autor;

3. Testemunho passivo das câmeras de vigilância da Escola colocadas no corredor do 2º andar;

4. Testemunhos dos pais e parentes das jovens vítimas e também das que se encontram em tratamento intensivo nos hospitais cariocas e testemunhos da professora e de outros funcionários da Escola Municipal Tasso da Silveira;

5. Carta do assassino: sinais de distúrbio mental, sociopatia, fundamentalismo religioso, provável vítima de bullying, angústia sexual;

6. Visita exploratória à casa do assassino: tudo destruído, computador quebrado e destruído por fogo e depoimentos de familiares, vizinhos e conhecidos do alucinado Wellington Menezes de Oliveira;

7. Depoimentos de psicólogos sobre como tratar os sobreviventes da chacina e familiares das vítimas;

8. Depoimentos de defensores da tese do Desarmamento Total com convocação de novo plebiscito;

9. Depoimentos da presidenta Dilma Rousseff, do governador Sergio Cabral e do prefeito Eduardo Paes e decretação de luto oficial por três dias no país, no estado e na cidade do Rio de Janeiro;

10. Homenagens às vítimas nos campos de futebol (minuto de silêncio antes do início de vários jogos pelo Campeonato Brasileiro de Futebol; camisas de jogadores trazendo o nome de cada criança assassinada; balões brancos carregando seus nomes e cobrindo as torcidas; Bono Vox do U2 em show no Morumbi, em São Paulo, pedindo desarmamento e telão passando os nomes das 12 vítimas).

Todos sabem que a diferença entre o veneno e o remédio está na dose com que é ministrado. Observamos uma espécie de campeonato midiático-macabro a reportar o ocorrido em Realengo: cada veículo de comunicação desejava explorar algo ainda não explorado, mostrar todas as cores de sua indignação. É por isso que o Jornal Nacional (Globo) avisou logo: “Trazemos hoje uma edição especial”.

Especial porque Fátima Bernardes fez dobradinha com o marido-apresentador do JN William Bonner diretamente da Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo. É fato que, em menos de 24 horas, a tragédia de Realengo ganhou verbete na Wikipédia e já no começo da tarde da sexta-feira, 8, no Twitter, as hashtags #realengo e #tragedianorio lideravam a lista de trending topics do Brasil.

Pequenas testemunhas

As principais protagonistas da tragédia foram as crianças (pré-jovens?) sobreviventes. Elas foram “obrigadas” a contar uma a uma o que viram e o que sentiram e também o que pretendiam fazer no futuro. O (ab)uso dessas pequenas vítimas, sempre de forma tão intensa e tão desrespeitosa para com a dor que deviam estar sentindo era de estraçalhar o coração de qualquer um. Quase todos os repórteres pareciam abdicar, logo de partida, qualquer sentimento de sincera solidariedade pelo trauma que ainda estavam vivendo.

Seus olhos eram nervosos, as lágrimas que tinham eram logo contidas por uma nova pergunta. Eu me perguntava: “Meu Deus, será que não existe nada no tão celebrado ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) que possa proteger as crianças vítimas de violência da sanha predatória de nossa imprensa?” Ainda posso tentar lembrar o tipo de inquirição que elas, uma a uma, tinham que passar:

* A tia mandou que a gente corresse.

* O que eu fiz? Eu corri para ele não me matar antes. Corri, fiz só isso: corri para me salvar.

* O que você sentiu quando o assassino olhou para você?

* Ele me disse: fique quieto gordinho que você não vai morrer.

* Então vi minha amiga Laryssa com um tiro na testa e outro no peito.

* Saí correndo e vi uma menina caída na escada, ainda ajudei um pouco e depois corri.

* Se quero voltar à escola? Não, não quero mais. Se só não quero mais estudar nesta escola? Sim, nesta não.

* Ele me olhou com a cara assim como se estivesse rindo e começou a disparar. Meu amigo foi o primeiro que caiu.

* O que senti naquele momento?


