quarta-feira, 4 de maio de 2011

Abusos e ilegalidades em Guantánamo

Reproduzo reportagem de Mónica Ceberio Belaza, Luis Doncel, José María Irujo e Francisco Peregil, do jornal El País, traduzida e publicada no sítio do Instituto Humanitas Unisinos:

A divulgação por parte do Wikileaks de quase 5.000 documentos secretos nos quais o Pentágono avalia mais de 700 presos de Guantánamo põe a descoberto um sistema jurídico onde as violações dos direitos humanos são constantes. O El País, junto com outros meios internacionais, teve acesso aos expedientes em que altos comandantes militares norte-americano detalham e rubricam com sua assinatura esta cadeia de abusos.



Guantánamo criou um sistema policial e penal sem garantias no qual importavam apenas duas coisas: a quantidade de informação que se obteria dos presos, mesmo que fossem inocentes, e se poderiam ser perigosos no futuro. Idosos com demência senil, adolescentes, doentes psiquiátricos graves e professores de escola ou trabalhadores rurais sem nenhum vínculo com a jihad foram levados ao presídio e misturados com verdadeiros terroristas, como os responsáveis pelo 11-S. O El País teve acesso, junto com outros meios de comunicação internacionais e através do Wikileaks, às fichas militares secretas de 759 dos 779 presos que passaram pela prisão, cerca de 170 dos quais continuam presos.

As entranhas da prisão estão expostas em 4.759 folhas assinadas pelos mais altos comandantes da Força Conjunta da base e dirigidas ao Comando Sul do Departamento de Defesa em Miami. A radiografia de uma prisão criada por George W. Bush em 2002 à margem das leis nacionais e internacionais chega em um momento ruim para o presidente Barack Obama. Fechar o presídio foi sua primeira promessa após assumir o cargo, em janeiro de 2009. O anúncio, há um mês, de que reiniciaria os julgamentos nas comissões militares foi o reconhecimento de seu fracasso.

Os relatórios, com datas que vão de 2002 a 2009, que na maioria dos casos têm como finalidade recomendar se o preso deve continuar na prisão, ser libertado ou transferido para outro país, documentam pela primeira vez como os Estados Unidos avaliavam cada um dos internos e o que sabiam sobre eles. Revelam um sistema baseado em delações de outros internos, sem normas claras, baseado em suspeitas e conjecturas, que não necessita de provas para manter uma pessoa presa durante muito tempo – 143 pessoas estiveram presas mais de nove anos – e que estabelece três níveis de risco, definidos com apenas uma frase. O nível mais alto só supõe que a pessoa “provavelmente” representa “uma ameaça para os Estados Unidos, seus interesses e aliados”; o médio, que “talvez” o represente; e o baixo, nível em que aparecem catalogados presos que estiveram oito e nove anos na prisão, que é “improvável” que representem um risco para a segurança do país.

Há casos, segundo revelam os relatórios secretos, nos quais nem sequer o Governo dos Estados Unidos sabe os reais motivos pelos quais a pessoa em questão foi transferida para Guantánamo, e outros nos quais se concluiu que o detento não representava perigo algum: um idoso de 89 anos com demência senil e depressão que vivia em um complexo residencial em que apareceu um telefone por satélite; um pai que ia buscar seu filho na frente talibã; um comerciante que viajava sem documentação; um homem que fazia uma parada para comprar remédios.

Os Estados Unidos determinaram que 83 presos não representavam nenhum risco para a segurança do país, e de outros 77 se reconhece que é “improvável” que sejam uma ameaça para o país ou seus aliados. 20% dos presos foram conduzidos à prisão de forma arbitrária, segundo as próprias avaliações dos militares norte-americanos. Se a esse dado se acrescenta que apenas “talvez” pudessem representar um perigo, 274 no total, conclui-se que os Estados Unidos não acreditavam seriamente na culpabilidade ou ameaça de quase 60% de seus prisioneiros. Eram mantidos presos fundamentalmente para “explorá-los”, segundo sua própria terminologia; para ver se sabiam de algo que pudesse ser útil.

Guantánamo é uma prisão, mas a prioridade não é impor sanções por crimes cometidos. Apenas sete foram julgados e condenados até o momento: seis nas comissões militares da base e um em um tribunal civil de Nova York. O que se pretende fundamentalmente, segundo mostram os relatórios, é obter informações através dos interrogatórios. Um dos dois parâmetros que se utiliza para decidir se um preso pode ser libertado ou não é precisamente seu “valor de inteligência”, segundo a terminologia empregada nas fichas secretas.

