Por Joana Tavares, no jornal Brasil de Fato:
O nome do professor Ricardo Antunes está diretamente ligado ao tema do trabalho. Autor de diversos livros sobre o tema, professor de sociologia do trabalho na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele agora se debruça sobre o continente latino-americano em sua nova obra, O continente do labor. “Labor, como sabemos, é o trabalho aviltado, intensificado, superexplorado. É a ideia que esse continente foi feito para a extração, para a sucção de riquezas para o mundo avançado, primeiro a Europa, depois os Estados Unidos”, aponta.
Depois de anos de estudo sobre o caso brasileiro e sobre países de capitalismo avançado, desta vez sua pesquisa se volta para o conjunto de países que, se por um lado têm sua história marcada pela exploração, por outro também é referência por suas revoltas, rebeliões, lutas por independência e autonomia. Nesta entrevista, ele fala sobre a pesquisa, sobre a nova morfologia do trabalho, os governos e a necessidade de levantar os pontos centrais que garantam a unidade entre a classe trabalhadora ampliada.
Por que estudar a América Latina agora e por que chamá-la de “o continente do labor”?
A decisão de estudar a América Latina deveu-se a alguns motivos. Nas últimas décadas, até 1990, estudei o caso brasileiro. De 90 até hoje, continuo estudando as mudanças que vêm ocorrendo no capitalismo avançado para discutir criticamente, para me posicionar contra as teses daqueles autores que defendiam o fim da importância da classe trabalhadora, o fim da centralidade do trabalho. Mas visitando e viajando pela América Latina nessa última década, especialmente a partir dos livros Adeus ao trabalho? e Os sentidos do trabalho, fui desenvolvendo uma percepção da particularidade do trabalho na América Latina.
Em 2005, recebi um convite para escrever um verbete sobre o trabalho na América Latina para a Enciclopédia latino-americana, que foi publicada no ano seguinte pela Boitempo. Para escrever o verbete, fui estudar vários países para não fazer um verbete apenas brasileiro, mas latino-americano. O resultado é que esse texto foi publicado numa versão muito parcial e muito alterada, e o texto integral ficou separado e inédito. A partir daí, veio a ideia de organizar o volume. Qual é a especifidade do trabalho na América Latina frente às mudanças que vêm ocorrendo no capitalismo em escala global?
Por isso o nome de “continente do labor”: este continente nasceu, a partir do processo de descobrimento da América, como um prolongamento da exploração colonial. Nasceu seguindo o que Marx chamava de acumulação primitiva do capital, onde espanhóis e portugueses montaram aqui colônias de exploração, visando, no caso da colonização espanhola isso é mais claro, a extração do ouro e da prata, e no caso brasileiro, dado que no primeiro momento o ouro e a prata não apareceram, deu-se a exploração do pau-brasil e muito rapidamente a montagem de um sistema de produção voltado para o cultivo do açúcar, que era um produto escasso e de muito valor na Europa. Montou-se um processo colonial fundado na intensa exploração do trabalho, no labor.
Labor, como sabemos, é o trabalho aviltado, intensificado, superexplorado. É a ideia que esse continente foi feito para a extração, para a sucção de riquezas para o mundo avançado, primeiro a Europa, depois os Estados Unidos. É o continente do labor, da opressão, do sofrimento, mas também das revoltas, das rebeliões, das lutas pela sua independência e autonomia. Como a revolução haitiana, a primeira revolução contra a escravidão, a rebelião dos quilombos, a revolução mexicana de 1910, a revolução cubana de 1959, entre tantas outras formas de luta que o continente apresenta.
Com tantas mudanças no mundo do trabalho é possível falar ainda em uma única classe trabalhadora?
É possível falar em muitas classes, classes burguesas e suas frações; as camadas médias e a classe trabalhadora no sentido amplo, que compreende o conjunto de assalariados do campo, da cidade, dos serviços... É claro que é uma classe ampla, heterogênea, complexificada. Em alguns casos, como o campesinato, por exemplo, poderia ser visto como uma classe de pequenos proprietários, mas muitas vezes eles trabalham algum período do ano no cultivo do açúcar, do algodão, etc. Alguns autores falam em “classes trabalhadoras”.
