domingo, 24 de julho de 2011

Amy Winehouse e a sociedade do consumo

Por Maurício Caleiro, no blog Cinema & Outras Artes:

Ainda que soe chocante tal afirmação, seria inexato dizer que o anúncio da morte de Amy Winehouse surpreendeu as pessoas – as inúmeras e frequentes recaídas, as rehabs mil, e o estado físico e psicológico da cantora sugeriam que esse seria um fim provável, ainda que talvez não se esperasse que ocorresse tão cedo.



Mas o fato choca, é claro, pelo que diz sobre os tempos atuais, sobre a interrogação que nos lança a respeito do que nos transformamos enquanto sociedade, sobre a banalidade da vida em uma era em que o consumo de tudo – bens materiais, drogas, fama, embelezamento artificial – tem de ser intenso e insaciável, mesmo que o preço a pagar seja a própria vida.

Comparações

Nas redes sociais, neste momento, chovem comparações entre a cantora e a tríade de jovens mártires da contracultura formada por Jim Morrison, Janis Joplin e Jimi Hendrix – os “meus heróis morreram de overdose” a que se refere Cazuza, outro que cedo nos deixou.

Ainda que as drogas tenham desempenhenhado um papel fundamental em todas essas mortes (incluindo a de Amy, mesmo que a causa mortis venha a ser outra), não parece uma comparação procedente: as mortes dos três músicos dos anos 60 derivam de um mergulho tão desmedido quanto apaixonado num novo modo de vida, anticapitalista, comunitário, em que a primazia do econômico e do racional desse lugar ao cósmico, ao energético, ao intuitivo. E é justamente como meio de intensificação de manifestação destas forças (hoje novamente subvalorizadas) que as drogas - como “expansoras da consciência”, segundo o mote do “papa do LSD”, Timothy Leary -, tiveram então um papel central.

The dream is over

A tragédia maior da morte da tríade de músicos deriva, portanto, justamente da desmistificação não só do poder social das drogas, mas, em um nível muito mais profundo, da evidência da inviabilidade do projeto contracultural de transformação do mundo que Janis, Jimi e Morrison representavam.

“O sonho acabou”, decretaria John Lennon algum tempo depois, relegando os anos 60 – que o crítico neomarxista Fredric Jameson definiu como um período marcado por “uma imensa e inflacionada emissão de crédito superestrutural” - a objeto de culto de jovens de todas as idades, saudosos do que não viveram.

Porém, ainda que os neocons torçam o nariz e que os mais sensíveis se espantem com a comercialização de camisetas de grife com a face de Che Guevara estampada, o legado dos anos 60 permanece como força ideológica e política, como eventos tão díspares como a campanha presidencial de Obama e as novas relações trabalhistas adotadas por algumas das mais avançadas e bem-sucedidas empresas do mundo o demonstram.

Sob a marca do efêmero

O triste fim de Amy Winehouse, cantora de talento evidentíssimo, voz e técnica vocal únicas e excepcional presença de palco, pertence a outro âmbito, o do niilismo e da falta atual de perspectivas, no marco da passagem de “de uma sociedade da satisfação administrada para uma sociedade da insatisfação administrada”, na qual, ante a satisfação de um desejo, a recompensa do ego é tão fugaz que, mal consumado, outra demanda é imediatamente colocada, e assim sucessivamente – como diagnostica Vladimir Safatle, em sua releitura de Lacan. Amy, vida e morte, é só a parte visível de um amplo e preocupante fenômeno, cuja principal vítima é a juventude.

Deriva dessa toada a talvez mais chocante constatação ante a morte da cantora: faz só oito anos que, discretamente, o álbum Frank foi lançado, e três que o sensacional Back in Black chegou às lojas, transformando-a definitivamente em um fenômeno midiático, arrebatando legiões de fãs e fazendo com que seu visual fosse copiado por adolescentes de todo o planeta.

Talvez seja por isso que, embora Amy Winehouse nos deixe aos 27 anos de idade, a impressão é a de que morre uma adolescente. O que traz toda a sensação de desperdício e de necessidade de reflexão social que uma tal perda acarreta.

4 comentários:

  1. Excelente artigo: realmente Amy se autocanibalizou. Triste fim para um grande talento.

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  2. Efêmera a passagem de Amy pela vida, mas efêmera é a vida de quantos adolescentes por nossas periferias. Não se trata de uma chamada piegas pelo voluntariado, mas a reflexão pelo modo como temos levado a nossa vida e a de nosso planetinha.
    Quão fútil estamos dispostos a levar nossa existência? A questão que nos está colocada aparece poeticamente na letra de Lobão na forma do dilema: "viver dez anos a mil ou mil anos a dez?"
    Amy fez isso... Condená-la simplesmente? Não me parece razoável. A produzimos, e isso é a questão. Nos deixamos consumir pelo próprio consumismo. Cadê a pretensão totalizante? Cadê os projetos de sociedade? Estamos mergulhados na mesquinhez do edonismo? Matamos nossas musas a permitindo entregar-se à morte, pela inconsequência? Onde estávamos quando ela precisou de um abraço amigo, sem cálculo de custo-benefício? Precisamos rever a máquina de moer celebridades que inventamos. As inflamos e as destruímos, tornando-as objeto de nossa "mídia". Viva o espetáculo, viva a imagem! Vamos consumir a morte e o funeral de Amy Winehouse. Este é o produto da semana, está em promoção no shopping dos meios de comunicação. Temos carne fresca no mercado e precisamos alimentar nosso dragão.
    Assista ao vivo e a cores o resultado de nosso trabalho. E agora? Não sei. Ainda!...

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  3. Altamiro
    .
    Post muito bem escolhido. Parabéns e obrigado.

    Rogerio Schneider

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