A prisão funciona como uma imensa delegacia de polícia sem limite de permanência e em que o tempo do castigo não é proporcional ao suposto fato cometido. As fichas secretas mostram alguns reclusos sendo tratados como supostos culpados que devem demonstrar não apenas sua inocência, mas sua falta de conhecimento sobre a Al Qaeda e os talibãs para obter a liberdade. O único crime que as autoridades atribuem a alguns deles foi ter um primo, amigo ou irmão ligado à jihad; ou viver em um povoado em que houve ataques importantes dos talibãs; ou viajar por estradas usadas pelos terroristas e, portanto, conhecê-los bem.

Apesar de seu empenho em obter informações na luta contra o terrorismo, nove anos e três meses depois da abertura de Guantánamo, os relatórios secretos revelam que apenas 22% dos presos apresentaram um nível de interesse alto para os serviços de inteligência dos Estados Unidos. Nos 78% restantes, o valor informativo dos presos era médio ou baixo, segundo reconheceram os próprios militares.

Os detentos viram o rosto de muitos interrogadores: militares, agentes da CIA e policiais de seus próprios países que desfilaram secretamente por suas celas, entre eles espanhóis, e tomaram declarações algemados e presos por uma argola ao chão. A atividade nos campos de treinamento terrorista no Afeganistão, os experimentos com explosivos, a fixação dos jihadistas para conseguir a chamada “bomba suja”, o trato e proximidade com Osama Bin Laden, Al Zahawiri ou o mulá Mohamed Omar eram objetivos prioritários. Um relógio Casio F91W no pulso de um preso era considerado prova suficiente de que havia recebido formação de explosivos.

Os documentos revelam novos detalhes sobre os 16 presos de alta segurança vinculados com os atentados do 11-S. O cérebro do massacre, Khalid Sheikh Mohammed, ordenou em 2002 a outro preso um ataque suicida contra o então presidente do Paquistão, Pervez Musharraf. Na realidade, tratava-se somente de uma prova de sua disposição em “morrer pela causa”.

Os expedientes não especificam os métodos usados para obter a informação na prisão. A palavra tortura não aparece nos quase 800 documentos. Contudo, o que aparece são as delações de seus ex-companheiros de luta e que chegam às centenas. Em cada expediente costuma haver um parágrafo sob o epígrafe “Razões para continuar preso”. Se o próprio detento não admite ter jurado lealdade a Bin Laden ou ter lutado contra os Estados Unidos nas montanhas de Tora Bora, são seus próprios companheiros que aparecem com nomes e sobrenomes delatando-o ou identificando-o. A lista de delatores vai desde a hierarquia mais alta à mais baixa dos extremistas.

Mas em nenhum momento se informa em que circunstâncias os presos admitiram sua suposta culpa ou incriminaram outros. Às vezes, um preso declara sofrer tortura, mas o próprio redator do relatório se encarrega de afirmar que essa declaração não tem nenhuma credibilidade. No entanto, de alguns não havia maneira de tirar informações. “Estou preparado para estar em Guantánamo 100 anos caso for preciso, mas não revelarei nada”, declarou o kuaitiano Khalid Abdullah Mishal al Mutairi aos seus interrogadores.

Os relatórios são textos frios, de prosa administrativa. Detêm-se apenas em questões pessoais como as tentativas de suicídio, o estado de saúde ou as greves de fome e, no caso do rosário de presos com doenças psiquiátricas se, apesar de seu transtorno (acompanhado muitas vezes de múltiplas tentativas de tirar a vida), pode ser útil continuar a lhes fazer perguntas.

Trataram inutilmente de submeter a um interrogatório final o afegão Kudai Dat, diagnosticado de esquizofrenia, apesar de ter sido hospitalizado com sintomas agudos de psicose. Quando melhorou, levaram-no ao polígrafo, provocando de novo alucinações no enfermo, de acordo com um relatório psiquiátrico da prisão. Seu prognóstico a longo prazo era “pobre”. Mas, apesar da ficha médica, a autoridade militar assegurava que fingia ataques de nervos e se recomendou mantê-lo na base. Passou quatro anos trancado.

Os documentos são extremamente protocolares, mas sob a linguagem administrativa se vislumbram informações que oferecem um retrato das condições de vida no presídio. Quando se fala da conduta do preso, por um lado se registram as infrações disciplinares e por outro as agressões. Qualquer incidente se faz constar sem detalhes: “Inapropriado uso dos fluidos corporais, comunicações desautorizadas, dano sobre as propriedades do Governo, incitar e participar de distúrbios em massa, tentativa de ataques, ataques, palavras e gestos provocativos, posse de comida e contrabando de objetos que não são armas...”.