Eu prefiro falar em classe trabalhadora ampliada, porque estou procurando entender, centralmente, a classe trabalhadora assalariada que vive da venda de sua força de trabalho visando à geração, direta ou indiretamente, de mais-valia, de valor, que valoriza o capital. Então essa classe trabalhadora não é só a classe operária industrial, é a classe ligada ao operariado, é a classe ligada à agricultura, por exemplo, os trabalhadores chamados de boias-frias no Brasil, ou os trabalhadores do corte da cana-de-açúcar, inclui o proletariado de serviços, trabalhadores ligados ao call center, ao telemarketing, aos supermercados... Compreende o que chamo da nova morfologia do trabalho.
Como incluir na luta de classes os elementos gênero, etnia e geração sem cair no discurso pós-moderno que coloca apenas esses elementos como centrais?
Estudar questão de gênero, etnia ou geração, é vital desde que se tenha a dimensão de classe. Quando você vai no mundo do trabalho latino-americano, nos países de colonização espanhola, você olha a classe trabalhadora e vê que ela tem a cara indígena. Claro que às vezes há mesclados, índios com espanhóis, mas no geral a classe trabalhadora tem uma função fortemente indígena e as classes burguesas têm uma feição mais hispânica. No Brasil ou em Cuba, por exemplo, a classe trabalhadora tem uma feição mais aproximada do negro e do mulato, enquanto as classes burguesas têm uma feição mais branca.
A classe trabalhadora tem homens e mulheres, mas as mulheres têm salários menores que os homens, condições mais precarizadas, elas têm menos direitos. Há empresas que preferem contratar trabalhadores homens e mais velhos; outras preferem mulheres e jovens, e assim por diante. Mas a dimensão de trabalho é crucial, porque ela é uma categoria transversal. Isso significa dizer que é fundamental fazer a articulação entre gênero, etnia, geração e classe. O pensamento pós-moderno desconsidera a dimensão de classe, porque a nega, e acaba fazendo conta das questões de gênero, étnicas, geracional, isoladamente, como se não tivesse capitalismo, como se não tivesse exploração do trabalho, como se não tivesse a centralidade do trabalho.
A minha pesquisa vem procurando mostrar que para compreender a classe trabalhadora hoje é preciso compreendê-la na sua nova morfologia, relacionar a dimensão de classe com gênero, etnia, geração, etc, sem perder o vínculo fundamental de classe. O gênero tem classe, a geração e a questão étnica também. Os bolivianos, indígenas, camponeses, não são burgueses. As revoltas na Inglaterra foram tocadas por jovens, pobres, imigrantes, trabalhadores precarizados ou sem trabalho.
O que as eleições de governos mais progressistas significaram para a América Latina?
É preciso fazer uma separação entre quais governos são progressistas e quais não são. A vitória de Chávez na Venezuela de 1999 e seu governo de lá pra cá vem procurando imprimir um sentido antineoliberal e com traços antiburgueses e anti-imperialistas. O processo chamado de revolução bolivariana tem uma preocupação de pensar uma alternativa, inclusive fora dos marcos do capitalismo. Quando eleito, ele não tinha uma proposta socialista, era uma proposta popular, contrária aos partidos dominantes. Mas ao longo da década de 2000, vai percebendo que a Venezuela tem que buscar um caminho alternativo e isso aproxima do socialismo.
É um projeto de inspiração socialista, mas que não quer, por um lado, incorrer nos erros da União Soviética, mas que tem dificuldades no seu desenvolvimento. Não é fácil no século 21 - embora seja imprescindível – redesenhar um projeto socialista, porque é preciso fazer uma análise profundamente crítica da experiência do socialismo no século 20, especialmente da União Soviética, que viveu um processo brutal de estalinização da sua história e por fim levou a sua derrota cabal. Precisamos analisar a importância do socialismo de romper com o que o Mészaros chama do tripé processo estruturante do capital. É preciso demolir tanto o capital privado, quanto o trabalho assalariado e o Estado. Se esse tripé não é eliminado, o capital tende a se impor novamente.
