terça-feira, 9 de agosto de 2011

Carta a Piñera e à sua ditadura no Chile

Por Tito Tricot, no sítio espanhol Rebelión:

Provavelmente, você jamais vai ler esta carta e, na verdade, pouco me importa. Contudo, quero que saiba que escrevo a você em Valparaíso, aquele porto ferido em uma madrugada de setembro de 1973 por militares e civis que defendiam seus privilégios. Vestiram-se de guerra para ocupar minha cidade, a de meus pais e avós. A cidade de meus amigos do bairro, do colégio, dos passeios pela orla, do primeiro beijo apressado e desajeitado.



Minha cidade foi ocupada sem misericórdia por um golpe militar, no meio de seu espanto. Minha cidade foi torturada, entre gritos arrancados e estupros de mulheres indefesas. Foi desaparecendo, pouco a pouco, no mar e nas montanhas, os “desaparecidos” em um país sem memória. Mudaram a cidade, moveram as praças, suas padarias, suas praias, suas histórias. Tudo isso aconteceu na madrugada em que a ocuparam, sem misericórdia, para defender seus privilégios.

Como hoje que, 38 anos depois e em pleno inverno, ela foi tomada pela força policial. Cercaram, confinaram, agrediram, usaram gás e os golpearam com um rápido servilismo. Era a ditadura: os mesmos uniformes, as mesmas armas, a mesma brutalidade. Mas é a sua ditadura, Piñera. Os mesmos cachorros, peço desculpas aos cachorros. Os mesmos filhos da puta, com o perdão às prostitutas. Seus cachorros e seus filhos da puta que espalharam o terror no porto, reprimindo os estudantes que somente lutam por uma educação digna.

Provavelmente, você nunca vai ler esta carta e, na verdade, pouco me importa. Mas quero que saiba que esta cidade, seu plano, suas montanhas, suas estrelas e, sobretudo, as pessoas, esta noite abriram as janelas, os becos, as varandas, os elevadores para se unirem em um grito de liberdade que soou limpo através de um céu anil. Um panelaço, uma canção, um suspiro e a imensa raiva de sentir, mais uma vez, o ódio dos ricos. Seu ódio. Porque isso foi o que se viveu hoje, não só em Valparaíso, certamente, mas em todo o país, quando o exército policial de ocupação saiu para defender o lucro na educação, arrastando tudo: homens, mulheres e crianças.

Como na ditadura, mas na democracia. Sua democracia, onde você decide quem marcha, aonde se marcha, quando se marcha e como se marcha. Onde seu ministro do Interior ameaça e reprime sem pausa, sem hesitação e sem vacilar, como fazem os ministros do Interior das ditaduras. Sua democracia supervisionada, militarizada, repressora e tão pouco democrática que não suporta o povo nas ruas: que se organiza, que reflete, que pensa, que protesta e luta para construir um país digno. Porque esta é uma democracia indigna: uma democradura. Sua democradura.

Provavelmente, você nunca vai ler esta carta e, de verdade, pouco me importa. Contudo, quero me despedir com uma certeza: nada o que faça ou diga poderá reverter o desmoronamento de um sistema feito pelos ricos e para os ricos. Talvez não seja de imediato. Mas o orvalho da manhã foi disseminado pelo movimento estudantil e aquela frescura da juventude anuncia a mudança de ventos.

* Tradução de Sandra Luiz Alves.

Um comentário:

  1. Que força extraordinária tem a palavra! E quando a realidade é apropriada pelo verbo e pelo músculo chamado coração, ela é desvendada a ponto de expor o sangramento não apenas de sua geografia, mas dos homens, mulheres e crianças que nela estão inseridos! E tudo isso porque o sistema capitalista sacrifica o homem no altar do deus-mercado. Essa perversidade está sendo contestada na Inglaterra, na Espanha, na Irlanda, na Islândia, no Norte da África, em Portugal, na Grécia, tanto quanto no Chile. Que bom ver que há resistência diante desse atroz capitalismo. Se há sangue correndo, pelo menos é dos que não se deixaram imolar ao deus-mercado! Viva a resistência!

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