Continuo pensando que os profissionais de imprensa, principalmente os que trabalham para emissoras de tevê, deveriam fazer algum curso para saber se portar com um mínimo de decência, um pouco que fosse de humanidade em uma situação como essa da escola em Realengo. Não preciso fazer cinco anos de faculdade de psicologia para compreender que situação tendo um franco atirador em sala de aula é mais que suficiente para gerar trauma profundo. E sei que ser induzido a desabafar suas emoções ao vivo e em cores, para todo o Brasil, em um, dois ou três diferentes telejornais certamente não faz parte de nenhum curso de primeiros socorros psicológicos para vítimas testemunhais de pesada violência.

Queremos apelar? Vamos lá, então. Se fosse a escola onde estudassem os filhos dos editores, dos apresentadores de telejornais, dos donos de revistas, das repórteres mais reconhecidas por seu talento e profissionalismo... será que seus filhos seriam obrigados a passar por todo aquele batalhão com agendas claramente inquisitoriais? Sei que a resposta é não. Não faltaria quem lhes dissesse algo como: “Não, minha filha não vai dar entrevista coisa nenhuma. Nem vem que não tem. O que ela precisa agora é de descanso, uma viagem, esquecer tudo isso e não lembrar tudo isso!”

E que ninguém tenha dúvida: seriam imediatamente atendidos.

3 comentários:

  1. Patricia Bandeira de Melo16 de abril de 2011 às 12:56

    Oi, Altamiro. Sou jornalista e pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (Recife). Ontem lancei o livro "Histórias que a mídia conta: o discurso sobre o crime violento e o trauma cultural do medo". Nele, analiso o espetáculo midiático em casos como João Hélio, Isabella Nardoni, Eloá. Este é mais do mesmo, com o mesmo objetivo, desejado ou não: promover o medo coletivo de crimes incomuns, raros e grotescos, de difícil repetição e de explicação improvável, apostando sempre na fórmula do abuso emocional das vítimas, tornando o sofrimento de dor um sentimento compartilhado de forma mediada pela audiência. São muitos a sofrer, mas nada a acrescentar.

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  2. Os cúmplices de Wellington

    É mais fácil culpar coisas inanimadas, doenças imprevisíveis, fatalidades misteriosas. Em vez de enfrentar a realidade escancarada pelo massacre do Realengo, a sociedade prefere esconder-se com a máscara do pacifismo amorfo. Prefere abominar o “monstro”. Ou, pior, prefere defender a volta do plebiscito sobre o desarmamento, reeditando uma farsa gigantesca inventada para dissimular o criminoso desinteresse das autoridades em de fato reduzir a posse ilegal de armas. Que, aliás, não tem nada a ver com o caso.

    Será que ninguém parou para indagar por que Wellington de Oliveira decidiu realizar seu ataque justamente na escola? O que o distingue de outros milhares de jovens humilhados, espancados e perseguidos cotidianamente senão a coragem (e, sim, a lucidez) para realizar aquilo que os outros apenas planejam por toda a vida? Ele não era uma vítima inocente, não merece nosso indulto, sequer nossa comiseração. Mas é razoável lembrar que os professores, funcionários, parentes e alunos que toleraram as violências sofridas por Wellington durante anos foram, em alguma medida, cúmplices de uma tragédia que poderia ter sido evitada.

    http://www.guilherme.scalzilli.nom.br/

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  3. Patricia Bandeira de Melo6 de maio de 2011 às 21:46

    Cuidado Guilherme, ao achar que a culpa retorna para os que acabaram vítimas reduz tudo a um direito eterno de vigança, e todos sempre terão algum motivo para planejar mortes e executá-las... e quantos tiveram que trabalhar as circunstâncias das quais foram vítimas, em terapia ou em superação pessoal, sem ajuda alguma? E no fundo, quem nunca foi vítima de alguém, em algum lugar, ao longo da vida? Um chefe tirano, um pai agressivo, um motorista que nos tranca na rua... sempre vai haver motivo. Todos nós somos, assim, vítimas e algozes. Pra mim, é preciso assumir que não controlamos mentes, e sempre vão acontecer crimes que fogem do controle social. Wellington não precisava ter sido vítima para fazer o que fez, bastava para isso acreditar que de fato foi vítima (uma fantasia psicótica), e faria o mesmo, o resultado seria o mesmo... ou achar que era uma missão religiosa, que havia recebido uma ordem divina...

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