Claro que a experiência venezuelana é ainda incipiente, tem limites, tem dependências com a persona do Chávez... Além disso, tem a experiência boliviana: a vitória do Evo Morales foi uma vitória do movimento popular. Agora estamos vendo o governo sendo dura e criticamente confrontado por indígenas e pelo movimento popular porque eles são contra uma espécie de subimperialismo brasileiro, associado com o governo boliviano, que implemente projetos que beneficiem o Brasil e empresas de construção em detrimento dos povos tradicionais. São movimentos de contenções, e dou mais valor no meu livro às lutas populares nestes países, à impulsão popular.
O que esses governos têm de positivo é resultado da mobilização popular. Nenhum desses países, nem a Venezuela, a Bolívia ou Equador, viveram revoluções socialistas. O fato de não terem vivido revoluções mostra um processo muito difícil que é conviver dentro da ordem e contra a ordem. É uma espécie de “revolução institucional”, ou uma “institucionalidade revolucionária”. A última experiência que tivemos parecida com essa foi a bela experiência de Salvador Allende, no Chile, que foi deposta por um golpe em 1973, que juntou o Exército ditatorial chileno, o imperialismo norte-americano e as classes burguesas. Na América Latina, Florestan Fernandes nos ensinou isso, Caio Prado também, quando as reformas têm um sentido mais radical, elas começam a se aproximar do espaço da revolução. E isso provoca as contra-revoluções. Esse é o momento do cenário latinoamericano de alguns países.
Muito diferente, no meu entender, foi o governo Lula, que foi um governo dentro da ordem, que foi considerado por muito tempo um paladino no neoliberalismo, ainda que sob a forma do social-liberalismo. O governo de [Michelle] Bachelet no Chile não tocou em nenhum elemento da miséria chilena, o governo de Tabaré Vázquez também não tocou na estrutura do Uruguai. Temos também governos de extrema-direita, como no México, na Colômbia, em Honduras. A América Latina hoje é um cenário que tem governos de direita conservadora e contra-revolucionária; governos de centro e centro-esquerda, mas que aderem ao essencial da política neoliberal, como o governo Lula; e há governos no campo mais à esquerda, como na Venezuela e Bolívia, que tentam avançar, com muitas tensões. E Cuba, que fez mesmo uma revolução.
Como você avalia o cenário das lutas populares no continente?
As greves latino-americanas são muito importantes. O Brasil tem hoje greves nos Correios, nos bancos, de professores, do funcionalismo público, de metalúrgicos. Então temos de um lado as clássicas formas de lutas dos trabalhadores e trabalhadoras, que são as greves por melhores condições de trabalho, por aumento salarial, por ampliação de direitos. Mas temos também, desde 2001, por exemplo, na Argentina, experiências muito importantes, como o movimento dos piqueteros, que paralisava o sistema de transporte no país, com um claro sentido de contestação do projeto de precarização. Tivemos também o movimento de fábricas ocupadas, que eles chamam de fábricas recuperadas. Foram mais de 200 experiências.
Há movimentos muito importantes no Uruguai, no Peru, na Colômbia contra a mercadorização da água, dos bens energéticos, que são mercadorizados e tirados da população. Houve no México, em 1994, a eclosão do movimento zapatista, na data de início do Nafta. Em 2005, tivemos a comuna de Oaxaca. Temos rebeliões em vários países latino-americanos. A nova morfologia do trabalho traz uma nova morfologia das lutas sociais. E temos que entender essas lutas sociais. A mesma coisa se passa na Ásia, hoje o país que tem mais greve no mundo é a China. Até mesmo a Europa hoje é um continente em ebulição. Os indignados na Espanha, a geração precarizada e sem trabalho em Portugal, os imigrantes negros e desempregados na Inglaterra, o levante na Grécia, que não aceita as imposições do Fundo Monetário Internacional. A rebelião árabe - ainda que nós saibamos que os Estados Unidos e países imperialistas jogam um peso muito forte lá, pelo petróleo e pela defesa do Estado de Israel – é um sinal importante.