Tudo é contabilizado e registrado. Mas apenas se traz informação concreta sobre o último incidente disciplinar. E é, precisamente, aí nessa passagem fugaz de apenas uma linha onde aparecem lampejos da dura vida em Guantánamo: a maioria dos presos jogou urina e fezes nos vigias. Nunca se especifica quais são os castigos que sofrem por essas ações nem em que contexto foram perpetrados. Outros detentos foram repreendidos por cobrir a ventilação de sua cela com papel higiênico, devolver um livro à biblioteca sublinhado ou com marcas, recusar a comida ou negar-se a sair para tomar banho.

As fichas oferecem, além disso, uma breve biografia de quase todos os homens que passaram pelas celas de Guantánamo. A gama de motivos que os levaram a participar da jihad ou a ter vínculos com redes islâmicas é muito variada: vai desde o saudita que se comprometeu com a causa após ver um vídeo onde se mostravam as arbitrariedades que os russos cometeram contra os muçulmanos na Chechênia, passando pelo francês que viajou ao Afeganistão para continuar seus estudos do Islã e viver em um Estado puramente islâmico, até o saudita que, desejoso de encontrar uma esposa, entrou em um campo de treinamento com a esperança de emagrecer. “No verão de 2001, um homem sugeriu ao preso viajar ao Afeganistão para cumprir com suas obrigações religiosas durante dois meses. O regime de treinamento físico lhe ofereceria também a oportunidade para perder peso”, garante a ficha de Abdul Rahman Mohammed Hussain Khowlan.

Da documentação se extraem não apenas conclusões sobre a motivação que levou tantos homens a Cabul, Kandahar ou às montanhas de Tora Bora. Também é possível desenhar um perfil com os pontos em comum da maioria, independentemente de se são de algum país europeu, argelinos, iemenitas ou filipinos.

Antes de entrar na prisão norte-americana, muitos viajaram constantemente pelo mundo árabe-muçulmano. São abundantes os relatos de homens que cruzam a fronteira do Paquistão para o Afeganistão a pé ou que conversam com outros ativistas em uma mesquita da cidade paquistanesa de Lahore. As fichas explicam também como os islâmicos se apóiam entre si através de uma rede de pontos de encontro – seis dos sete franceses presos passaram por uma casa de hóspedes que denominam “dos argelinos”, na cidade afegã de Jalalabad –, do dinheiro que membros da rede lhes proporcionavam – os documentos mencionam que muitos detidos são presos com 10.000 dólares, a quantidade típica que a Al Qaeda entrega aos seus ativistas –, ou de organizações de caridade como a Al Wafa que, segundo as autoridades dos Estados Unidos, contribuem para financiar as atividades terroristas.

Mas em muitas ocasiões o fato de viajar pela zona se converte em uma atitude suspeitosa que envia sem mais à prisão dezenas de pessoas. Em uma nota de apenas duas páginas se relata a passagem de Imad Achab Kanouni pela Alemanha, Albânia, Paquistão e Afeganistão. Na parte referente às razões para justificar sua permanência em Guantánamo, é acusado de não ter sido capaz de explicar as condições de sua viagem ao Afeganistão. Não há uma única prova que o incriminasse. Apesar disso, o general Geoffrey Miller – responsável também pela prisão iraquiana de Abu Ghraib – recomenda sua permanência na prisão.

Os relatórios também citam a Espanha; Hamed Abderramán, o chamado talibã ceutense [referência a Ceuta, cidade do Marrocos], condenado pela Audiência Nacional e depois absolvido pelo Tribunal Supremo ao invalidar as provas obtidas sem nenhuma garantia por policiais espanhóis na prisão; e Lachen Ikasrrien, um marroquino residente na Espanha que teve a mesma sorte judicial que Hamed e que se negou, durante os cinco anos de prisão, a reconhecer vínculos com a Al Qaeda.

Os três presos acolhidos pela Espanha em 2010 – um palestino, um iemenita e um afegão – são uma pequena mostra das patologias do sistema penitenciário. Um é um doente mental com graves problemas que mantiveram preso e submeteram a interrogatórios durante vários anos; outro, que esteve às ordens de Bin Laden em Tora Bora, admitiu colaborar com os Estados Unidos; e o terceiro, contra o qual nunca houve provas fidedignas, foi qualificado de problemático. É, contudo, o único que, no momento, conseguiu ter uma vida relativamente normal em nosso país.

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