Essa é uma tese do livro: estamos presenciando o aumento das lutas sociais da América Latina, estamos percebendo que os povos andinos, a classe trabalhadora operária e industrial, têm se movimentado. O continente latino-americano tem uma importância vital na retomada do socialismo do século 21. Viajo muito para a Europa, e os movimentos lá têm muita expectativa do que se passa na América Latina, e temos que ter consciência disso.
É possível construir a unidade entre as duas formas de mobilização: as formas clássicas, como as greves, e as novas formas de lutas sociais?
Claro, esse é o desafio fundamental: resgatar o sentido de pertencimento dessa classe trabalhadora ampliada. Temos o exemplo da luta pela redução da jornada de trabalho, que é uma luta mundial: beneficia quem está empregado e vai trabalhar menos e beneficia quem está desempregado e pode vir a trabalhar, sem o exaurimento do trabalho. A mundialização dos capitais mundializou as lutas sociais. Temos que avançar os laços de organicidade. O papel do MST no Brasil, por exemplo, é muito importante nisso. Mesmo com suas dificuldades, ele luta não só pela terra, mas pelo direito ao trabalho, pelo fim dos transgênicos, é contra a propriedade latifundiária da terra improdutiva, mas é contra também a terra concentrada que é produtiva, mas destrutiva. Que sentido tem produzir soja para exportação e não produzir alimentos para a população do país?
É preciso perceber quais são as questões vitais que hoje aproximam, unem os polos diversificados da classe trabalhadora: a questão do trabalho, a questão do tempo de trabalho, a questão de produzir o quê e para quem, a questão da forma de propriedade, a propriedade intelectual, a questão ambiental. O mundo já está comprometido hoje, não é mais em um futuro próximo. Lutar hoje contra as usinas nucleares é uma luta da classe trabalhadora, não serão as classes dominantes que vão lutar por isso. A luta ambiental tem que ser uma luta anticapitalista. Definir as questões vitais é o desafio das esquerdas, dos movimentos sociais, dos sindicatos e partidos que querem pensar na humanidade no século 21, o que repõe a questão do socialismo. Temos que discutir o socialismo na contextualidade, na concretude e na autenticidade do século 21. É um desafio vital.
O nome do professor Ricardo Antunes está diretamente ligado ao tema do trabalho. Autor de diversos livros sobre o tema, professor de sociologia do trabalho na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele agora se debruça sobre o continente latino-americano em sua nova obra, O continente do labor. “Labor, como sabemos, é o trabalho aviltado, intensificado, superexplorado. É a ideia que esse continente foi feito para a extração, para a sucção de riquezas para o mundo avançado, primeiro a Europa, depois os Estados Unidos”, aponta.
Depois de anos de estudo sobre o caso brasileiro e sobre países de capitalismo avançado, desta vez sua pesquisa se volta para o conjunto de países que, se por um lado têm sua história marcada pela exploração, por outro também é referência por suas revoltas, rebeliões, lutas por independência e autonomia. Nesta entrevista, ele fala sobre a pesquisa, sobre a nova morfologia do trabalho, os governos e a necessidade de levantar os pontos centrais que garantam a unidade entre a classe trabalhadora ampliada.
Por que estudar a América Latina agora e por que chamá-la de “o continente do labor”?
A decisão de estudar a América Latina deveu-se a alguns motivos. Nas últimas décadas, até 1990, estudei o caso brasileiro. De 90 até hoje, continuo estudando as mudanças que vêm ocorrendo no capitalismo avançado para discutir criticamente, para me posicionar contra as teses daqueles autores que defendiam o fim da importância da classe trabalhadora, o fim da centralidade do trabalho. Mas visitando e viajando pela América Latina nessa última década, especialmente a partir dos livros Adeus ao trabalho? e Os sentidos do trabalho, fui desenvolvendo uma percepção da particularidade do trabalho na América Latina.
Em 2005, recebi um convite para escrever um verbete sobre o trabalho na América Latina para a Enciclopédia latino-americana, que foi publicada no ano seguinte pela Boitempo. Para escrever o verbete, fui estudar vários países para não fazer um verbete apenas brasileiro, mas latino-americano. O resultado é que esse texto foi publicado numa versão muito parcial e muito alterada, e o texto integral ficou separado e inédito. A partir daí, veio a ideia de organizar o volume. Qual é a especifidade do trabalho na América Latina frente às mudanças que vêm ocorrendo no capitalismo em escala global?
Por isso o nome de “continente do labor”: este continente nasceu, a partir do processo de descobrimento da América, como um prolongamento da exploração colonial. Nasceu seguindo o que Marx chamava de acumulação primitiva do capital, onde espanhóis e portugueses montaram aqui colônias de exploração, visando, no caso da colonização espanhola isso é mais claro, a extração do ouro e da prata, e no caso brasileiro, dado que no primeiro momento o ouro e a prata não apareceram, deu-se a exploração do pau-brasil e muito rapidamente a montagem de um sistema de produção voltado para o cultivo do açúcar, que era um produto escasso e de muito valor na Europa. Montou-se um processo colonial fundado na intensa exploração do trabalho, no labor.
Labor, como sabemos, é o trabalho aviltado, intensificado, superexplorado. É a ideia que esse continente foi feito para a extração, para a sucção de riquezas para o mundo avançado, primeiro a Europa, depois os Estados Unidos. É o continente do labor, da opressão, do sofrimento, mas também das revoltas, das rebeliões, das lutas pela sua independência e autonomia. Como a revolução haitiana, a primeira revolução contra a escravidão, a rebelião dos quilombos, a revolução mexicana de 1910, a revolução cubana de 1959, entre tantas outras formas de luta que o continente apresenta.
Com tantas mudanças no mundo do trabalho é possível falar ainda em uma única classe trabalhadora?
É possível falar em muitas classes, classes burguesas e suas frações; as camadas médias e a classe trabalhadora no sentido amplo, que compreende o conjunto de assalariados do campo, da cidade, dos serviços... É claro que é uma classe ampla, heterogênea, complexificada. Em alguns casos, como o campesinato, por exemplo, poderia ser visto como uma classe de pequenos proprietários, mas muitas vezes eles trabalham algum período do ano no cultivo do açúcar, do algodão, etc. Alguns autores falam em “classes trabalhadoras”.
Eu prefiro falar em classe trabalhadora ampliada, porque estou procurando entender, centralmente, a classe trabalhadora assalariada que vive da venda de sua força de trabalho visando à geração, direta ou indiretamente, de mais-valia, de valor, que valoriza o capital. Então essa classe trabalhadora não é só a classe operária industrial, é a classe ligada ao operariado, é a classe ligada à agricultura, por exemplo, os trabalhadores chamados de boias-frias no Brasil, ou os trabalhadores do corte da cana-de-açúcar, inclui o proletariado de serviços, trabalhadores ligados ao call center, ao telemarketing, aos supermercados... Compreende o que chamo da nova morfologia do trabalho.
Como incluir na luta de classes os elementos gênero, etnia e geração sem cair no discurso pós-moderno que coloca apenas esses elementos como centrais?
Estudar questão de gênero, etnia ou geração, é vital desde que se tenha a dimensão de classe. Quando você vai no mundo do trabalho latino-americano, nos países de colonização espanhola, você olha a classe trabalhadora e vê que ela tem a cara indígena. Claro que às vezes há mesclados, índios com espanhóis, mas no geral a classe trabalhadora tem uma função fortemente indígena e as classes burguesas têm uma feição mais hispânica. No Brasil ou em Cuba, por exemplo, a classe trabalhadora tem uma feição mais aproximada do negro e do mulato, enquanto as classes burguesas têm uma feição mais branca.
A classe trabalhadora tem homens e mulheres, mas as mulheres têm salários menores que os homens, condições mais precarizadas, elas têm menos direitos. Há empresas que preferem contratar trabalhadores homens e mais velhos; outras preferem mulheres e jovens, e assim por diante. Mas a dimensão de trabalho é crucial, porque ela é uma categoria transversal. Isso significa dizer que é fundamental fazer a articulação entre gênero, etnia, geração e classe. O pensamento pós-moderno desconsidera a dimensão de classe, porque a nega, e acaba fazendo conta das questões de gênero, étnicas, geracional, isoladamente, como se não tivesse capitalismo, como se não tivesse exploração do trabalho, como se não tivesse a centralidade do trabalho.
A minha pesquisa vem procurando mostrar que para compreender a classe trabalhadora hoje é preciso compreendê-la na sua nova morfologia, relacionar a dimensão de classe com gênero, etnia, geração, etc, sem perder o vínculo fundamental de classe. O gênero tem classe, a geração e a questão étnica também. Os bolivianos, indígenas, camponeses, não são burgueses. As revoltas na Inglaterra foram tocadas por jovens, pobres, imigrantes, trabalhadores precarizados ou sem trabalho.
O que as eleições de governos mais progressistas significaram para a América Latina?
É preciso fazer uma separação entre quais governos são progressistas e quais não são. A vitória de Chávez na Venezuela de 1999 e seu governo de lá pra cá vem procurando imprimir um sentido antineoliberal e com traços antiburgueses e anti-imperialistas. O processo chamado de revolução bolivariana tem uma preocupação de pensar uma alternativa, inclusive fora dos marcos do capitalismo. Quando eleito, ele não tinha uma proposta socialista, era uma proposta popular, contrária aos partidos dominantes. Mas ao longo da década de 2000, vai percebendo que a Venezuela tem que buscar um caminho alternativo e isso aproxima do socialismo.
É um projeto de inspiração socialista, mas que não quer, por um lado, incorrer nos erros da União Soviética, mas que tem dificuldades no seu desenvolvimento. Não é fácil no século 21 - embora seja imprescindível – redesenhar um projeto socialista, porque é preciso fazer uma análise profundamente crítica da experiência do socialismo no século 20, especialmente da União Soviética, que viveu um processo brutal de estalinização da sua história e por fim levou a sua derrota cabal. Precisamos analisar a importância do socialismo de romper com o que o Mészaros chama do tripé processo estruturante do capital. É preciso demolir tanto o capital privado, quanto o trabalho assalariado e o Estado. Se esse tripé não é eliminado, o capital tende a se impor novamente.
Claro que a experiência venezuelana é ainda incipiente, tem limites, tem dependências com a persona do Chávez... Além disso, tem a experiência boliviana: a vitória do Evo Morales foi uma vitória do movimento popular. Agora estamos vendo o governo sendo dura e criticamente confrontado por indígenas e pelo movimento popular porque eles são contra uma espécie de subimperialismo brasileiro, associado com o governo boliviano, que implemente projetos que beneficiem o Brasil e empresas de construção em detrimento dos povos tradicionais. São movimentos de contenções, e dou mais valor no meu livro às lutas populares nestes países, à impulsão popular.
O que esses governos têm de positivo é resultado da mobilização popular. Nenhum desses países, nem a Venezuela, a Bolívia ou Equador, viveram revoluções socialistas. O fato de não terem vivido revoluções mostra um processo muito difícil que é conviver dentro da ordem e contra a ordem. É uma espécie de “revolução institucional”, ou uma “institucionalidade revolucionária”. A última experiência que tivemos parecida com essa foi a bela experiência de Salvador Allende, no Chile, que foi deposta por um golpe em 1973, que juntou o Exército ditatorial chileno, o imperialismo norte-americano e as classes burguesas. Na América Latina, Florestan Fernandes nos ensinou isso, Caio Prado também, quando as reformas têm um sentido mais radical, elas começam a se aproximar do espaço da revolução. E isso provoca as contra-revoluções. Esse é o momento do cenário latinoamericano de alguns países.
Muito diferente, no meu entender, foi o governo Lula, que foi um governo dentro da ordem, que foi considerado por muito tempo um paladino no neoliberalismo, ainda que sob a forma do social-liberalismo. O governo de [Michelle] Bachelet no Chile não tocou em nenhum elemento da miséria chilena, o governo de Tabaré Vázquez também não tocou na estrutura do Uruguai. Temos também governos de extrema-direita, como no México, na Colômbia, em Honduras. A América Latina hoje é um cenário que tem governos de direita conservadora e contra-revolucionária; governos de centro e centro-esquerda, mas que aderem ao essencial da política neoliberal, como o governo Lula; e há governos no campo mais à esquerda, como na Venezuela e Bolívia, que tentam avançar, com muitas tensões. E Cuba, que fez mesmo uma revolução.
Como você avalia o cenário das lutas populares no continente?
As greves latino-americanas são muito importantes. O Brasil tem hoje greves nos Correios, nos bancos, de professores, do funcionalismo público, de metalúrgicos. Então temos de um lado as clássicas formas de lutas dos trabalhadores e trabalhadoras, que são as greves por melhores condições de trabalho, por aumento salarial, por ampliação de direitos. Mas temos também, desde 2001, por exemplo, na Argentina, experiências muito importantes, como o movimento dos piqueteros, que paralisava o sistema de transporte no país, com um claro sentido de contestação do projeto de precarização. Tivemos também o movimento de fábricas ocupadas, que eles chamam de fábricas recuperadas. Foram mais de 200 experiências.
Há movimentos muito importantes no Uruguai, no Peru, na Colômbia contra a mercadorização da água, dos bens energéticos, que são mercadorizados e tirados da população. Houve no México, em 1994, a eclosão do movimento zapatista, na data de início do Nafta. Em 2005, tivemos a comuna de Oaxaca. Temos rebeliões em vários países latino-americanos. A nova morfologia do trabalho traz uma nova morfologia das lutas sociais. E temos que entender essas lutas sociais. A mesma coisa se passa na Ásia, hoje o país que tem mais greve no mundo é a China. Até mesmo a Europa hoje é um continente em ebulição. Os indignados na Espanha, a geração precarizada e sem trabalho em Portugal, os imigrantes negros e desempregados na Inglaterra, o levante na Grécia, que não aceita as imposições do Fundo Monetário Internacional. A rebelião árabe - ainda que nós saibamos que os Estados Unidos e países imperialistas jogam um peso muito forte lá, pelo petróleo e pela defesa do Estado de Israel – é um sinal importante.
Essa é uma tese do livro: estamos presenciando o aumento das lutas sociais da América Latina, estamos percebendo que os povos andinos, a classe trabalhadora operária e industrial, têm se movimentado. O continente latino-americano tem uma importância vital na retomada do socialismo do século 21. Viajo muito para a Europa, e os movimentos lá têm muita expectativa do que se passa na América Latina, e temos que ter consciência disso.
É possível construir a unidade entre as duas formas de mobilização: as formas clássicas, como as greves, e as novas formas de lutas sociais?
Claro, esse é o desafio fundamental: resgatar o sentido de pertencimento dessa classe trabalhadora ampliada. Temos o exemplo da luta pela redução da jornada de trabalho, que é uma luta mundial: beneficia quem está empregado e vai trabalhar menos e beneficia quem está desempregado e pode vir a trabalhar, sem o exaurimento do trabalho. A mundialização dos capitais mundializou as lutas sociais. Temos que avançar os laços de organicidade. O papel do MST no Brasil, por exemplo, é muito importante nisso. Mesmo com suas dificuldades, ele luta não só pela terra, mas pelo direito ao trabalho, pelo fim dos transgênicos, é contra a propriedade latifundiária da terra improdutiva, mas é contra também a terra concentrada que é produtiva, mas destrutiva. Que sentido tem produzir soja para exportação e não produzir alimentos para a população do país?
É preciso perceber quais são as questões vitais que hoje aproximam, unem os polos diversificados da classe trabalhadora: a questão do trabalho, a questão do tempo de trabalho, a questão de produzir o quê e para quem, a questão da forma de propriedade, a propriedade intelectual, a questão ambiental. O mundo já está comprometido hoje, não é mais em um futuro próximo. Lutar hoje contra as usinas nucleares é uma luta da classe trabalhadora, não serão as classes dominantes que vão lutar por isso. A luta ambiental tem que ser uma luta anticapitalista. Definir as questões vitais é o desafio das esquerdas, dos movimentos sociais, dos sindicatos e partidos que querem pensar na humanidade no século 21, o que repõe a questão do socialismo. Temos que discutir o socialismo na contextualidade, na concretude e na autenticidade do século 21. É um desafio vital.
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